O presidente Jair Bolsonaro disse
nesta sexta-feira (19/7) que "falar que se passa fome no Brasil é uma
grande mentira". A declaração foi dada durante um encontro com
jornalistas, no Palácio do Planalto, em Brasília.
"Passa-se mal,
não se come bem, aí eu concordo. Agora passar fome, não. Você não vê
gente, mesmo pobre, pela ruas com o físico esquelético como se vê em
outros países pelo mundo", disse o presidente.
Criticado pela
declaração, Bolsonaro reviu sua opinião horas depois, em outro evento,
ao reconhecer que "uma pequena parte (dos brasileiros) passa fome". Ele
se irritou ao ser questionado por jornalistas se havia recuado da
declaração inicial: "Se for para entrar em detalhe, em filigranas, eu
vou embora. Não estou vendo nenhum magro aqui. Temos problemas
alimentares no Brasil? Temos. Não é culpa minha, vem de trás."
De fato, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indicam que a fome ainda não foi erradicada do Brasil.
Segundo
a última pesquisa do órgão sobre o tema, de 2013, 3,6% dos brasileiros
têm insegurança alimentar grave. O índice correspondia a 7,2 milhões de
pessoas no ano da pesquisa. Na definição do IBGE, em domicílios com
insegurança alimentar grave, pode-se "passar pela privação de alimentos,
podendo chegar à sua expressão mais grave, a fome".
O IBGE não
colheu dados sobre a fome no Brasil desde então. Porém, é provável que o
índice tenha aumentado nos últimos anos, acompanhando o crescimento da
pobreza verificado a partir de 2016.
Naquele ano, 52,8 milhões de
pessoas (ou 25,7% dos brasileiros) eram consideradas pobres, número que
passou para 54,8 milhões (26,5%) em 2017. Não houve medições da pobreza
desde então.
Não é a primeira vez que o governo Bolsonaro causa polêmica ao se referir à fome no Brasil.
Em
abril, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM), afirmou que
"nós não passamos muita fome porque temos manga nas nossas cidades, nós
temos um clima tropical".
Ranking da fome no mundo
Em
seu último relatório "O estado da segurança alimentar e da nutrição no
mundo", de 2018, a FAO (agência da ONU para agricultura e segurança
alimentar) põe o Brasil na categoria dos países com o menor índice de
fome no planeta. Nessas nações, o índice de pessoas com subalimentação
entre 2015 e 2017 foi "menor que 2,5%", segundo a organização.
A
FAO não cita números detalhados para os países com índices inferiores a
2,5% por considerar que as cifras não são precisas, mas sim estimativas
calculadas a partir de diversos indicadores com margem de erro.
Na
América do Sul, só Brasil e Uruguai alcançam essa categoria - que
também abarca países altamente desenvolvidos como Austrália, Canadá,
Suécia e Finlândia.
No encontro com jornalistas nesta manhã, Bolsonaro fez outra declaração contestável sobre a questão alimentar.
Ao tratar de agricultura, o presidente afirmou que "estamos (no Brasil) nos últimos lugares no tocante ao uso de agrotóxicos".
Segundo
a FAO, porém, o Brasil ocupa a 47ª posição entre 198 nações em um
ranking sobre o consumo agrotóxicos por área plantada.
Quando se
analisa o total de agrotóxicos consumidos por cada país, o Brasil
disputa as primeiras posições da lista. Em 2013, segundo um levantamento
feito pela consultoria Phillips McDougall para a FAO, o Brasil consumiu
o equivalente a US$ 10 bilhões em agrotóxicos.
O resultado deixou
o país na primeira posição do ranking, à frente dos Estados Unidos (US$
7,4 bilhões), China (US$ 4,8 bilhões) e Japão (US$ 3,4 bilhões).
O governo federal financia cinco comunidades terapêuticas denunciadas
por praticar uma série de irregularidades, como maus-tratos a
dependentes químicos, violação de correspondências e alta mediante
conversão religiosa.
Os problemas nessas cinco instituições religiosas sem fins lucrativos
foram identificados em 2018 por membros do Ministério Público Federal,
dos Conselhos Federal e Regional de Psicologia e do Mecanismo Nacional
de Prevenção e Combate à Tortura, órgão federal dissolvido pelo
presidente Jair Bolsonaro (PSL) na semana passada.
Por meio de depoimentos de pacientes e funcionários, os membros
da comissão também constataram problemas como tratamento baseado
majoritariamente em espiritualidade, isolamento da família, prisões de
internos em quartos, trabalhos forçados e punições por faltas a cultos
religiosos.
As irregularidades foram constatadas nas comunidades
Jovem Maanaim, Esquadrão da Vida, Jovem Ebenezer, Caverna de Adulão,
Salve a Si.
Procuradas pela BBC News Brasil, as comunidades
terapêuticas negaram os problemas apontados, e parte afirmou ter havido
uma "análise ideológica" por parte dos órgãos fiscalizadores.
Já
o governo federal não explicou os motivos da manutenção dos contratos,
mas disse que exige das comunidades a contratação de profissionais
graduados em ciências humanas e saúde, além de liberdade religiosa para
os internos - também diz que estão previstas vistorias a cada 12 meses
de contrato.
Os contratos foram assinados sem licitação, meses
após a divulgação do documento que apontava os problemas. Ao todo, as
cinco instituições devem receber aproximadamente R$ 2 milhões dos cofres
federais neste ano.
A participação das comunidades terapêuticas
(CTs) na Política Nacional sobre Drogas vem se tornando o principal
mecanismo de combate à dependência química da gestão Bolsonaro. Mas a
política foi iniciada por Dilma Rousseff, do PT. Segundo dados do
governo federal, foram repassados cerca de R$ 234 milhões para 384
entidades deste tipo de 2015 a 2018, em valores nominais.
Em março, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, aumentou em 78% o
número de entidades do tipo contratadas (de 280 para 497), também sem
licitação. Neste ano, serão repassados R$ 149 milhões para custear 10,8
mil vagas.
Esse movimento vem na esteira da nova Política
Nacional de Drogas, projeto de lei aprovado pelo Senado em maio. O texto
facilita internações involuntárias em unidades de saúde e fortalece as
comunidades terapêuticas.
Essas entidades agora podem receber
dinheiro de isenção fiscal - pessoas e empresas podem deduzir no Imposto
de Renda doações feitas às comunidades.
Existem três tipos de
internações previstas na lei: a voluntária, a involuntária (quando o
dependente é levado pela família ou por um agente de saúde) e a
compulsória - quando há determinação da Justiça.
Liberdade religiosa
As
comunidades terapêuticas são um dos vários modelos de atenção a
dependentes oferecidos pela saúde pública. Em geral, são residências
coletivas que promovem o modo de vida em abstinência.
Os leitos,
oferecidos gratuitamente, são financiados pelo governo e cada um custa
R$ 1.172 por mês. Os internos têm o direito de abandonar o tratamento a
qualquer momento, mas nem sempre é o que ocorre na prática.
Uma das principais críticas feitas por especialistas e procuradores
ao modelo passa pela relação entre o tratamento de dependentes químicos e
proselitismo religioso.
Das quase 2.000 comunidades terapêuticas
no país, segundo estudo do Ipea (instituto de pesquisa vinculado ao
Ministério da Economia), 82% disseram ter ligação com igrejas e
organizações religiosas - 40% pentecostais e 27% católicas.
A
leitura da Bíblia é uma atividade diária em 89% delas, e a participação
em cultos e cerimônias religiosas é obrigatória em 55%.
Segundo
as vistorias feitas pelo CFP e o MPF, grande parte das 28 instituições
não oferecia liberdade religiosa - ou seja, internos eram punidos ou
expulsos caso não participassem dos cultos.
Uma das denunciadas
foi a Jovem Maanaim, ligada a uma igreja evangélica da cidade mineira de
Itamonte, a 385 km de Belo Horizonte. A instituição firmou um novo
contrato com o governo federal em dezembro passado, durante a gestão
Michel Temer, dois meses após a divulgação da vistoria.
Neste
ano, a entidade já recebeu R$ 146,5 mil dos R$ 281 mil previstos no
contrato. Desde 2014, a comunidade obteve R$ 911 mil do erário.
De
acordo com o relatório, a Jovem Maanaim só concede alta terapêutica aos
dependentes químicos se eles se converterem ao Evangelho.
"Como
não há acompanhamento da evolução de cada caso, o único critério de alta
é a conversão e adoção dos preceitos religiosos cuja demonstração
pública e convencimento dos obreiros constituem a ideia de tratamento
concluído. Há certo obscurantismo", afirma o documento.
Uma travesti relatou ter sido proibida de vestir roupas femininas,
pois o pastor teria lhe dito que "aquele comportamento era possessão do
espírito maligno ou 'pombagira'" - segundo o mapeamento do Ipea, os
acolhidos não têm permissão para escolher a própria roupa em 38% das
comunidades terapêuticas.
A unidade negou todas as irregularidades
apontadas, afirmando que o relatório é enviesado. "A vistoria foi
realizada por uma pessoa que não é qualificada para o trabalho, nada ali
é fidedigno", disse Marcos Vinicius Vitorino, gestor administrativo da
casa.
Ele também refuta acusações de maus-tratos e de falta de
liberdade religiosa. "Há pessoas que inventam que foram abusadas para
sair da comunidade. E aqui temos pessoas ateias e católicas", disse.
'Momentos devocionais'
A
Esquadrão da Vida, de Montes Claros (MG), também foi acusada de
proselitismo religioso - ela vai receber R$ 253 mil do governo.
"Não
há liberdade religiosa, na medida em que todos são obrigados a
participar dos momentos denominados 'devocionais'. A cada dia, um
interno é responsável pelo devocional, que significa escolher uma parte
da Bíblia para ser lida. O interno que não se apresentar para o momento
da reza será disciplinado (punido)", diz o relatório.
A BBC News Brasil não conseguiu contato com os responsáveis pelo local.
Na
comunidade Jovem Ebenezer, em Seropédica (RJ), os fiscais também
relataram que cultos evangélicos diários são o ponto mais importante do
tratamento. "Quando uns se mostram mais isolados, ou quando destoam do
comportamento tido como desejável, eles são imediatamente interpelados
por um dos monitores, que os chamam ao convívio, à fé, à crença, às
normas desejáveis. A não adesão implica no afastamento."
A unidade vai receber R$ 422 mil dos cofres federais neste ano.
Responsável pela entidade, o pastor Aldemir Gomes de Paiva afirmou
que "ninguém é obrigado a se converter ali, já que a presença de todos
dos acolhidos é voluntária, e o trabalho espiritual serve mais como um
alento para quem está nessa situação (de vício)".
Afirmou ainda
que a instituição atua dentro da legislação e que os acolhidos são
acompanhados individualmente por psicólogos e profissionais da rede
pública de saúde.
Para Jardel Fischer Loeck, pós-doutorando em
Saúde Coletiva na Unisinos, integrante da Associação Brasileira
Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas e autor de um dos estudos do
volume do Ipea "Comunidade Terapêuticas - Temas para Reflexão", nem
todas as entidades buscam necessariamente (ou unicamente) a conversão
religiosa dos acolhidos, mas esse método se repete em muitos centros.
"Ao
mesmo tempo, a busca pela transformação moral pode passar pela
conversão religiosa. O mais importante é que se tratam, sim, de projetos
de conversão (lida dessa maneira mais ampla) e que tendem a não
comportar especificidades individuais. Pelo contrário, buscam
homogeneizar as experiências individuais para que a retórica terapêutica
sirva a todos, apesar das diferenças entre as pessoas", afirma Loeck.
Pablo
Kurlander, gestor-geral da Federação Brasileira de Comunidades
Terapêuticas, critica generalizações sobre o segmento. Segundo sua
entidade, uma comunidade terapêutica precisa oferecer, entre outras
coisas, acolhimento apenas voluntário, garantia de direitos básicos como
liberdade religiosa e acesso ao mundo externo, acompanhamento
individual, atendimento multidisciplinar, ligação com a rede pública de
saúde e fiscalização frequente.
Isolamento e abstinência dos internos
Outra
controvérsia se refere à abstinência mediante isolamento dos
dependentes químicos, meta da nova política sobre drogas. Os pacientes
chegam a ficar internados por meses e até anos, muitas vezes sem
qualquer contato com o exterior.
Essa lógica, segundo o Conselho
Federal de Psicologia, pode se assemelhar à dos manicômios, que perderam
força no país desde a reforma psiquiátrica em 2001.
Quem é a
favor dessa linha afirma que é preciso retirar o usuário do ambiente de
consumo da droga e que só a interrupção do uso pode acabar com o vício.
Em
geral, entidades de classe de psicólogos e de médicos costumam apoiar a
chamada política de redução de danos - conjunto de práticas de saúde
adotadas em diversos países com o objetivo de diminuir os efeitos
causados pelo uso de drogas em pessoas que não conseguem ou não querem
parar - e a abstinência pode ser uma das abordagens.
"A
generalização do ideal de abstinência total como desejável para todos
leva, em muitos casos, pessoas a alternarem entre estados de intoxicação
total e abstinência total. Ou seja, é uma leitura totalizante do
indivíduo que usa drogas, que não abre margem para arranjos diferentes,
particulares, relacionados ao uso de drogas e ao cuidado em saúde",
afirma Jardel Loeck.
Por outro lado, em sua tese de doutorado
sobre comunidades terapêuticas, Pablo Kurlander aponta para "a
abstinência como fator que aumenta a chance de melhores indicadores de
qualidade de vida, podendo ser tanto causa quanto efeito, mas isso não
significa que ninguém possa ter qualidade de vida boa se fizer uso não
problemático de substâncias psicoativas".
O psicólogo Paulo
Maldos, membro do Conselho Federal de Psicologia, participou das visitas
às comunidades Salve a Si e Caverna de Adulão, ambas no Distrito
Federal. As duas também foram contratadas pelo governo por R$ 844 mil e
R$ 168 mil, respectivamente. No relatório, elas receberam diversas
críticas.
"Ambas repetem o isolamento das pessoas, o corte de
relações com os familiares até por meio de controle das
correspondências, que são lidas por funcionários antes de chegarem aos
internos", diz Maldos. "No nosso ponto de vista, essa não é a melhor
forma de enfrentar o problema. Não há trabalho individualizado para cada
paciente e não há qualquer projeto de vida para ele fora dali", diz.
Na comunidade Caverna de Adulão, os acolhidos chegam a ficar três
meses sem qualquer contato com o exterior - a reportagem não conseguiu
contato com os responsáveis. Já na Salve a Si, o tempo mínimo de
internação é de seis meses.
Fundador da casa, Henrique França
nega todas acusações contra a unidade, como violação de
correspondências. "Esse relatório é alimentado por uma ideologia
tendenciosa. Quem fez essa vistoria é anti-religião e anti-família",
disse. Também afirmou que a unidade passa por vistorias mensais feitas
pelo governo do Distrito Federal.
Entidades contratadas pelo
governo são obrigadas a oferecer um Plano de Atendimento Singular (PAS),
em que são registrados o histórico, os dados e o planejamento da saída
do acolhido com a anuência voluntária do próprio ou de familiares. O
acolhimento pode se estender por até 12 meses consecutivos ou
intercalados, no intervalo de 24 meses.
Para Kurlander, da
Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, um dos principais
trunfos do modelo é, ante a escassez de equipamentos públicos, ter uma
capilaridade muito maior que a rede pública de saúde, principalmente em
municípios menores e zonas rurais.
Já Rogério Giannini, presidente
do Conselho Federal de Psicologia, afirma que as comunidades
terapêuticas trabalham de forma intuitiva - ou seja, não há métodos
científicos ou médicos. "A religiosidade é imposta às pessoas. Raramente
existe tratamento individualizado ou projeto terapêutico para cada
paciente", diz.
Ele também critica a falta de fiscalização e
estudos sobre a efetividade dos tratamentos oferecidos. "Não há qualquer
estudo do governo para medir o impacto e efetividade desses
tratamentos. Não há nada que aponte quais comunidades produziram
resultados. É uma política baseada em preceitos religiosos, intuição e
ideologia."
Questionado, o Ministério da Cidadania não soube
informar qual é a taxa média de recaída dos dependentes químicos em
comunidades terapêuticas financiadas pelo governo federal.
Terapia do trabalho
Pesquisa do
Ipea mostrou que 92,9% das comunidades terapêuticas do país usam a
laborterapia como método do tratamento. O documento do MPF e do CFP
também aponta que várias casas utilizam ex-internos na monitoria dos
dependentes químicos - e parte delas não remunera esses funcionários.
Na
comunidade Salve a Si, por exemplo, "houve relatos de uma carga de
trabalho por um período de duas horas e meia diárias, no entanto, muitos
trabalhavam além desse horário", segundo o relatório dos inspetores.
"Uma
pessoa estava lá há dois anos com a justificativa de ter se tornado um
voluntário trabalhador da casa, porém, sem receber salário e com direito
somente a uma ajuda de custo". A entidade nega a acusação, dizendo que
houve um engano por parte dos fiscais.
Já na Esquadrão da Vida,
dois monitores sem formação em saúde são os responsáveis pelo local.
"Eles trabalham por turnos de sete dias, alternando-se durante o mês.
Cuidam de todos os detalhes do cotidiano: tocar o sino para demarcar os
horários de despertar, rezar, trabalhar. Também decidem sobre a
utilização dos espaços de oficina e acompanham as ligações realizadas
pelos internos para seus familiares. Os monitores são os principais
agentes de 'cuidado' da CT."
Mas a carga de trabalho chega a ser mais problemática e afetar a saúde dos internos em outros locais.
O
relatório cita o caso da Casa de Resgate Emanuel, de Bandeira do Sul
(MG). "Não são distribuídos equipamentos de proteção individual para os
internos executarem tarefas. A equipe de visita recebeu sérios relatos
de pessoas que tiveram sua visão afetada ('queimada') por trabalharem
com solda sem a devida proteção."
Embora não faça parte dos novos
contratos da gestão Bolsonaro, a Casa de Resgate Emanuel recebeu R$ 656
mil do governo federal de 2014 a dezembro do ano passado - mesmo após
ter sido acusada maus-tratos, ela ainda foi beneficiada por três
repasses de verbas.
Para Rogério Giannini, do Conselho Federal de
Psicologia, esse tipo de terapia é "escandalosa". "Na prática, o que
acontece é que as pessoas fazem trabalhos domésticos sem remuneração,
como limpeza, manutenção, pintura e até segurança das unidades. São
tarefas forçadas que não acrescentam em nada", diz.
Disciplina e punições
A
disciplina passa por diversos aspectos da rotina, segundo pesquisa do
Ipea. Metade proíbe faltas a cultos e cerimônias religiosas e um terço
veta que essas pessoas escolham o próprio corte de cabelo. Mesmo a
prática mais permitida, assistir à TV, não é indiscriminada - parte só
exibe programas religiosos ou noticiários em determinados horários.
"O
baixo percentual de CTs que permitem que os acolhidos mantenham
relações sexuais com seus parceiros (6,3%) e com os demais residentes
(0,8%) também é digno de destaque, revelando a quase unanimidade com que
a sexualidade dos acolhidos é vista também como problemática e, de
alguma forma, associada ao consumo de drogas", afirma o Ipea.
Conselheiro
do CFP, o psicólogo Paulo Maldos presenciou esses aspectos em suas
vistorias. "Relações afetivas e sexuais eram vistas como prejudiciais ao
tratamento", relata.
"O trabalho terapêutico é focado na culpa e
no remorso. Ou seja, a pessoa é constantemente lembrada dos males que
causou à família, às pessoas, aos amigos. Não se fala sobre os pontos
positivos da pessoa, mascarando as questões que as fazem mal", diz.
Na
comunidade Jovem Maanaim, havia internos presos em quartos por até uma
semana como punição por desvios disciplinares, segundo o documento.
"Dependendo
do grau da infração, o adolescente, ou a moça interna, permanece dentro
do quarto por uma semana, apenas em companhia da Bíblia", escreveram os
fiscais com base em depoimentos de pacientes da casa. Outros
dependentes, menores de idade, sequer eram liberados para frequentar a
escola, aponta o documento.
"Também foi relatado por diversos
internos que a disciplina é rígida, sendo aplicadas penas como lavar
panelas e retirar o colchão do interno que, por exemplo, se recusa a
participar de cultos. Um paciente psiquiátrico, de 62 anos, confirmou já
ter sido punido com a retirada do colchão, o que o obrigava ficar
deitado na cama de alvenaria - pelo fato de nem sempre conseguir
participar dos cultos porque sentia muito sono, devido ao uso de
remédios."
A unidade nega as denúncias.
Já na Casa de Resgate Emanuel, os fiscais ouviram relatos de que os internos precisam ficar nus durantes as revistas pessoais.
Em
entrevista à BBC News Brasil, Sebastião Silveira, responsável pela
comunidade, atribuiu os maus-tratos e desrespeitos à privacidade dos
acolhidos, como retenção de documentos e violação de correspondência a
uma psicóloga que atuava no local à época da vistoria. Segundo ele, a
profissional defendia essas práticas para evitar recaídas e venda de
drogas dentro da entidade.
Autor do parecer que defende a
soltura dos nove militares que fuzilaram um músico e um catador no Rio
de Janeiro, o subprocurador-geral da Justiça militar Carlos Frederico de
Oliveira Pereira diz que a morte de inocentes em operações no Rio de
Janeiro é "inevitável" e que agentes de segurança deveriam ter
"salvo-conduto" para não serem sequer processados por erros em missões.
"Você
tem que ampliar mais essas garantias. Trazer para o Brasil mais o menos
o que tem nos Estados Unidos, que é a imunidade qualificada, que já de
início afasta qualquer processamento para a polícia quando ela atua
mesmo em erro, mas na crença de que está agindo legalmente", disse em
entrevista à BBC News Brasil.
Nos Estados Unidos, a chamada imunidade qualificada é uma
doutrina jurídica, reconhecida pela Suprema Corte, que protege agentes
do governo de serem responsabilizados pessoalmente por violações à
Constituição e à lei em operações, a não ser que seja uma violação de
direito que, no momento do ato, se mostrasse claramente evidente.
Na
prática, isso significa que antes de um processo ser aberto contra um
policial, por exemplo, é preciso convencer um juiz de que "qualquer
agente" consideraria a atitude daquele policial inaceitável ou
desarrazoada, consideradas as circunstâncias e a lei.nspirado nessa doutrina, Carlos Frederico de Oliveira Pereira quer
que policiais e militares brasileiros tenham "garantias mais amplas"
para agir em operações. Professor de Direito Penal da Universidade de
Brasília, o subprocurador da Justiça militar é conhecido entre alunos
por defender posições conservadoras.
Questionado
se o caso dos nove militares não seria um claro excesso no uso da
força, pelo disparo de mais de 200 tiros contra o carro conduzido pelo
músico Evaldo dos Santos Rosa, Pereira afirmou que o caso é "grave", mas
que os militares agiram achando que se tratava de um "bandido".
A
orientação de Pereira pelo fim da prisão preventiva dos nove militares
foi seguida até agora por quatro ministros do Superior Tribunal Militar
(STM), em julgamento que começou no dia 8 de maio. O órgão tem 15
ministros. A sessão foi suspensa após um ministro pedir vista e pode ser
retomado nesta semana.
Este é o primeiro grande julgamento na
Justiça militar de crime de homicídio cometido por militares contra
civis desde que foi sancionada uma lei, em outubro de 2017, que retirou
essa atribuição da justiça comum. Antes, cabia a um tribunal do júri
julgar casos como o dos nove militares que mataram um músico e um
catador no Rio de Janeiro.
Por enquanto, só a ministra Maria Elizabeth Rocha, que é civil, votou
por manter a prisão preventiva deles. Outros dez ministros do STM ainda
vão votar.
Elizabeth Rocha destacou, no julgamento, que dos mais
de 200 disparos efetuados pelos militares, 83 tiros atingiram o carro
conduzido pelo músico Evaldo dos Santos Rosa, que morreu baleado no
local. Ela ainda leu um laudo que mostra que a segunda rajada de tiros
foi dada quando o carro já estava parado, com portas abertas. Ou seja,
não ocorreu em meio a um tiroteio.
Para a ministra, a gravidade
do ato foi tamanha que a prisão preventiva deve ser mantida, para
garantir a ordem pública. "Verifica-se em tese uma ação completamente
desmedida, irresponsável, desencadeada por um roubo ocorrido momentos
antes e que não se encontrava mais em curso, inexistindo à prima face
qualquer ameaça iminente, situação de risco para possíveis vítimas civis
de roubo ou sequer pessoa armada", disse, no julgamento.
Mas, na
entrevista à BBC News Brasil, o subprocurador-geral militar disse que
não vê nos nove militares uma "predisposição à violência" que justifique
a prisão antes de serem julgados e eventualmente condenados.
"Eles atiraram para matar, mas acreditando que o outro lado era
bandido, porque tinham uma informação de roubo de veículo. A análise dos
fatos não demonstra que sejam pessoas predispostas a matar os outros."
Cinco
pessoas que iam para um chá de bebê, no dia 7 de abril, estavam no
carro alvejado, em Guadalupe, na Zona Norte do Rio. Evaldo do Santos
Rosa foi atingido por nove tiros.
O catador de materiais
recicláveis Luciano Macedo, que passava pelo local e tentou ajudar a
família também foi atingido e morreu dias depois. O sogro de Evaldo foi
baleado, mas se recuperou. O filho de sete anos do músico, a esposa e
uma amiga dela estavam no carro e presenciaram tudo, mas não se feriram.
Na semana passada, a Justiça Militar aceitou denúncia contra os
nove militares envolvidos na morte de Evaldo Rosa e de Luciano Macedo.
Eles vão responder por homicídio qualificado, tentativa de homicídio
qualificado e omissão de socorro.
Caberá, agora, ao STM definir
se esses militares devem responder ao processo em liberdade, como
defende Carlos Frederico de Oliveira Pereira, ou continuar presos
preventivamente.
Leia os principais trechos da entrevista: BBC
News Brasil - O senhor deu parecer para liberar da prisão preventiva os
militares que deram 83 tiros contra um veículo no Rio e mataram dois
civis. Se o STM seguir essa orientação, não passará a ideia de
impunidade diante de uma operação que chocou o país? Carlos Frederico de Oliveira Pereira - Aquela
foi uma prisão em flagrante convertida em prisão preventiva. O que
estamos discutindo é a prisão preventiva e as pessoas estão confundidas
com o mérito. Eu deixei claro, no parecer, de que é um duplo homicídio.
Mas
os pressupostos de prisão preventiva não estão presentes, na minha
opinião. Não está presente que os agentes do crime vão se furtar à
aplicação da lei penal. Uma coisa são os requisitos da preventiva e a
outra prisão em razão de condenação. BBC News Brasil - É um caso que gerou muita comoção pela
quantidade de tiros atingindo um carro de uma família com criança. Como
responder à indignação da população e ao medo de que isso se repita? Pereira - Com
relação à morte de civis, o que acontece? Você tem embates com os
criminosos, os traficantes, que são armados fortemente. E a imprensa, a
meu ver, esquece que em determinadas situações aquilo entra no conceito
da convenção de Genebra de que ultrapassa um mero conflito interno. São
criminosos organizados e extremamente armados.
Quando você vai
fazer operação de repressão ao crime, há tiroteio em meio a civis. Eles
passam a atacar os militares com arma de guerra. O problema de atingir
civis é inevitável, seja no caso das Forças Armadas seja com a PM. Como
resolver isso: só se você conseguir pacificar aqueles locais e isso vai
demorar muito tempo. BBC News Brasil - Realmente, há
complexidades nos embates entre policiais e traficantes em áreas
dominadas pelo tráfico. Mas, nesse caso específico, o que chocou a
população foi o fato de terem sido disparados 200 tiros, com 83 atingido
o carro, sem que estivesse havendo ali uma troca de tiros. Não são
situações diferentes? Pereira - Existe o episódio, que é gravíssimo... Mas acho que foram oitenta disparos. BBC News Brasil - Foram 200 disparos e 83 atingiram o carro. Pereira -
Pode ter sido mesmo. Mas você sabe como aconteceu? O episódio está
sendo contado de maneira isolada. Eles (os militares) tiveram dois
episódios anteriores de trocas de tiros com bandidos.
Essa foi a
terceira sequência da operação. Ninguém questiona que houve homicídio
doloso. Teve duas pessoas mortas. Agora, outra coisa é justificar a
prisão preventiva.
Por que eles deram 200 tiros, vão dar mais 200 tiros se forem soltos?
Em face de ter havido homicídio doloso, haverá mais homicídio doloso?
Poderão acontecer mais homicídios dolosos, mas não por eles. Esses
militares não vão mais ser deslocados para a rua. Vão dar a eles outras
funções.
Seria válido esse raciocínio se fosse um grupo de
extermínio, milicianos. Eles atiraram para matar, mas eles atiraram
acreditando que o outro lado era bandido, porque tinha uma informação de
roubo de veículo. A análise dos fatos não demonstra que sejam pessoas
predispostas a matar os outros. Não consigo vislumbrar requisito para a
prisão. BBC News Brasil - Um argumento citado pela
ministra Elizabeth Rocha, do STM, única a votar contra o habeas corpus
até agora, é o de que os militares poderiam atrapalhar as investigações e
a instrução processual, considerando que eles já mentiram algumas vezes
nos interrogatórios. Qual a sua visão sobre isso? Pereira - Mentir
todo réu mente. O réu pode mentir aqui no Brasil - diferentemente da
legislação inglesa. As perícias foram feitas, os réus foram ouvidos. Se
eles tentarem causar influência em alguma testemunha, aí sim você terá
fundamento para a prisão. BBC News Brasil - O senhor vê fundamento para a denúncia por homicídio doloso? Pereira - Claro, mataram duas pessoas. Eu coloquei no parecer que foi duplo homicídio. BBC News Brasil - Esse caso, na sua opinião, deve levar a uma reflexão sobre a forma como operações policiais em áreas com civis são conduzidas? Pereira - Essas operações de garantia da lei e da ordem envolvem um risco imenso, tanto para a população civil quanto para as polícias.
As
operações que acontecem no Rio de Janeiro, por maior que seja o
planejamento, dada a geografia urbana, e o fato de que há criminosos que
dominam territórios e a população local, e que realizam as operações
criminosas em meio à população civil, a repressão penal inevitavelmente
assume uma gravidade absurda.
São operações de guerra. O risco de
morrer civil é total. Agora, quando se trata do Exército, eles têm
treinamento, mas não a vivência diária. A PM enfrenta aquilo todos os
dias. Não é a mesma situação. BBC News Brasil - O senhor
é a favor do trecho do projeto de lei do ministro Sérgio Moro que
permite ao juiz deixar de aplicar pena a policiais que matarem civis em
situação de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção"? Pereira - Você tem é que ampliar mais essas
garantias. Trazer para o Brasil mais o menos o que tem nos Estados
Unidos, que é a imunidade qualificada, que já de início afasta qualquer
processamento para a polícia quando ela atua mesmo em erro, mas na
crença de que está agindo legalmente.
O policial nos Estados
Unidos trabalha na rua sabendo que vai ter enfrentamento e trabalha
tranquilo sabendo que não vai ter um promotor que, em caso de embate,
vai denunciá-lo por homicídio. Muito mais que isso que está sendo
proposto lá (no Congresso), você tem nos Estados Unidos.
Aqui no Brasil, mesmo se você se defender aqui matando
alguém, a possibilidade de você ser denunciado é certa. Aqui não tem
garantia. Quem é que vai querer trabalhar desse jeito? BBC
News Brasil - O salvo-conduto que o senhor defende se aplicaria nesse
caso dos nove militares que mataram o músico e o catador? Pereira - Veja
só, em qualquer lugar do mundo, se vier um assaltante te matar e você
meter um tiro na cara dele e matar ele, você cometeu um homicídio
doloso. Agora, o que você vai alegar em sua defesa? BBC News Brasil - Nesse caso, legítima defesa... Pereira - Exato, isso não exclui o fato de você ter matado dolosamente... BBC News Brasil - Mas, no caso dos nove militares, eles atiraram contra uma família que não estava atirando de volta nem armada. Carlos Frederico de Oliveira Pereira - Mas
eles acreditavam que estavam matando (civis)? O advogado vai fazer a
defesa. O que interessa, para a gente (Ministério Público Militar) agora
é que o fato é tipificado na lei como homicídio doloso. Agora, o que
vai acontecer lá na frente, ele vai se defender. O advogado vai alegar o
que entende ser matéria de defesa dele. Não me cabe me pronunciar sobre
isso. BBC News Brasil - O senhor também é favorável ao
uso de helicóptero em operações da polícia em áreas densamente povoadas,
como a gente viu no início da semana passada na Favela da Maré? E ao
uso de snipers para abater quem é visto com fuzil? Pereira - É óbvio, é claro. Isso não é criminoso comum. São pessoas com fuzis. E eles estão tendo acesso facílimo a esses armamentos. BBC News Brasil - Helicóptero atirando não amplia ainda mais a letalidade dessas operações, inclusive atingindo civis? Pereira -
E vai fazer o que? Vai fazer o que? Ele (criminoso) escolhe a população
civil para fazer de escudo. Isso inclusive é crime de guerra. Essa é a
realidade do Brasil. BBC News Brasil - Críticos à
ampliação das garantias para que policiais não sejam punidos por mortes
de civis dizem que isso pode abrir caminho para mais erros graves, como o
que a gente viu no Rio de Janeiro, com os 83 disparos contra o carro e a
morte de duas pessoas... Pereira - Isso
é uma realidade diária do Rio de Janeiro. Não é uma novidade. É o dia a
dia. A novidade aí é o Exército entrar nisso. Isso está acontecendo
agora em algum ponto do Rio de Janeiro.
As operações necessitam
de apoio aéreo. Isso é uma operação de guerra, querida. É isso aí. Você
chega lá no morro e lá dentro são centenas de fuzis no morro. BBC News Brasil - O que o senhor diria para as famílias que perderam os parentes nessas operações? Pereira -
É mais uma vítima de uma lista enorme. É uma tragédia. Qual a resposta
que podemos dar às vítimas que morrem na Síria? É uma tragédia de país
pobre. Tem que buscar reparar na Justiça.
Se todo mundo parar de
usar droga, o problema talvez acabe, embora eu não ache que eles vão
abandonar o fuzil para montar uma banca na feira. Coitadas dessas
famílias. Ninguém é insensível à dor delas. É uma tragédia horrorosa,
mas infelizmente é nossa realidade. É o Rio de Janeiro, é isso aí.
Era para ser uma espécie de clipe
musical sobre o crime na Paraíba. Sete jovens estão com os rostos
cobertos por panos brancos. Ao violão, um deles toca uma melodia
roqueira. Três garotos, mais atrás, carregam facas e fazem movimentos de
dança como se estivessem golpeando alguém. À frente, o vocalista nomeia
a música: "Mago do Facão".
A letra começa assim: "Pensamento
eloquente me leva a mais um aviso / poder do crime fica cada vez mais
infinito". O refrão, por sua vez, explica quem é o protagonista do som:
"Nossa união é massa em várias quebradas / fechamento forte / facção
Okaida".
O vídeo, gravado em uma prisão e publicado no YouTube em maio de
2017, mostra duas características da facção que hoje praticamente
domina o crime paraibano: juventude e autopromoção em redes sociais.
Composta
de jovens e adolescentes, a Okaida cresceu nos últimos anos:
atualmente, domina vários municípios, expandiu seus braços para
Pernambuco e conta com 6 mil membros "batizados" na Paraíba, segundo
investigação do Ministério Público Estadual paraibano.
Como
comparação, o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior e mais poderosa
facção do país, tinha pouco mais 30 mil "filiados" em 2017 -
recentemente, o grupo fez uma campanha para aumentar seu "exército".
Em
outubro do ano passado, os "soldados" da Okaida deram outra
demonstração pública de força: promoveram queimas de fogos de artifício
para comemorar o aniversário da sigla em seis cidades da Paraíba, como
João Pessoa, Campina Grande, Santa Rita e Guarabira. Vídeos da festa
estão nas redes sociais e no YouTube.
Em bairros mais pobres da
capital paraibana, a Okaida dita até um código de conduta para seus
integrantes e moradores. As proibições são pintadas nos muros: não pode
usar drogas na frente de crianças, roubar na comunidade, escutar som
alto tarde da noite e andar de moto em alta velocidade.
A origem da Okaida
Há histórias diferentes sobre a origem da facção. Okaida é uma forma
abrasileirada do nome da rede terrorista que já foi comandada por Osama
bin Laden, a Al-Qaeda. Mas a versão brasileira não tem nenhum aspecto
religioso por trás.
O certo é que a quadrilha cresceu em paralelo com seu maior rival, a facção Estados Unidos, criada em meados dos anos 2000.
O
conflito entre os dois grupos de criminosos já dura alguns anos nas
ruas e nos presídios - e, ironicamente, emula a guerra empreendida pelos
americanos contra o terrorismo.
No início dessa década, enquanto a
Okaida dominava bairros de João Pessoa como a Ilha do Bispo, São José e
Alto do Mateus, os membros dos Estados Unidos estavam presentes nas
regiões de Mandacaru, Bola da Rede e Novais.
Os dois grupos
também se diferenciam pelas tatuagens de seus integrantes, como registra
uma dissertação de mestrado concluída em 2015 na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte. Feito pelo tenente-coronel Carlos Eduardo
Santos, da Polícia Militar da Paraíba, o estudo mapeou os símbolos
marcados na pele dos filiados às facções.
Quem é da Okaida costuma marcar a pele com palhaços ou com o personagem Chucky, do filme Brinquedo Assassino. Já os membros da Estados Unidos tatuam a bandeira americana ou o desenho de um peixe.
Nos
últimos anos, porém, o crescimento da Okaida praticamente suplantou sua
rival em número e força, ainda que a Estados Unidos continue ocupando
alguns poucos bairros e pavilhões de cadeias de João Pessoa, segundo
agentes de segurança.
A presença do PCC
A relação entre as duas facções locais tem forte influência de um
elemento "forasteiro": o PCC. Até 2010, a Okaida era mais próxima do
grupo paulista, que fornecia parte da droga vendida nas ruas. Mas um
assassinato, que teria sido cometido a mando do PCC sem o aval dos
paraibanos, afastou os grupos e criou um antagonismo violento entre
eles.
Nos anos seguintes, o grupo de São Paulo se aliou à Estados
Unidos, aumentando o conflito local. A guerra foi promovida dentro e
fora dos presídios com episódios de barbárie.
Segundo
pesquisadores, desde o ínico da década passada, o PCC decidiu atuar no
atacado e fornecer a droga para grupos menores venderem nas capitais.
"No
início dos anos 2000, o PCC chegou nas fronteiras e conseguiu importar a
droga, que ele repassa para aliados menores", diz Bruno Paes Manso,
pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São
Paulo (USP) e um dos autores do livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Ed. Todavia).
A
chegada dos paulistas no Nordeste e a maior oferta de drogas aumentaram
rivalidades entre traficantes locais, avalia Paes Manso. "Como é um
mercado ilegal, as disputas se dão pela força. E como o PCC também
colocou armas na região, essa dinâmica produziu mais violência e
assassinatos", diz.
Na Paraíba, por exemplo, a taxa de homicídios
cresceu bastante nesse período. Em 1996, o Estado registrava 19,2
assassinatos por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência. Já em
2011, seu pico, o número chegou a 42,5 mortes por 100 mil habitantes.
No
Rio Grande do Norte, que também enfrenta problemas com facções
criminosas, o aumento foi mais dramático. Em 1996, o Estado registrava
9,4 assassinatos por 100 mil - em 2016, foram 53,3, alta de 466% em 20
anos.
Os jovens da Okaida
Um dos motores do crescimento da Okaida foi sua política de filiar
menores de idade - embora a Estados Unidos também utilize adolescentes,
seu aliado PCC evita batizá-los, segundo agentes de segurança da
Paraíba.
"Os que se dizem integrantes de facções no nosso Estado
são pessoas bastante jovens, inclusive admitindo-se adolescentes entre
os faccionados", diz o promotor Manoel Cacimiro Neto, do Gaeco (Grupo de
Atuação Especial Contra o Crime Organizado) do Ministério Público da
Paraíba.
Divergências com as "doutrinas" do PCC, aliás, explicam
também a criação de outra facção nordestina, o Sindicato do Crime do Rio
Grande do Norte. O grupo potiguar surgiu depois que criminosos
questionaram a obrigação do PCC de submeter decisões a chefes em São
Paulo.
Essa presença massiva da juventude nas facções do Nordeste
tem impacto negativo no índice de homicídios dessa faixa etária - são
eles as maiores vítimas dos conflitos.
Segundo o Atlas da
Violência, que reúne dados até 2016, a taxa de mortes violentas entre
jovens paraibanos de 15 a 29 anos chegou a 70,4 pessoas por grupo de 100
mil habitantes. Embora o número seja considerado muito alto, ainda é
menor que os de Estados vizinhos, como Ceará (87,6) e Pernambuco (105,3)
- a média nacional é 65.
No Rio Grande do Norte, cuja quadrilha
Sindicato do Crime também aposta no aliciamento de jovens e
adolescentes, o índice de assassinatos entre eles chega a 125,5 por 100
mil habitantes - alta de 734% em 20 anos.
Rede de facções
Segundo
Marcelo Gervásio, presidente da Associação dos Agentes Penitenciários
da Paraíba, os maiores presídios do Estado têm alas separadas para
integrantes da Okaida, Estados Unidos e PCC, mas a primeira ganha em
número.
"Essa divisão ocorre para garantir uma certa segurança do preso", afirma.
Do lado de fora das prisões, a Okaida se aliou ao Sindicato do Crime
em uma rede de facções que se contrapõem à presença do PCC no Norte e no
Nordeste - também fazem parte o Comando Vermelho, do Rio, e a Família
do Norte, que atua na região amazônica.
Essa divisão causou três
massacres de presos em cadeias da região em 2017 - os dois primeiros em
Manaus e Boa Vista. O último ocorreu no presídio de Alcaçuz, na Grande
Natal - ao menos 26 homens ligados ao Sindicato do Crime foram mortos
por detentos do PCC. O motim seria uma vingança pelo ataque em Manaus,
quando dezenas de integrantes da facção paulista foram assassinados por
membros da Família do Norte.
Segundo o promotor Manoel Cacimiro
Neto, do Gaeco, essa rede anti-PCC consegue abastecer a região com
drogas e armas vindas de países fronteiriços, como Colômbia e Bolívia.
Já
o delegado Braz Morroni, ex-chefe da delegacia de narcóticos da
Paraíba, aponta que a Okaida consegue carregamentos oriundos do chamado
"polígono da maconha", região de Pernambuco conhecida por produzir
grandes quantidades de cannabis.
Para o deputado estadual
paraibano Walber Virgolino (Patriotas), que foi secretário de
Administração Penitenciária da Paraíba e do Rio Grande do Norte, um dos
principais objetivos das facções locais é impedir que o PCC domine o
tráfico de drogas na região. "Hoje, o PCC só não tem o controle da
Paraíba por causa da Okaida", diz o parlamentar, hoje na oposição ao
governador João Azevedo (PSB).
A 'nova doutrina'
Há
pouco mais de um ano, houve uma cisão na Okaida. Integrantes ficaram
descontentes com o então chefe do grupo, o detento André Quirino da
Silva, conhecido como Fão.
"Alguns membros ficaram muito irritados
com a violência praticada por esse líder. Fão mandava matar pessoas da
própria facção", diz Braz Morroni, hoje titular da delegacia de roubos e
furtos.
Surgiu uma dissidência chamada Okaida RB (iniciais dos
apelidos de presos conhecidos como Ro Psicopata e Betinho, criadores do
novo grupo). Rapidamente, a nova facção ganhou milhares de adeptos (6
mil, segundo o Ministério Público), assumindo a maior parte do poder da
antiga.
Embora a Okaida RB ainda seja inimiga declarada do PCC,
ela passou a seguir parte de suas "doutrinas", segundo Morroni. A nova
estratégia, que inclui ditar um código de conduta nos bairros, tenta
diminuir os assassinatos e roubos próximos de pontos de venda de droga -
com isso, a facção evita a presença da polícia.
"O foco são os
negócios e não mais a violência extrema. Antigamente, dívidas de tráfico
eram punidas com a morte. Hoje, a Okaida negocia outras formas de
pagamento ", afirma o delegado.
Para o promotor Manoel Cacimiro
Neto, a Okaida "não possui uma estrutura hierarquizada rígida, a exemplo
do PCC". Ou seja, apesar de existirem chefes com maior influência, a
facção "pulverizou" o poder em vários territórios, segundo Neto.
A expansão
A ascensão da
Okaida coincide com uma sequência de quedas dos homicídios na Paraíba.
Segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que compila dados das
secretarias estaduais da área, o Estado registrou 1.286 assassinatos em
2017 - baixa de 16,7% em relação a 2014.
Segundo especialistas,
boa parte da queda está relacionada ao programa de redução de homicídios
do governo estadual, o "Paraíba Unida pela Paz", que conseguiu diminuir
a taxa de homicídios para 31,9 mortes a cada 100 mil habitantes em sete
anos.
Por outro lado, a Okaida expandiu seus braços para outros
cidades paraibanas. A facção atua em muncípios como Cachoeira dos Índios
e Campina Grande, a segunda maior cidade do Estado.
Reportagem do
jornal Correio da Paraíba mostrou que vários bairros da periferia de
Campina Grande já estão ocupados pelo grupo criminoso - em um deles, por
exemplo, integrantes da facção têm o controle até das chaves de uma
escola pública.
Ao sul, células da Okaida também foram desmontadas pela polícia em cidades de Pernambuco.
Em março do ano passado, uma operação da Polícia Civil descobriu que
integrantes da Okaida estavam organizando roubos e o tráfico de drogas
em Camutanga, município na zona da mata pernambucana. Outra célula foi
descoberta neste mês em Afogados, bairro do Recife.
Os presídios
pernambucanos também têm presença de integrantes da Okaida, segundo João
Carvalho, presidente do sindicato dos agentes penitenciários local.
"Nas cadeias de Pernambuco, a força das facções se divide entre PCC,
Okaida e Comando Vermelho", diz.
Os presídios e o que dizem os governos
Tanto
a Paraíba quanto Pernambuco têm superlotação em suas cadeias. Aliada à
precariedade estrutural dos espaços, o aumento exponencial da massa
carcerária facilita, em tese, o aliciamento de novos "soldados" pelas
facções criminosas.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a
Paraíba apresenta um déficit de 5.430 vagas no sistema carcerário - no
total, o Estado tem 13.189 presos. O governo diz que tem investido na
criação de novos presídios.
Já Pernambuco tem 32.884 detentos para
11.689 vagas - déficit de mais de 21 mil. O governo de Paulo Câmara
(PSB) afirma que "criou nos últimos quatro anos 2.374 vagas nos
presídios" para diminuir a superlotação.
Sobre a expansão da
Okaida, o governo da Paraíba diz que programas estaduais de redução da
violência têm dado certo. "O resultado foi a queda de crimes contra a
vida durante sete anos consecutivos no Estado e também nos primeiros
três meses de 2019."
Quando deixou sua cidade no Nordeste, ainda jovem, rumo ao Rio de Janeiro,
Zélia (nome fictício) sabia da fama de perigosa que a cidade carregava,
mas tinha ouvido falar que o lugar onde se instalaria, Rio das Pedras,
perto da Barra da Tijuca, na zona oeste, era mais calmo.
Sua fama
de "favela tranquila" não se deve à ausência de violência, mas à
imposição de certa ordem pela força e pelo medo, não do tráfico, mas da
milícia, grupo armado violento formado por integrantes e ex-integrantes
de forças de segurança do Estado, como policiais, bombeiros e agentes
penitenciários.
Apesar de ser a terceira maior favela da cidade,
atrás de Rocinha e Maré, Rio das Pedras não costumava frequentar o
noticiário nacional como as outras duas, marcadas por disputas entre
facções criminosas e entre criminosos e policiais.
Nos últimos meses, no entanto, Rio das Pedras vem se tornando
mais conhecida. Em janeiro, o Ministério Público e a Polícia Civil do
Rio prenderam lideranças de uma milícia que atua ali, no bairro vizinho
de Muzema e adjacências.
Investigações mostraram que Rio das
Pedras é a sede do chamado Escritório do Crime, suposto grupo de
extermínio formado por policiais reformados ou na ativa que pode ter
sido responsável pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e do
motorista Anderson Gomes, que aconteceu em março de 2018 e até hoje, 11
meses depois, não foi esclarecido. nullTalvez também te interesse
O que são e como agem as milícias acusadas de matar Marielle FrancoA polícia encontrou imagens que mostram o carro usado pelos assassinos passando por um via que margeia a favela.
Outro
motivo que fez país voltar o olhar para o lugar é por sua aparente
conexão com o poder. Segundo o jornal O Globo, Fabrício Queiroz,
ex-assessor do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL) - filho do
presidente Jair Bolsonaro - ficou abrigado ali após vir à tona que ele
fora citado em relatório do Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf) devido a uma movimentação atípica de valores em sua
conta.
Em 2005, o filho do presidente homenageou o policial
suspeito de integrar a milícia, Adriano Magalhães da Nóbrega, entregando
a ele a medalha Tiradentes, uma honraria concedida pelo Estado do Rio a
pessoas que prestaram bons serviços públicos. Alvo da operação policial
deflagrada em janeiro, Nóbrega está foragido.
Como é morar em Rio das Pedras hoje
Desde 1951, quando começou a ser ocupada, a favela de Rio das Pedras
cresceu muito, e rapidamente, acompanhando o desenvolvimento da cidade
na zona oeste. Seu nome se deve ao rio que a atravessa, que nasce na
floresta e deságua na Lagoa da Tijuca.
No início, era ocupada por
pescadores, diz Jorge Jáuregui, arquiteto responsável pelo projeto de
urbanização Favela-Bairro, implementado (mas não concluído) na década de
1990.
Sua população, esparsa durante a década de 1960, foi
aumentando atraída especialmente pelas oportunidades que surgiam na
região da Barra da Tijuca, bairro próximo e que passou por um boom de
construção civil nas décadas seguintes. Muita gente veio também de
outras favelas, numa época em que o poder público adotava uma política
de remoção, segundo dissertação de mestrado em arquitetura pela USP de
Izabel Mendes.
Cresceu até se tornar a terceira maior favela do
Rio, segundo estimativa da Prefeitura com base no IBGE de 2010. Tem
63.484 habitantes, boa parte deles de origem nordestina. Moradores
contam que até hoje há um ônibus que faz semanalmente viagens de e para o
Ceará direto do bairro.
A presença nordestina é perceptível em
qualquer ponto do bairro, nos sotaques das pessoas, no forró das caixas
de som. As ruas são agitadas.
Marta (nome fictício) veio de um Estado do Nordeste depois de se
casar com um homem que já morava em Rio das Pedras. Célia (também nome
fictício) veio ainda adolescente, deixando para trás uma vida de
doméstica pela qual ganhava R$ 150 por mês.
Elas e outros
moradores com quem a BBC News Brasil conversou dizem que sabem que a
região é controlada por milicianos, que isso é comentado em conversas,
mas não lidam diretamente com eles e não têm sua vida afetada por suas
atividades.
"Às vezes a gente fica sabendo que alguém fez alguma
coisa errada - roubou, vendeu droga, algo assim -, e aí essa pessoa
some", diz uma delas.
"Uma vez, era cedo de manhã, vi dois homens
numa moto atirarem nos pés de outro homem que estava em pé em frente a
um bar. Aqui é assim, eles avisam uma vez, duas vezes, na terceira te
pegam", diz outro morador. "Você leva uma vida tranquila, mas não pode
fazer coisas que eles acham ruins. Acostumar, a gente não se acostuma,
mas vive um dia após o outro."
A violência lá é presente, mas mais velada do que em outras favelas, dizem.
"Não
tem gente armada na entrada e nas ruas que nem em outros lugares. Se
pudesse, me mudaria para um bairro melhor, mas tenho amigos que moram em
favelas como a Rocinha e sei que a vida deles é mais difícil. Eles
passam noites em claro ouvindo tiroteio, às vezes não sabem se podem
sair de casa para o trabalho. Aqui pelo menos não tem isso."
O que é a milícia e por que Rio das Pedras é considerado seu 'berço'
É comum ouvir que Rio das Pedras é o berço das milícias do Rio. Ainda
que não seja possível afirmar isso categoricamente, é consenso entre
pesquisadores que esses grupos têm décadas de atuação no bairro. O
modelo de poder paralelo, à margem do estado mas com a participação de
membros dele, hoje é forte principalmente na zona oeste da capital e na
Baixada Fluminense.
"Estes grupos podem ter 20, 30 ou até 40
membros. São pessoas que de alguma forma têm acesso privilegiado a armas
e bons contatos na polícia, o que lhes confere proteção. Eles ocupam
uma área sob a justificativa de que proporcionarão a segurança que o
Estado não é capaz de fornecer, deixam um grupo armado no local e partem
para outras áreas para invadi-las", diz Michel Misse, diretor do Núcleo
de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
As milícias têm como objetivo principal o lucro, obtido a princípio pela cobrança da proteção oferecida nestes locais.
"Eles
chegam dizendo que trarão a paz, mas isso tem um preço, que é a taxa de
segurança imposta a moradores e comerciantes. Quem se opõe, é morto.
Depois, as milícias percebem que podem criar um negócio mais amplo e
ampliam o portfólio de suas atividades", explica o sociólogo José
Cláudio de Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro (UFRRJ).
O pesquisador diz que atualmente as milícias
estão envolvidas na oferta de uma variedade de serviços, como venda de
água, gás e cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e
internet piratas, roubo e refino de petróleo cru para fabricação de
combustível, coleta de lixo e também na apropriação de terras públicas e
privadas abandonadas ou sem uso, que são loteadas e vendidas
ilegalmente.
No início, esses grupos não eram chamados de milícia, mas de "polícia mineira".
"Num
primeiro momento, surgiram grupos que são protótipos de milícia,
associados a ocupações urbanas de terra, liderados por civis. Eles
constroem relações com a população e elegem lideranças, sempre matando e
fazendo o uso da violência. A partir dos anos 2000, o modelo atual,
liderado por pessoas ligadas às forças de segurança, começa a emergir",
diz Alves.
Seguindo linha parecida com a de Alves, o sociólogo
Ignacio Cano, que também pesquisou milícias no Rio, diz que o modelo era
um pouco diferente do de hoje. "Havia nas polícias mineiras não só
forças de segurança mas também líderes comunitários que não eram
policiais." Um exemplo de Rio das Pedras era Josinaldo Francisco da
Cruz, o Nadinho, candidato da associação de moradores eleito vereador em
2004 e assassinado em 2009.
Quando começou a fazer pesquisa em Rio das Pedras, na década de 1990, Cano diz já havia um grupo que controlava o território.
O
tipo de atividade era diferente naquela época. "Não ia na linha de
pagamento de taxas por serviços, como hoje, era mais um controle
imobiliário. Controlavam todas as transações - quem podia construir onde
etc. Hoje é um modelo mais invasivo, que lucra a partir de qualquer
coisa", diz Cano.
Esses grupos, diz Cano, impunham medo e criavam
certa estabilidade na região. Não deixavam que traficantes de drogas se
estabelecessem e eram a principal autoridade local.
"O Nadinho dizia, 'aqui o povo vem do Nordeste, é um povo ordeiro,
que não gosta de tráfico'. Eles impunham ordem, expulsavam o tráfico,
diziam o que podia ou não fazer, havia um projeto moral - decidiam se
podia ouvir certas letras de música ou não, coisas assim. Diretores de
escola, quando não conseguiam ônibus para os alunos, iam falar com a
milícia e eles providenciavam. Há depoimentos que mostram que, quando
crianças estavam aprontando na escola, chamavam a milícia para mandar
uma mensagem."
Problema crescente
Cano
diz que havia também certa condescendência do poder público em relação a
esses grupos. "O Cesar Maia (ex-prefeito do Rio) dizia que eram um mal
menor."
Depois que funcionários do jornal O Dia foram torturados
por milicianos, essa postura mudou. Entre 2006 e setembro deste ano,
1.709 pessoas foram presas por ligações com milícias, e os milicianos
foram obrigados a adotar um perfil mais discreto, diz Cano.
Alves acha que o fortalecimento da milícia em Rio das Pedras tem a
ver com o acelerado crescimento populacional da favela e a demanda por
terras.
"É uma comunidade que se expande muito rápido, tem um
mercado imobiliário pujante. A milícia tem acesso ao mapa da região e
começa a ver onde pode montar negócios, ocupar o solo urbano, é um
grande negócio."
Segundo o estudo Favelas Sob o Controle das Milícias no Rio de Janeiro,
de Alba Zaluar e Isabel Siqueira Conceição, em 2002 e 2003 a associação
de moradores fez uma campanha de regularização e transferência de
títulos eleitorais dos moradores de Rio das Pedras, já que boa parte
deles vinha do Nordeste. A intenção era eleger Nadinho, o que deu certo.
O estudo sugere que teria sido a partir daí que começou "a
grande expansão da milícia". Elas assumiram controle territorial em
outros bairros, às vezes tomando-os de traficantes. Também foi a partir
de então que entraram de vez para a política - outras favelas dominadas
por milícias começaram a eleger representantes para o Legislativo da
cidade e do Estado.
Cano diz que as eleições lá acontecem da mesma
maneira que em outros territórios controlados por grupos armados: "faz
campanha quem eles (milicianos) querem".
As equipes dedicadas ao resgate das
vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho e à procura dos
desaparecidos poderão contar com a ajuda dos dados sobre os sinais de
celulares de quem estava na região no horário do acidente quando as
buscas forem retomadas.
Na noite de ontem, a AGU (Advocacia Geral
da União) obteve na Justiça Federal de Minas Gerais uma liminar que
exige que as operadoras de telefonia móvel liberem informações sobre os
aparelhos daqueles que estavam na área afetada pela tragédia no Córrego
do Feijão sempre que solicitado pelas autoridades envolvidas com a
operação de resgate e salvamento.
Através dos dados é possível
saber também qual torre de comunicação recebeu o último sinal emitido
por um celular que por ventura esteja agora inativo, diminuindo a área
de busca o que facilitaria a localização dos aparelhos.
"O objetivo é auxiliar as equipes de busca a localizar as cerca
de 350 pessoas desaparecidas após o ocorrido", diz a AGU em comunicado.
Com
as informações, as equipes de socorro poderiam saber, por exemplo,
quais aparelhos se mantiveram ativos após a tragédia e quais estão
inativos desde então.
A
assessoria de imprensa do Corpo de Bombeiros afirmou que, até o
momento, o recurso ainda não está sendo utilizado e que os profissionais
responsáveis pela estratégia de resgate estão reunidos no quartel da
Polícia Militar no Morro do Querosene para definir os próximos passos da
operação de resgate.
Na madrugada deste domingo, técnicos da mineradora Vale informaram
que havia "risco iminente de rompimento" da barragem B6 e, por isso, o
trabalho dos Bombeiros e da Defesa Civil no local foi interrompido.
A
decisão da Justiça de Minas se estende aos clientes que estavam nas
imediações da Mina de Córrego de Feijão entre a meia-noite de
quinta-feira, dia 24 de janeiro, e o mesmo horário do dia 25, em um raio
de 20 quilômetros.
Conforme o pedido da AGU, as operadoras Vivo,
Tim, Claro, Oi, Nextel, Algar Telecom e Sercomtel devem entregar os
dados diretamente aos envolvidos nas operações.
A agência informa que autorização judicial é necessária porque o sigilo das comunicações é protegido pela Constituição.
Ajuda externa
Neste
domingo, chega a Minas Gerais uma equipe de 136 soldados do Exército
israelense, especializada em operações de resgate em situações extremas,
para auxiliar na busca por sobreviventes.
A informação, antecipada no sábado pelo presidente Jair Bolsonaro, foi confirmada pelo governo de Minas Gerais.
Na
segunda-feira, a equipe fará um reconhecimento da área e iniciará em
seguida os trabalhos. Além de especialistas em salvamento, a equipe
israelense conta com cães farejadores e 16 toneladas de equipamentos,
incluindo radares terrestres.