quinta-feira, 28 de junho de 2018

Cinco coisas importantes que aconteceram no Brasil enquanto a bola rolava na Copa

Às vésperas da definição das partidas das oitavas de final, a Copa do Mundo da Rússia dominou o noticiário nos últimos seis dias.
Enquanto as atenções se voltavam para as atividades da Seleção Brasileira em São Petersburgo e em Moscou, no entanto, muita coisa aconteceu no Brasil e no mundo.
O STF suspendeu o julgamento de Lula - e depois decidiu retomá-lo - e soltou o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, enquanto o Congresso deu sequência à tramitação do PL (projeto de lei) dos Agrotóxicos.
A BBC News Brasil explica cinco notícias fora da Copa do Mundo que surgiram entre a vitória da canarinho sobre a Costa Rica e o 2 a 0 contra a Sérvia de quarta-feira, caso você tenha perdido.

Supremo, Lula, Dirceu e 'máfia da merenda'

Na noite de sexta-feira, depois de o Brasil bater a Costa Rica, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin arquivou o pedido de liberdade feito pela defesa do ex-presidente Lula e que seria julgado pela Segunda Turma da corte na terça-feira.
A defesa recorreu e, já na segunda-feira, o magistrado recolocou o pedido da pauta - mas o enviou ao Plenário do STF. Como foi dado prazo de 15 dias para a Procuradoria Geral da República (PGR) se manifestar e o Supremo entra em recesso em julho, o julgamento deve acontecer apenas em agosto.
A mudança foi vista como desfavorável para o petista, preso em Curitiba desde 7 de abril, já que a Segunda Turma - composta pelos juízes Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello - hoje tem viés mais "garantista", pois tende a dar mais peso em suas decisões aos direitos dos acusados no processo.
Já o plenário, formado pelos onze ministros, tem se mostrado bastante dividido quando discute direitos fundamentais dos réus.
Na terça-feira, em uma sessão com direito a prorrogação no segundo tempo - que se estendeu das 9 h até o fim da tarde -, a Segunda Turma concedeu liberdade ao ex-ministro José Dirceu, preso havia um mês, e suspendeu a tramitação de ação penal contra o tucano Fernando Capez (SP), acusado por envolvimento na "máfia da merenda".
No caso do ex-ministro da Casa Civil de Lula, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski entenderam que há chances reais da pena de Dirceu, condenado em segunda instância por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, ser modificada em instâncias superiores - o que, se confirmado, significaria que sua detenção não seria correta.
Nos dois casos, o placar foi de 3 a 1 - Fachin votou contra e Celso de Mello estava ausente na sessão.

Projeto que libera agrotóxicos avança

Na segunda-feira, a comissão especial da Câmara aprovou o Projeto de Lei dos Agrotóxicos (PL 6299/2002), que segue para o Plenário da Casa.
O texto, que tem dividido ruralistas e ambientalistas, passou após oito tentativas de votação nos últimos meses (uma das sessões, em 20 de junho, foi interrompida porque um "artefato suspeito", semelhante a uma bomba, foi encontrado na sala de votação).
Quem critica o projeto alega que ele aumentaria a disponibilidade de agrotóxicos no país, indo na contramão da Europa e dos EUA, que têm aprovado leis mais restritivas. A nova medida, dizem, favoreceria apenas os fabricantes dos químicos, facilitando a entrada de produtos possivelmente danosos à saúde e ao ambiente.
Os produtores, por sua vez, reclamam da demora na liberação dos agrotóxicos e dizem que, quando o governo autoriza a aplicação, os produtos já estão obsoletos. Os que defendem o projeto afirmam ainda que ele é mais eficiente e condizente com as normas internacionais de uso das substâncias.
Uma das principais controvérsias é a ideia de que agrotóxicos só serão proibidos no país caso apresentem "risco inaceitável", um conceito mais amplo que o estabelecido pela lei 7.802, de 1989, que proíbe substâncias que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas.
Outro ponto polêmico é a redução das competências de controle e fiscalização de órgãos como Anvisa e Ibama - que já se posicionaram publicamente contra o PL -, que perderiam parte das atribuições para o Ministério da Agricultura.
Os agrotóxicos não seriam mais avaliados e classificados por aqueles órgãos, que apenas homologariam a avaliação realizada pelas empresas registrantes de produtos agrotóxicos.
Até o nome que o Brasil dá a esses produtos entrou em discussão. Inicialmente, o PL sugeria que "agrotóxicos" fosse substituído por "produtos fitossanitários". Em resposta à reclamação de opositores, o relator do projeto, deputado Luiz Nishimori (PR-PR), decidiu pelo termo "pesticidas".

Inquérito contra Richa sai das mãos de Moro

Também na segunda, o juiz Sergio Moro encaminhou para a Justiça Eleitoral inquérito contra o pré-candidato ao Senado Beto Richa (PSDB).
Desde que renunciou ao mandato para concorrer e perdeu o foro privilegiado, em abril deste ano, o ex-governador do Paraná vinha sendo investigado na primeira instância por suposto caixa dois nas eleições de 2008, 2010 e 2014 exposto em delações da Odebrecht.
A defesa de Richa, entretanto, recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu que o inquérito deveria ser analisado pela Justiça Eleitoral.
No despacho, porém, Moro afirma que a competência é da Justiça Federal, já que os casos investigados não se tratariam "de mero caixa dois" e teriam indício de corrupção, e pede que os autos sejam devolvidos à 13ª Vara Federal para a continuação da análise dos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e fraude em licitação.
Em abril, dias depois de perder o foro privilegiado, o ex-governador de São Paulo e pré-candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin, também escapou da primeira instância. No caso do tucano, o STJ enviou o inquérito diretamente para a Justiça Eleitoral do Estado, apesar do pedido da PGR para que fosse encaminhado pela Justiça Federal.
O ex-governador também é investigado por suspeita de ter recebido doações da Odebrecht que não teriam sido declaradas.

Vice-presidente americano visita o Brasil

Na véspera da partida entre Brasil e Sérvia, o vice-presidente americano, Mike Pence, desembarcou no Brasil. A Venezuela foi o principal tema da reunião com o presidente Temer, mas a situação das 49 crianças brasileiras que estão atualmente em abrigos nos EUA - resultado da política migratória do país, que está sob intenso debate - também foi discutida pelos dois.
O vice-presidente americano aproveitou para passar um recado aos brasileiros que eventualmente cogitem imigrar ilegalmente para o país: "Não arrisquem as suas vidas ou a de seus filhos tentando entrar nos Estados Unidos via contrabandistas e traficantes de pessoas. Se não têm condições de entrar legalmente, não venham."

Adolescente morre baleado a caminho da escola no Rio

Dois dias antes de o Brasil jogar contra a Costa Rica, na quarta-feira, o adolescente Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, foi ferido em um tiroteio no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, durante uma ação da polícia contra o tráfico de drogas. Ele foi encaminhado para o hospital, mas morreu no dia seguinte.
O jovem foi atingido na barriga por uma bala perdida, enquanto caminhava para a escola, acompanhado da mãe.
Moradores de comunidades do Complexo da Maré, na zona norte da cidade, fizeram protestos após a morte do garoto e bloquearam trechos da avenida Brasil e das linhas Vermelha e Amarela.
A ONU chegou a se pronunciar sobre o caso e, em comunicado divulgado nesta terça, lamentou a morte violenta do estudante, que alimenta a vergonhosa estatística de 31 homicídios de crianças e adolescentes por dia no Brasil.
O órgão destacou que adolescentes negros estão três vezes mais vulneráveis a mortes violentas do que brancos da mesma faixa etária.

sábado, 9 de junho de 2018

'Passei 20 anos tentando provar que meu pai era um pedófilo assassino'

No dia 23 de fevereiro de 1957, uma garota de 11 anos, Moira Anderson, saiu da casa de sua avó na cidadezinha de Coatbridge, perto de Glasgow, na Escócia, para comprar gordura para cozinhar. Ela nunca voltou para casa.
"Era uma cidade muito pequena, onde todo mundo conhecia todo mundo. Então, era seguro deixar as crianças fazerem o que quisessem. Depois do desaparecimento de Moira, tudo mudou", relembra Sandra Brown, que tinha oito anos na época e morava a algumas ruas da família dela.
"Os pais diziam: 'não fique fora até tarde, lembre do que aconteceu com aquela garota'. Todo mundo ficou triste pela família, sabíamos que a mãe continuava colocando um prato na mesa para ela, que nunca reapareceu."
Na época, a suspeita recaiu sobre membros da família de Moira. Especulava-se que tivesse havido uma briga e que alguém tivesse perdido a paciência com ela.
"Seu tio, que a havia levado para tomar um chá naquele dia, foi alvo de boatos por muito tempo, porque teria sido a última pessoa a ver a menina", diz.
Sandra, no entanto, acredita firmemente que seu pai, Alexander Gartshore, estuprou e matou a menina – e há cerca de 20 anos luta para comprovar essa hipótese e encontrar seus restos mortais.

Predador de crianças

Cerca de dois meses depois do sumiço de Moira, o pai de Sandra, que era motorista de ônibus na cidade, de repente saiu de casa, sem dar maiores explicações.
"Me disseram que ele estava em um tipo de hospital que crianças não podiam visitar. E eu aceitei isso. Mas, aos 36 anos de idade, descobri por acidente que ele estava preso por estuprar minha babá, que era uma menina de 12 ou 13 anos."
Quando já vivia em outra região da Escócia, Sandra foi reconhecida por uma antiga vizinha, que se lembrava de seu pai e, sem saber, fez a revelação que mudaria sua vida.
"Naquele momento, muitas coisas começaram a fazer sentido, porque eu nunca me senti muito confortável perto do meu pai dos 5 aos 8 anos", conta.
"Meu pai tinha um carro, coisa que não era comum na época, e usava isso como atrativo para as crianças. E os pais das minhas amigas não viam problema em deixá-las sair para dar uma volta comigo e com meu pai."
"Mas aí ele me mandava comprar doces ou sorvetes. E agora percebo que havia sinais de que minhas amigas não estavam se sentindo confortáveis quando eu voltava. Ele as estava molestando. Eu me lembro delas me dizendo depois: 'Não posso mais brincar com você, meus pais não deixam'."

'Bonita demais para o seu próprio bem'

O pai de Sandra chegou a voltar a viver na casa da família após a prisão, mas os dois perderam o contato depois que ele fugiu com uma amante.
A menina tornaria-se professora e uma mãe superprotetora com os filhos, receosa do que aconteceu com suas amigas – e com Moira – pudesse acontecer também com eles.
"Eu tirei até licença para dirigir micro-ônibus para que eu mesma pudesse levar meus filhos nos passeios e piqueniques da escola e estar lá com eles", diz.
A escocesa só voltou a encontrar o pai em 1992, no funeral de sua avó. E, ao confrontá-lo sobre seu comportamento, teve mais uma revelação inesperada.
"Nossa conversa já estava desconfortável, mas, de repente, ele falou de Moira e perguntou se eu me lembrava dela. Eu disse que sim. E aí fiquei sabendo que, na verdade, ele foi a última pessoa a ver Moira, porque ela tinha subido no ônibus dele no meio da tempestade de neve que aconteceu naquele dia", conta.
"Foi tão chocante que demorou alguns minutos para que eu entendesse, mas eu estava determinada a conseguir respostas. Perguntei se ele conhecia Moira, e ele disse que não. E quando eu o perguntei se ele foi questionado pela polícia na época, ele disse que sim. Mas nunca tinha dito aquilo."
Sandra entrou em contato com a polícia e conseguiu rever o arquivo do antigo caso, que ainda era considerado apenas como "desaparecimento".
"Quanto mais falávamos sobre o caso, mais ficava claro que meu pai não havia sido questionado na época e não aparecia na investigação original", diz.
Só em 2010, depois de muita insistência, ela conseguiu que a polícia considerasse o sumiço de Moira como um assassinato na nova unidade de Cold Cases (algo como "casos antigos que não foram resolvidos", em tradução livre) criada pela força policial.
Seu pai, no entanto, havia morrido quatro anos antes, em 2006, aos 86 anos. "Eu consegui vê-lo pela última vez cerca de uma semana antes de ele morrer. Foi muito difícil. Eu queria que ele tirasse essas coisas do peito dele, pedi que ele pensasse na família de Moira", relembra.
"Ele deu desculpas horríveis, mas, em determinado momento, disse: 'Ela era bonita demais para seu próprio bem'. E depois falou que aquela criança o 'assombrou durante toda a vida'."
Naquele ano, Sandra publicou o livro Where There is Evil ("Onde Existe o Mal", em tradução livre), no qual fala de sua crença de que seu pai havia matado a menina.

Busca pelos restos mortais

Com o tempo, outras lembranças da infância fizeram com que Sandra tivesse mais convicção da responsabilidade do pai no sumiço e na morte de Moira Anderson.
"Eu tinha memória de vê-lo perto do parque onde todo mundo brincava. E uma vez ele estava tentando atrair duas meninas para seu carro com doces. Eram Moira e sua melhor amiga. Essa amiga está viva e confirmou para mim que isso realmente aconteceu", afirma.
"Também sei que o banco de trás do ônibus dele deitava, o que não era comum nos outros carros. Havia uma alavanca na frente que ele podia puxar. E ele costumava brincar com as pessoas, puxava a alavanca e elas caíam para trás."
Depois de reabrir o caso, os policiais entraram em contato com outras testemunhas em Coatbridge e fizeram uma linha do tempo precisa das últimas horas de Moira – até o momento em que ela entra no ônibus dirigido por Alexander Gartshore.
Em 2014, a polícia escocesa afirmou que o pai de Sandra era o principal suspeito da morte da menina e que, caso ele estivesse vivo, seria preso e acusado do crime.
"Está claro que ela entrou e nunca saiu dali. A última peça do quebra-cabeças é encontrar seus restos mortais", afirma.
Em entrevista ao programa de rádio Outlook, da BBC, em maio deste ano, Sandra disse que uma nova testemunha apareceu, com uma possível pista de onde o corpo de Moira Anderson pode ter sido colocado após sua morte. A polícia está investigando um túnel em desuso na região.
A professora escocesa também criou a Fundação Moira Anderson, para apoiar pessoas que foram diretamente afetadas pelo abuso sexual de crianças – seus familiares e cônjuges.
"Eu me atenho a algumas das boas memórias que tenho do meu pai, até os cinco anos de idade. Mas infelizmente, pesa mais o comportamento que ele teve depois. Isso me fez ser alguém que alerta as pessoas para que elas ouçam o que as crianças têm a dizer", afirma.
"É difícil quando a pessoa é um membro da família, você não quer confrontar a verdade. Mas quando você faz isso, a jornada que começa pode ser muito importante", conclui.

terça-feira, 22 de maio de 2018

Polícia investiga grupos no Facebook suspeitos de incitar suicídio de jovens no Brasil

A morte trágica de um adolescente de 15 anos, que morava em Goiás e se enforcou em fevereiro deste ano, deu o alerta para a Polícia Civil do Estado sobre a atuação de um grupo online de incentivo ao suicídio nas redes sociais. Outras mortes de adolescentes, que teriam sido encorajadas pelos mesmos perfis online, também são investigadas. De acordo com os investigadores, os casos estariam relacionados a dois grupos de Facebook cujos nomes, por questões de segurança, a BBC Brasil optou por omitir.
Uma das páginas foi retirada do ar, a outra continua ativa, apesar de já ter sido temporariamente removida após denúncias. Ambas são apontadas como responsáveis por incentivar jovens a atentar contra a própria vida. Induzimento ao suicídio é crime previsto pelo Código Penal brasileiro: quando o resultado da indução é a morte de alguém, o acusado pode pegar até 6 anos de prisão.
De acordo com as investigações, as duas páginas de Facebook possuem o mesmo administrador, um perfil supostamente pertencente a um brasileiro. Juntas, chegaram a somar mais de 43 mil membros. A primeira, que segue ativa, possui, atualmente, 25,6 mil membros.
Os líderes dos grupos que incentivam suicídios se apresentam como adolescentes de diversos Estados, entre eles São Paulo, Mato Grosso, Rondônia e Amazonas. Há também administradores em outras regiões do Brasil, que não foram reveladas pela polícia.
Por meio de desafios, cuja missão final é atentar contra a própria vida, participantes dos grupos teriam sido induzidos ao sucídio.
As tarefas são repassadas aos adolescentes por meio de grupos de WhatsApp, para os quais são convidados os participantes dos grupos de Facebook que se interessam pelos desafios. "Nesta segunda fase, somente aqueles que recebem um link de convite podem entrar. É mais complicado termos informações sobre esses grupos, porque são fechados", afirma a delegada Sabrina Leles, da Delegacia Estadual de Repressão aos Crimes Cibernéticos (DERCC) de Goiás.
Entre os desafios estão: invasão a redes sociais e computadores de terceiros, disseminação de fake news e automutilação.
"Os grupos dizem que o objetivo deles é fazer piada, contar histórias e apoiar uns aos outros. No entanto, temos provas que mostram que o objetivo é criminoso", diz a delegada.

O jogo

Os desafios têm início quando os jovens são chamados para participar dos jogos. Na maioria dos casos, os convites são feitos por meio de mensagens privadas no Facebook, motivadas pela participação em páginas pertencentes aos grupos na rede social. Os responsáveis por convidar os adolescentes são os moderadores ou administradores dos grupos, que têm a missão de atrair o maior número possível de jovens.
Segundo a Polícia Civil, os grupos investigados têm como figura mais importante o curador, cujo nome não será divulgado pela BBC Brasil. Abaixo dele estão os administradores e depois os moderadores. Cada um possui funções no jogo, que variam da cooptação de jovens à invasão de computadores.
Um adolescente que participou do grupo relatou à Polícia Civil que os organizadores se tornam íntimos dos participantes, perguntam sobre questões familiares e relacionamentos amorosos.
"Eles pegam nos pontos fracos dos participantes. Dizem que a família não os ama e que os amigos não gostam deles. Depois de um tempo, começam a incutir a ideia de que ninguém gosta do adolescente de verdade e, por isso, seria melhor ele acabar com o sofrimento e se matar, porque todo mundo morre no final. Aconselham o adolescente a 'adiantar o processo'", relata Leles.
Antes de aceitar participar dos desafios, os jovens são informados de que a última fase é o suicídio. Três adolescentes, que participaram do jogo, confirmaram à polícia que sabiam da etapa na qual teriam que atentar contra a própria vida. Um deles disse ter tentado se matar duas vezes, para cumprir a fase final, porém foi socorrido por parentes.
O fato de o jovem conhecer as etapas do jogo antes de iniciá-lo é a principal diferença entre os desafios e o jogo virtual Baleia Azul - que também estimula adolescentes a tirar a própria vida -, diz a Polícia Civil. "No Baleia Azul, o curador se apossava de informações da vida íntima do adolescente. O jovem era obrigado a participar, mediante ameaça de que seria punido caso não concluísse os desafios. Nos grupos atuais, os adolescentes participam porque, em tese, querem", pontua a delegada.
Professora de Psiquiatria da infância e adolescência da Faculdade de Medicina da USP, Sandra Scivoletto afirma que o adolescente que participa desse tipo de desafios possui, geralmente, algumas dificuldades em relação a si mesmo e a seu círculo social, como insegurança e problemas de autoimagem.
"Eles aceitam esses desafios para fortalecer a autoestima. Não podemos dizer, pois ainda faltam estudos, que haja uma pré-disposição ao suicídio. Mas podemos afirmar que a participação nesses desafios envolve adolescentes com problemas anteriores na vida real, não apenas no mundo virtual", diz.

Os desafios

Logo que aceitam entrar no jogo, os participantes são colocados em um grupo de WhatsApp. Nele, os administradores ou moderadores distribuem os desafios. Uma das tarefas é a invasão de computadores. A prática ocorre por meio de um vírus, vendido pelos administradores, com o qual seriam capazes de invadir sistemas e perfis em redes sociais.
Entre as missões também estão apagar perfis de Facebook, indicados pelos administradores; implantar fake news, por meio de perfis invadidos; buscar novos membros para os desafios e participar de ataques a páginas nas redes.
Os ataques funcionam por meio de comentários ofensivos em páginas de conhecidos do participante ou a perfis de famosos. Eles costumam reunir diversos membros dos grupos investigados e não se restringem àqueles que estariam participando dos desafios.
Outro desafio proposto pelos líderes do grupo é a automutilação. O participante deve cortar parte do próprio corpo e enviar imagens do sangramento. À Polícia Civil, a ex-namorada do adolescente que se suicidou em Goiás disse que o jovem tinha passado a se cortar pouco antes de cometer suicídio. Duas semanas antes da morte do rapaz, os pais notaram os cortes em seu braço. "Ele disse que tinha se machucado em nossa chácara. Como não tínhamos motivo para pensar que ele estivesse mentindo, acreditamos", relata o gerente comercial Onilton Pires, pai do adolescente.
Cada etapa cumprida pelo participante representa mais prestígio entre os administradores. "Eles vão se tornando importantes na hierarquia desse grupo", diz a delegada.
A fase do suicídio é considerada, para o grupo, o ápice do desafio. "Os administradores orientam passo a passo como obter coragem" para o ato, diz a delegada.

As investigações

A descoberta sobre os grupos de incentivo ao suicídio se deu após Onilton Pires relatar à Polícia Civil um fato que causou estranheza no velório de seu filho: diversos adolescentes desconhecidos acompanharam a cerimônia e fizeram fotos no local. Alheios ao luto da família, eles não demonstravam tristeza. Conforme as investigações da Polícia Civil, o objetivo deles era mostrar aos administradores do jogo que o jovem realmente havia se suicidado.
Outro fato que também despertou desconfiança na polícia foi o suicídio de Júlio (nome fictício), de 13 anos, também em Goiás, no mesmo dia em que o filho de Onilton se matou. O garoto se jogou do 26º andar do prédio da avó. A família dele também procurou a Polícia Civil. Porém, as investigações comprovaram que Júlio não participava dos desafios. "Ele tinha amplo acesso à internet e havia manifestado vontade de se matar, mas não participava dos grupos", conta a delegada Sabrina Leles.
Em relação ao filho de Onilton Pires, a Polícia Civil assegura que ficou comprovada a participação do jovem nos grupos e que eles efetivamente incentivaram seu suicídio. Para tal constatação, as investigações analisaram o computador do adolescente. O aparelho havia sido formatado por ele antes de morrer e todos os dados foram apagados. O fato chamou a atenção dos pais do jovem, que disseram que ele não costumava excluir as informações do computador.
Alguns itens foram recuperados pela Polícia Civil, entre eles uma carta de despedida do jovem. "Em um trecho, ele dizia que não era para os pais se preocuparem, porque ele não havia participado de nenhum jogo de internet. Isso causou estranheza, porque a família disse que nunca o questionou sobre esse assunto. Era aquela coisa da psicologia invertida: 'vou dizer que não participo, para eles não pensarem isso'. Mas, no fundo, ele participava, sim", diz a delegada.
No quarto do jovem também havia um pen drive com um vírus capaz de invadir sistemas e redes sociais, além de implantar fake news. Os amigos do jovem disseram à polícia que ele comprou o vírus do curador de uma das páginas, por pouco mais de R$ 400, para cumprir parte das etapas do jogo.
Por meio das poucas conversas resgatadas do computador, a polícia identificou Marcelo*, de 18 anos. Ele teria sido o intemerdiário dos contatos entre o jovem morto e os administradores dos grupos pró-suicídio.
Marcelo também participava do jogo. Porém, disse ter desistido dos desafios porque não queria se matar. Em depoimento à Polícia Civil, o jovem declarou acreditar que o amigo foi influenciado a participar do jogo e a pôr fim à própria vida.
Para Onilton, no entanto, Marcelo teria sido o responsável por convencer o garoto a participar do jogo. "Não tenho nenhuma dúvida de que ele influenciou meu filho a entrar nisso. Meu filho era muito corajoso, então ele deve ter mostrado como funcionavam os desafios, para convencê-lo", diz o pai.
Além de responder pelo crime de incentivo ao suicídio, que prevê prisão de dois a seis anos, se o ato for consumado, os administradores das duas páginas podem também responder por tentativas de suicídio que resultem em lesão corporal grave. Nesse caso, a pena pode variar de um a três anos de reclusão. Como os investigados são menores de idade, a condenação e cumprimento da pena devem seguir diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente. Conforme a Polícia Civil, nenhum jovem foi apreendido até o momento.
Por meio de comunicado publicado em sua página no Facebook, os administradores da página ainda ativa negaram a realização dos desafios suicidas. Para eles, tais informações são "puro sensacionalismo da mídia". "Menosprezamos tal conduta [de incentivo ao suicídio]. Consideramos um ato horrível. Buscamos ser uma família e ajudar a todos que precisam", diz trecho do texto disponibilizado no grupo.
A delegada Sabrina Leles frisa que há provas suficientes para determinar o elo entre o grupo e o jogo que incentiva o suicídio. "Eles não vão confessar isso no Facebook, onde qualquer um pode ver. Esse incentivo acontece de modo individual. Tudo o que foi levantado pela Polícia Civil tem como base provas e declarações colhidas nas investigações."
Conforme Leles, as apurações apontaram ainda que outros grupos de Facebook também teriam incentivado suicídios de adolescentes. "Os casos estão sendo investigados", explica.

Outras mortes

Os suicídios de duas adolescentes de Goiás são investigados pela Polícia Civil, que suspeita que elas também possam ter sido incentivadas pelo grupo ainda ativo. As jovens moravam no município de Rio Verde. Uma delas, de 14 anos, se jogou do quinto andar do prédio de sua escola, em 7 de março. Semanas depois, a outra garota, de 13 anos, se enforcou no quintal de casa.
"Elas tinham, entre os amigos no Facebook, pessoas que seriam responsáveis por buscar novos membros para esses jogos. Mas só ao fim das investigações saberemos se elas também foram influenciadas", comenta a delegada.
A atuação do grupo pode ter extrapolado fronteiras. A Polícia Civil investiga o suicídio de uma adolescente brasileira, de 15 anos, que morava no País Basco, região da Espanha.
De acordo com Leles, não é descartada a possibilidade de que as mortes de outros jovens tenham sido motivadas pelo grupo. "Não temos condições de investigar outros casos agora. Uma das dificuldades é que as investigações que envolvem questões virtuais devem ocorrer o quanto antes, após a situação."

'Quero que eles sejam presos'

Desde que o filho caçula se matou, Onilton Pires tem se perguntado o porquê de o adolescente ter participado do grupo. "Ele era um filho muito estudioso, atencioso e não dava problemas para a gente. Ele não costumava sair muito e passava a maior parte de seu tempo em frente ao computador. Nunca passou pela nossa cabeça que ele tivesse pensamentos suicidas", lamenta.
Ele conta que o filho se tornou mais introvertido e passou a dialogar menos com os pais nas duas semanas antes de morrer. "A minha esposa disse a ele que ele estava diferente. Ele respondeu que estava do mesmo jeito. Mas a gente via que ele estava mais triste e calado. O meu filho sempre foi muito extrovertido. Por isso, tínhamos decidido que iríamos procurar acompanhamento psicológico para ele, mas não deu tempo", comenta.
O pai costuma se perguntar sobre as atitudes que poderia ter tomado para evitar que o filho atentasse contra a própria vida. "Talvez eu devesse ter tirado um dia para sentar ao lado dele no computador. Eu achei que com tudo o que proporcionava, estava protegendo ele do mundo. Mas na verdade, eu estava dando o acesso a ele ao mundo", declara.
A psiquiatra Sandra Scivoletto afirma que é fundamental que os pais acompanhem as atividades dos filhos na internet e evitem o uso excessivo das redes sociais. "O uso inadequado dificulta acompanhar o que o filho vive e o que faz. Por isso, é importante os pais estarem próximos. É necessário conhecer um pouco mais sobre o mundo virtual dos jovens", pontua.
Em meio às perguntas sem respostas sobre o filho, Onilton e a mulher, Cleide Pires, torcem que os envolvidos no grupo de incentivo ao suicídio sejam presos. "É o mínimo que esperamos. Tenho certeza de que se eles forem presos, a situação vai ser um pouco mais moralizada. As pessoas perderam o senso do perigo da internet e o limite", assevera.
Onilton e Cleide têm buscado formas de seguir adiante, desde que perderam o filho. Nas próximas semanas, devem se mudar da casa em que viviam com o jovem. Para eles, a residência lembra o filho a todo instante. "A gente sabe que essa dor pela perda nunca vai passar, mas espero que ao menos amenize, para que possamos aprender a viver com ela."

domingo, 6 de maio de 2018

Por que a qualidade do sêmen está caindo no mundo e como isso ameaça a reprodução humana

Quando um casal tem dificuldades para engravidar, é comum que a mulher se torne a principal suspeita de ser infértil. No entanto, estudos estimam que 50% dos casos de infertilidade conjugal - que afetam cerca de 48,5 milhões de pessoas no mundo - tenham como causa algum problema masculino.
E a tendência é que esses números aumentem.
Estudos realizados em diversos países mostram que a qualidade média do sêmen dos homens de todo o mundo vem caindo pelo menos desde a década de 1930. Não há informações conclusivas sobre as causas - as principais suspeitas recaem sobre o álcool, o cigarro e substâncias químicas presentes em pesticidas, solventes e recipientes de plástico.
Um dos poucos estudos no Brasil sobre o assunto foi feito recentemente pela bióloga Anne Ropelle em sua dissertação mestrado na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ela conta que o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM) da universidade realiza exames de espermograma desde 1989. Das 33.944 amostras registradas entre 1989 e 2016, ela analisou 18.902.
Anne dividiu os exames em cinco períodos de tempo e analisou os principais parâmetros que medem a qualidade do sêmen: concentração (quantidade de espermatozoides na amostra), motilidade progressiva (capacidade de movimentação, importante para o encontro com o óvulo e a fertilização) e morfologia (sua forma). "Notamos uma queda significativa em todos eles", ela afirma.
A concentração seminal, por exemplo, caiu de 86,4 milhões de espermatozoides por mililitro (ml) no período de 1989 a 1995 para 48,32 milhões/ml entre 2011-2016. A porcentagem com boa motilidade baixou de 47,6% para 35,9%, e o índice dos que tinham formas normais reduziu-se de 37,1% para 3,7%.
Apesar dessas quedas, os dois primeiros parâmetros estão dentro dos padrões estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que são, respectivamente, mínimos de 15 milhões e 32%.
Quanto à morfologia, a porcentagem encontrada por Ropelle está um pouco abaixo do que é considerado normal pela OMS, que é acima de 4%. Esses dados podem ser um alerta. "Se os números continuarem caindo, os casais poderão encontrar maior dificuldade para conseguirem uma gestação", diz a especialista.

Discussões

No exterior, as pesquisas sobre o tema são mais antigas e numerosas. Todas apontam na mesma direção. O médico urologista Leocácio Barroso, do Hospital Universitário Walter Cantídio, da Universidade Federal do Ceará (UFC), cita algumas meta-análises (revisão sistemática de várias pesquisas realizadas sobre um mesmo tema).
Uma delas foi feita pela bióloga dinamarquesa Elisabeth Carlsen, que analisou 61 estudos sobre qualidade do sêmen realizados por outros pesquisadores de vários países, entre 1938 e 1991. Os resultados foram divulgados em 1992. "Ela mostrou que nesse período a concentração média de espermatozoides caiu de 113 milhões/ml para 66 milhões/ml", informa Barroso.
Para ele, a mensagem essencial do estudo de Carlsen e colaboradores é que a concentração seminal declinou globalmente em cerca de 50% no último século, atraindo uma atenção significativa e sendo foco de diversas discussões. "A partir dessa publicação, diversos laboratórios têm analisado seus próprios dados retrospectivamente e muitos estudos sugerem que, de fato, houve um declínio na qualidade do esperma", conta.
Um desses trabalhos foi divulgado cinco anos mais tarde, em 1997, pela especialista em reprodução humana Shanna Swan, dos Hospital Mount Sinai, de Nova York. Ela fez uma reanálise de 56 estudos analisados por Carlsen e confirmou uma significativa queda na densidade espermática nos Estados Unidos e na Europa, mas não em outras partes do mundo.
"Mais tarde, em 2000, ela realizou outra extensa meta-análise, dessa vez de 101 estudos, que confirmou o declínio na qualidade seminal no período de 1934 a 1996", diz Barroso.
A própria OMS reduziu os valores de referência que definem uma amostra seminal como "normal". "De 1987 até hoje, a organização publicou cinco edições do Manual para o Exame do Sêmen Humano", diz Barroso.
"A publicação mais recente, de 2010, traz valores de referência mais baixos do que os encontrados na última edição, de 1999." Os novos parâmetros de concentração mínima foram reduzidos de 20 milhões/ml para 15 milhões/ml, os da motilidade, de 50% para 32%, e os da morfologia, de 14% para 4%.
Para a definição de tais valores, foram avaliadas amostras de 4.500 homens de 14 países de quatro continentes. Barroso tem, no entanto, uma crítica ao manual. De acordo com ele, enquanto algumas áreas foram super-representadas, como o norte da Europa, outras foram subrepresentadas, como a África e a América do Sul.
"De fato, para esse estudo não foi avaliada nenhuma amostra proveniente do Brasil", diz. "Portanto, a interpretação e aplicação dos valores de referência definidos pela última publicação da OMS para o brasileiro é imprecisa."

Estilo de vida?

Que a qualidade seminal vem caindo no mundo é praticamente uma certeza. Já as causas não são bem conhecidas. "Nosso banco de dados não possuía informações sobre estilo de vida ou hábitos dos pacientes, desta forma não pudemos correlacionar a queda a uma ou mais causas", afirma Anne. Mas há suspeitas.
Seu orientador, o ginecologista Luiz Francisco Baccaro, da FCM da Unicamp, aponta alguns. "Vários autores relatam que substâncias com efeitos similares ao estrogênio (hormônio cuja ação está relacionada ao controle da ovulação e ao desenvolvimento de características femininas), conhecidas como 'desreguladores endócrinos', poderiam agir no feto do sexo masculino ainda no útero da mãe, levando a problemas na função testicular", diz.
Entre esses "desreguladores endócrinos" estão substâncias químicas, presentes em pequena quantidade em pesticidas, solventes e recipientes de plástico, por exemplo. Além dos fatores ambientais, aspectos relacionados aos hábitos de vida também devem influenciar a produção de esperma.
"Alguns estudos demonstraram que o tabagismo e o consumo de álcool em excesso podem diminuir a qualidade do sêmen", acrescenta Baccaro. "Além disso, um fator muito prevalente que influencia nisso é a obesidade, que pode levar a um desequilíbrio hormonal. Um estudo mostrou que homens com excesso de peso têm o esperma pior."
Barroso cita outros suspeitos. "O uso de telefones celulares têm aumentado as preocupações em relação ao efeito das suas ondas eletromagnéticas na fertilidade", afirma.
"Estudo observacional recente, in-vivo e in-vitro, mostrou que os aparelhos podem causar uma diminuição da densidade, motilidade, viabilidade e morfologia dos espermatozoides. Hipertermia (alta temperatura) testicular também pode impedir a espermatogênese. Por isso, o uso de laptops próximo à genitália, utilização frequente de saunas e banheiras aquecidas estão entre os fatores considerados como possíveis causas da queda da qualidade do sêmen."

domingo, 15 de abril de 2018

Restrição de foro privilegiado em pauta no STF atinge apenas 1% dos 54.990 beneficiados

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma no início de maio a discussão sobre mudança no modo como deputados federais e senadores são investigados, processados e julgados. Pelas regras atuais, eles estão submetidos apenas aos tribunais de instâncias superiores - o chamado foro privilegiado.
A discussão estava parada desde novembro do ano passado, quando o ministro Dias Toffoli pediu vista (maior tempo para análise) do processo. A maioria dos magistrados, no entanto, já se posicionou a favor da restrição dos privilégios para políticos, que passariam a ser exclusivos aos casos ocorridos durante o mandato e em decorrência dele.
A mudança atingiria 594 parlamentares, cerca de 1% do total de beneficiados pelo foro, 54.990, de acordo com um estudo divulgado pela Consultoria Legislativa do Senado no ano passado.
No dia 27 de março, Toffoli liberou o processo, conforme a assessoria de imprensa da corte. Nesta sexta-feira, a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, o incluiu na pauta do dia 2 de maio.
O resultado parcial é de 8 a 0, com a ressalva de que Alexandre de Moraes apresentou divergências no voto em que concordou com o relator, Luís Roberto Barroso. Ele propõe restrição menor para o foro, que valeria também para crimes comuns, e não apenas aos relacionados à função.
Também em novembro do ano passado o assunto chegou a avançar na Câmara, quando a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 333/2017 foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A proposta teria impacto muito maior do uma eventual decisão do STF, já que prevê a extinção do foro especial para praticamente todas as funções que hoje gozam do benefício.
A PEC aguardava, sem previsão, votação em comissão especial e no plenário da Casa. A intervenção militar no Rio de Janeiro, contudo, colocou a medida na geladeira, já que, enquanto estiver em vigor, ela paralisa a discussão e votação de projetos que alterem a Constituição.

Quem tem direito?

A estimativa da Consultoria Legislativa do Senado é de que 54.990 autoridades tenham hoje foro privilegiado.
Assim, a mudança discutida pelo Supremo atingiria cerca de 1% dos beneficiados atuais - os 513 deputados federais e os 81 senadores. Barroso estima que, com a limitação discutida no STF, cerca de 90% dos casos envolvendo políticos que estão hoje na corte seriam enviados a instâncias inferiores.
O julgamento havia sido iniciado em junho de 2017, mas foi interrompido com o pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, retomado em novembro e suspenso novamente por Toffoli.
Trata-se de uma questão de ordem relativa à Ação Penal 937, que analisa a situação do prefeito de Cabo Frio (RJ), Marquinho Mendes (PMDB).
Denunciado por compra de votos nas eleições de 2008, o político cumpriu o mandato, tomou posse da cadeira de deputado federal em 2015 como suplente de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e, em 2016, foi eleito pela terceira vez para a prefeitura de Cabo Frio, fazendo com que seu processo mudasse de foro diversas vezes.
Na primeira sessão, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e a presidente da corte, Cármen Lúcia, se posicionaram a favor da restrição. Na votação de novembro, Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Edson Fachin e Luiz Fux também votaram pela limitação.
Apesar de já ter maioria do colegiado, a decisão do Supremo só tem validade quando todos os magistrados emitirem voto e a decisão for publicada em acórdão.
O texto que está na Câmara, por sua vez, prevê o fim do foro especial para praticamente todas as autoridades hoje previstas na lei. As exceções seriam o presidente da República, seu vice e os presidentes da Câmara, do Senado e do STF.
Ainda de acordo com o estudo da Consultoria Legislativa do Senado, 38.431 funções têm direito a foro, entre políticos, ministros de Estado, juízes, promotores. As Constituições estaduais preveem ainda o benefício para outras 16.559 mil funções, entre prefeitos, secretários, procuradores, vereadores e defensores.
A mudança discutida no STF é mais branda que a da Câmara, explica o assessor legislativo da Câmara Newton Tavares Filho, porque a corte não tem a prerrogativa de alterar a Constituição, mas apenas de interpretá-la. A extinção do foro, por exigir uma mudança da Carta, precisa passar pelo Legislativo.

Como funciona em outros países

Autor de um estudo técnico que compara o sistema brasileiro com o de 16 outros países, Tavares Filho afirma que no resto do mundo o foro especial é restrito a poucos líderes, um número que dificilmente passa de algumas dezenas - presidentes da República, do Senado, da Câmara, primeiros-ministros.
Ele é utilizado em diversos países sob a justificativa de proteger cargos públicos-chave de perseguição política. A ideia é permitir que autoridades sensíveis a represálias e intimidação sejam julgadas por tribunais isentos.
"A questão é que nós não temos provas concretas dessa isenção", pondera o especialista, ressaltando que Brasil é recordista no número de autoridades com foro privilegiado.
Em muitos casos, a prerrogativa se limita aos delitos relacionados ao cargo e não abrange os crimes comuns, como no Brasil. Os crimes de responsabilidade, que ensejam os processos de impeachment, têm um conjunto de regras à parte, que também varia a depender do país.
O sistema que mais se assemelha ao brasileiro é o da Espanha, onde todos os parlamentares têm direito a foro privilegiado e, por isso, são julgados apenas pela Câmara Penal do Tribunal Supremo. "Estamos falando de algumas centenas de pessoas, isso já é uma situação excepcional", diz Tavares Filho.
A lista também é longa na Colômbia, onde os congressistas - além de alguns magistrados, determinados agentes do Ministério Público, procurador-geral, controlador-geral etc. - estão sob a competência da Corte Suprema.
Os Estados Unidos são o extremo oposto. Nem o presidente americano tem prerrogativa de foro. Esse é um privilégio restrito a alguns diplomatas, embaixadores e cônsules - ou seja, é uma questão mais ligada ao direito internacional.
Na Alemanha, o foro existe apenas para o presidente, que é julgado pela Corte Constitucional em casos de impeachment, previsto para qualquer violação da lei constitucional ou da lei federal. Para ser aberto, o processo precisa passar por uma moção no Bundestag e no Bundesrat, equivalentes à Câmara e ao Senado.
A constituição francesa, por sua vez, dá imunidade ao presidente, que não pode ser sujeito a nenhuma ação, ato de instrução ou ato persecutório perante nenhuma jurisdição ou autoridade administrativa enquanto estiver no cargo. Os casos de impeachment tramitam em uma corte especial formada por membros do Congresso.
Em 1993, os ministros de Estado franceses perderam o foro privilegiado na Suprema Corte e passaram a ser julgados pela Cour de Justice de la République, formada por 12 parlamentares e 3 juízes, apenas nos casos em que os delitos estão diretamente ligados ao cargo. O órgão foi definido como "jurisdição de exceção" pelo presidente Emmanuel Macron, que é favorável à sua supressão, em declaração dada no fim do ano passado.

Como já foi no Brasil

Mas se hoje o Brasil se destaca pelo alcance das categorias com foro especial, a situação já foi ainda mais abrangente.
Até 1999, a prerrogativa de foro por função no Brasil valia mesmo depois do fim do exercício funcional - no caso dos políticos, do mandato. A previsão foi estabelecida pela Súmula 394, editada em 1964 e cancelada pelo próprio STF.
Foi ela que garantiu que o ex-presidente Fernando Collor fosse julgado em 1994 pelo Supremo na ação penal que apurava a prática de corrupção passiva. Ele foi absolvido por falta de provas.
A mudança na regra permitiu que as denúncias contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, fossem enviadas à primeira instância. Ele foi preso no último dia 7, depois de condenado a 12 anos e um mês por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
O presidente em exercício continua sendo processado e julgado pelos ministros do STF, mas apenas com autorização da Câmara dos Deputados. O caso que ganhou destaque no ano passado envolvendo Michel Temer é ilustrativo nesse sentido. Ele foi denunciado pela Procuradoria-Geral de República (PGR) duas vezes, mas o plenário da Casa bloqueou o prosseguimento. O processo fica parado até o peemedebista deixar o Planalto e, depois disso, será enviado à primeira instância.
O ex-ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) José Augusto Delgado lembra que até recentemente os governadores também gozavam da blindagem do Legislativo. Para que fossem processados no STJ, era preciso que as assembleias estaduais permitissem.
Duas decisões do STF de maio de 2017, uma delas envolvendo processo que tinha como réu o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), mudaram a jurisprudência sobre o assunto.
"Eu passei 17 anos no tribunal, recebi vários processos contra governadores. Em nenhum deles a assembleia permitiu que eles se tornassem réus", diz Delgado, que integrou o STJ entre 1995 e 2008.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Bolsonaro, Alckmin, Marina, Ciro: quem sai ganhando com eventual prisão de Lula?

No futebol, este domingo será de clássicos: Corinthians e Palmeiras disputam a final do Campeonato Paulista, e Vasco e Botafogo decidem quem será o campeão carioca de 2018. Na política, porém, o principal "jogo" do primeiro semestre foi concluído nesta 4ª feira: por 6 votos a 5, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram negar o pedido de habeas corpus (HC) apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A conclusão do julgamento no STF mobilizou "torcidas" dignas de uma final de Copa do Mundo. Juízes, integrantes do Ministério Público e advogados se mobilizaram contra e a favor da prisão após a segunda instância, com abaixos-assinados de milhares de nomes. Manifestantes pró e contra Lula foram às ruas em Brasília e outras cidades.
Apesar dos abaixo-assinados e das falas de alguns ministros, o STF decidiu ontem apenas sobre o pedido específico da defesa de Lula - o de que ele não fosse preso depois de esgotados seus recursos ao Tribunal Federal Regional da 4ª Região (TRF-4), e pudesse recorrer em liberdade até a última instância. O STF também não disse nada a respeito da possibilidade - cada vez mais remota - de Lula concorrer nas eleições presidenciais deste ano.
Mesmo assim, o resultado de quarta-feira é uma sinalização sobre como a maioria dos ministros deve votar em duas ações que questionam a prisão após a segunda instância - os processos são relatados pelo ministro Marco Aurélio Mello e podem efetivamente mudar o entendimento do STF. Não há data marcada para esse julgamento, mas, nos bastidores, a presidente do tribunal, Cármen Lúcia, está sendo pressionada a pautar o tema.
Com a decisão do Supremo, Lula fica cada vez mais próximo de ir para a cadeia. Segundo a assessoria do TRF-4, a defesa do petista tem até a próxima terça-feira (10 de abril) para apresentar os chamados "embargos dos embargos".
Só depois que este possível recurso for decidido pelos três desembargadores da 8ª Turma do TRF-4, que condenaram Lula em janeiro, o tribunal enviará um ofício ao juiz federal Sérgio Moro informando que o trâmite no TRF-4 acabou. Caberá a Moro então assinar o mandado de prisão.
Mas como ficaria a corrida eleitoral sem Lula no páreo? Veja abaixo, as possíveis implicações disso no cenário atual.

No PT: prioridade para os deputados

Sem Lula na corrida, o mais provável é que o PT foque na eleição da maior bancada possível de deputados federais - cada novo representante na Câmara significa uma fatia maior dos fundos Partidário e Eleitoral, além de mais espaço de televisão durante as próximas disputas.
Em resumo, trata-se de defender a sobrevivência do partido - cuja cúpula é alvo de pesadas acusações de corrupção pelo menos desde 2015, na esteira da Lava Jato.
A discussão sobre o eventual substituto para Lula na corrida presidencial depende do próprio ex-presidente, dizem interlocutores no partido. Mesmo antes da condenação do petista, alguns nomes importantes do partido já tinham sugerido que a sigla começasse a pensar em alternativas a Lula - foi o que disseram os gaúchos Tarso Genro e Olívio Dutra. A sugestão foi rejeitada pela maioria da direção partidária, apurou a BBC Brasil.
Até o momento, inclusive, o PT mantém a intenção de registrar a candidatura de Lula no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no dia 15 de agosto, mesmo que as chances dele realmente concorrer às eleições sejam pequenas.
Em dezembro passado, o Diretório Nacional petista decidiu criar um Grupo de Trabalho Eleitoral (GTE), com a missão de formular uma proposta tática para a sigla nas eleições. O documento está pronto, e deve ser votado pelo Diretório em abril, diz o líder do partido na Câmara, Paulo Pimenta (RS). Esta proposta coloca como prioridade do partido a eleição presidencial e, logo abaixo dela, a disputa por vagas na Câmara.
"Em 2014, a gente votou na resolução (eleitoral) priorizar a Câmara e o Senado. Foi dada uma prioridade política às candidaturas ao Senado. Mas percebemos que, por serem candidaturas majoritárias (apenas os dois mais votados são eleitos em cada Estado), são onerosas.
Agora, nesse processo do golpe (o impeachment de Dilma em 2016), percebemos que a Câmara teve uma importância muito maior", diz uma integrante da Executiva Nacional petista, sob condição de anonimato.
A defesa de Lula pode ainda apresentar recursos com a finalidade de permitir a ele participar das eleições, mas o resultado é incerto.

Bolsonaro

As últimas pesquisas de institutos como o Datafolha e o Ibope mostram Jair Bolsonaro (PSL) liderando a disputa nos cenários sem Lula. Os indícios são mesmo de que, mesmo levando apenas pequena parte da fatia dos votos que iriam para Lula, ele mantém a liderança.
O site de notícias jurídicas Jota, por exemplo, calcula que Lula teria hoje 18,5% dos eleitores - Bolsonaro conta com 10,5% dos votos. O levantamento usa apenas pesquisas espontâneas (em que o próprio eleitor diz em quem pretende votar, sem opções dadas pelo entrevistador), publicadas desde o fim do ano passado e feitas por instituto como MDA, Ibope e Datafolha.
"O mais provável é que esses votos (de Lula) sejam disseminados, em parte (menor), para a candidatura de (Jair) Bolsonaro (PSL), e em parte para votos nulos, brancos e abstenções. Eu diria que quem vota em Lula, se for frustrado e não tiver Lula ou (outro candidato do) PT na cédula eleitoral, muito provavelmente vai se dirigir para a anulação dos votos. É o que as pesquisas têm demonstrado", diz o professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) Lincoln Secco, que estudou a trajetória do PT.
Secco acredita que só uma parte menor dos eleitores de Lula migrará para Bolsonaro - e o fará por ver no militar da reserva uma opção de voto de protesto. Apesar de ser deputado desde 1991, o candidato do PSL é visto como alguém "de fora" do sistema político.
Mas para o cientista político e professor emérito da UFMG, Fábio Wanderley Reis, Bolsonaro não seria beneficiado caso Lula saia da corrida: o capitão da reserva do Exército está construindo sua candidatura como uma oposição ao PT e à esquerda de forma geral. Sem Lula, Bolsonaro perde uma de suas principais bandeiras. Essa avaliação também já foi feita por aliados do político do PSL, como o deputado Alberto Fraga (DEM-DF).
"Bolsonaro certamente se mostrou mais 'viável' do que parecia há algum tempo; manteve a força eleitoral mesmo depois de começar a ser questionado na imprensa, por exemplo. Mas me parece que a força dele (Bolsonaro) tem a ver com esse antagonismo (com Lula). Com Lula fora, ele tende a perder força", diz o cientista político Fábio Wanderley Reis.

Marina e Alckmin

Lincoln Secco, da USP, e o cientista político e professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), Rui Tavares Maluf, divergem sobre a viabilidade de Marina Silva (Rede), mas concordam que ela dificilmente herdará os votos de Lula, de quem chegou a ser ministra do Meio Ambiente (2003-2008).
"Ela (Marina) nunca foi carta fora do baralho. É uma figura difícil de atacar no plano pessoal, na questão da ética. Mas ela se afastou muito do petismo nas últimas duas eleições (em 2014, apoiou Aécio Neves, do PSDB). Pode herdar votos, mas não esses (de Lula)", diz Maluf.
Para Secco, Marina "não representa nenhum posicionamento relevante hoje na sociedade. Então acho muito difícil que ela herde os eleitores. Ela apoiou Aécio Neves (PSDB) nas últimas eleições e se posicionou pela condenação de Lula no julgamento do TRF-4 de Porto Alegre", diz ele.
E Geraldo Alckmin? Antes mesmo de assumir a presidência do PSDB e se tornar o virtual candidato presidencial do partido, em dezembro passado, o tucano começou a fazer acenos à esquerda.
Em outubro de 2017, por exemplo, o governador de São Paulo apareceu em um evento da corrente socialista do PSDB - chamada Esquerda Pra Valer - e disse que "O laissez-faire, esse liberalismo completo, é a incivilização, porque é o grande querendo comer o pequeno, o forte massacrar o fraco".
Rui Tavares Maluf lembra que Alckmin já estava tentando construir pontes com a esquerda antes da campanha eleitoral - o tucano levou adiante projetos que beneficiaram assentados do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), por exemplo. Em uma cerimônia em 2016, recebeu elogios de dirigentes do movimento social.
"Não é muito difícil imaginar ele se movimentando para a esquerda e para a direita sem parecer um 'estranho no ninho'. Esse caráter mais centrista da candidatura dele permite isso", diz Maluf. Se isso será suficiente para abarcar votos de ex-eleitores de Lula, é cedo para dizer, segundo o cientista político.
Já para Lincoln Secco, Alckmin cometeu um erro dentro da estratégia de se aproximar do eleitorado lulista ao dizer que os tiros que atingiram um ônibus da caravana de Lula na semana passada foram culpa dos próprios petistas. Na última sexta-feira, Alckmin disse que os seguidores de Lula estavam "colhendo o que plantaram".
"Eu acho que ele terá, como nas eleições anteriores que disputou (em 20060), uma dificuldade enorme de penetração no Nordeste. E sem o Nordeste ele não ganha as eleições. Vai ter o apoio de São Paulo e do Centro-Sul, mas muita dificuldade tanto em Minas Gerais, quanto no Nordeste", diz.

E os outros candidatos de esquerda?

A eleição de 2018 promete ter o maior número de candidatos desde a disputa presidencial de 1989 - até agora, 25 pessoas já anunciaram a intenção de concorrer à presidência da República em outubro - a quantidade de postulantes será significativa mesmo que a maior parte desses nomes não chegue à urna eletrônica.
Nos bastidores, políticos de vários partidos (não só os de esquerda) veem a saída de Lula do pleito como algo positivo para os demais candidatos - significaria uma possível vaga no segundo turno da disputa.
Para Rui Tavares Maluf, o mais provável é que os votos de Lula sejam divididos entre os outros competidores. "Não tenho dúvida de que a tendência é de 'espalhamento'. O grosso dos votos de Lula não é tão ideológico, é muito mais centrado na pessoa dele. As bandeiras (de Lula) são um pouco genéricas (como o crescimento econômico ou a redução da desigualdade)", diz.
Dentro do campo da esquerda, diz Maluf, é Ciro Gomes (PDT) quem está mais bem posicionado para abocanhar uma fatia maior dos votos. O cientista político faz a ressalva, porém, de que o mecanismo de transferência de votos não é perfeito - mesmo que Lula pedisse votos para Ciro ou outro candidato, dificilmente ele ou ela herdaria 100% dos eleitores do petista.
"Há outros candidatos que têm até mais afinidade ideológica com o PT, como (Guilherme) Boulos (PSOL) ou Manuela D'Ávila (PCdoB). Mas essa afinidade (de esquerda) tende a reduzir os votos. Só uma pequena franja dos eleitores do Lula está disposto a votar em alguém tão à esquerda", diz.
Para Lincoln Secco, da USP, a candidatura do PSOL tem pouca viabilidade neste momento. "Boulos só está se candidatando neste momento porque pretende futuramente constituir um novo partido de extrema-esquerda com algum apoio eleitoral e alguma importância social no Brasil. Mas é um projeto de longo prazo."

domingo, 25 de março de 2018

Área de conservação da Caatinga revela maior concentração de sítios arqueológicos do Brasil

A proposta de criação de um mosaico de unidades de conservação dos últimos remanescentes em área contínua do bioma Caatinga no Brasil, do tamanho de 850 mil campos de futebol, no sertão da Bahia, abriu as portas para a descoberta do que pesquisadores chamam de a maior concentração de sítios arqueológicos do país.
São cerca de 3 mil sítios em rochas de boqueirões e grotas, onde pinturas rupestres revelam, segundo arqueólogos, um homem pré-histórico de "mente aberta" e "avesso a rótulos", que teria vivido há 16 mil anos e era coletor, caçador, pescador e agricultor.
Chamado de "índio Tapuia" (etnia usada para denominar todo índio que não era Tupi Guarani), esse homem, que é uma mistura de várias etnias e raças, foi a base para a formação do povo sertanejo. Ele chegou à América do Sul pelo oceano Pacífico, vindo de locais ainda incertos para a arqueologia.
Entre seus habitats estava o Vale do São Francisco, com concentração no território do município baiano de Sento Sé. O "índio" foi miscigenado com outras raças após a colonização portuguesa, há pouco mais de 500 anos, indicam arqueólogos.
Os pesquisadores também encontraram na região ossos de animais pré-históricos, como a preguiça-gigante, de 6 metros de altura, e do tatu-gigante, do tamanho de um Fusca.
A descoberta dos sítios têm empolgado não só pesquisadores, mas também o setor turístico, que vê a riqueza arqueológica local com forte potencial para atrair turistas, a exemplo do que ocorre no Parque Nacional da Serra da Capivara (Piauí) - onde mais de 1,3 mil sítios arqueológicos já foram descobertos em mais de 40 anos de pesquisa.
No sertão da Bahia, os sítios estão numa região conhecida como Boqueirão da Onça, que há décadas também chama a atenção de pesquisadores pela fauna e flora do bioma Caatinga. Recentemente, após 16 anos de estudos, o Ministério do Meio Ambiente concluiu uma proposta para a criação das unidades de conservação na região.
A proposta é um parque nacional de 345,3 mil hectares para proteção integral do bioma e uma APA (área de proteção ambiental) de 505,6 mil hectares, onde será possível o uso sustentável dos recursos naturais. A área total abrange os municípios baianos de Sento Sé, Campo Formoso, Sobradinho, Juazeiro e Umburanas.
A finalização da proposta, com o envio à Casa Civil da Presidência de documentos pendentes, ocorreu nesta terça-feira (13). Não há prazo para ela ser analisada pela pasta, mas isso "deve ser realizado em tempo curto", informou a Casa Civil. Depois, a criação do parque nacional e da APA devem virar decreto presidencial.
Como dentro do parque nacional não há comunidades ou empreendimentos, não será necessário gasto público com indenizações. Dentro da APA, porém, vivem cerca de 250 famílias em 27 comunidades de fundos de pasto e quilombolas. Há ainda empreendimentos de energia eólica que ocupam cerca de 30% do território da área de proteção a ser criada.

'Homem metafórico'

Os sítios arqueológicos estão dentro da área onde será o parque nacional. Eles começaram a ser estudados na década de 1970, durante a construção da barragem de Sobradinho. Na época, o arqueólogo espanhol Valentim Calderón coordenou o Projeto Sobradinho de Salvamento Arqueológico numa área de 4.214 km².
O trabalho de Calderón nos territórios de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado (à margem esquerda do rio São Francisco) e de Juazeiro, Sento Sé e Xique-xique (margem direita) identificou os primeiros sítios rupestres da região.
As pinturas foram definidas por ele como arte parietal (de homens que viveram na Idade das Renas, entre 15000 a.C. e 9000 a.C), divididas em pictografias (representação de ideias por meio de desenhos) e petroglifos (escultura bruta em pedra).
Após o Projeto de Salvamento Arqueológico, as pesquisas só voltaram a ocorrer na região na década de 1990, com o arqueólogo Celito Kestering, discípulo de Calderón e hoje doutor em Arqueologia na área de pinturas rupestres.
O arqueólogo é professor aposentado da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco), em Petrolina (PE), e pesquisa os sítios arqueológicos de Sento Sé desde 1993. Ele os classifica como "metafóricos", enquanto que os da Serra da Capivara, onde também realizou estudos, seriam "metonímicos".
Para ele, "o metafórico tem o conceito de bem sem precisar ter a representação da imagem de um Deus macho, pai, castigador, como tem o metonímico, que incorpora um conceito cujo horizonte não vai além da figura rupestre."
"Os que moravam na beira do Rio São Francisco eram coletores, caçadores, pescadores e agricultores. Os metonímicos se orientam só pelo espaço, não têm a dimensão do tempo. Os metafóricos se orientam muito mais pelo tempo do que pelo espaço", diz Kestering.

Potencial turístico

Mesmo que ainda não esteja regularizada, a visitação turística já vem ocorrendo na região de Sento Sé por causa dos sítios arqueológicos, tendo sido esse, inclusive, um dos motivos de o município ser elevado de categoria no novo Mapa do Turismo, divulgado há cerca de um mês pelo Ministério do Turismo.
O mapa elevou Sento Sé da categoria E para a D, numa escala que vai de E até A. Assim, a cidade passou a ter direito a pedir ao ministério R$ 150 mil por ano para realização de um único evento turístico. A Secretaria Municipal de Turismo de Sento Sé informou que busca recursos com governos para poder criar meios de organizar as visitas aos sítios e divulgá-los.
"Temos um potencial grande para isso e queremos aproveitar, mas com cuidado", comenta Mariluze Amaral, chefe do Departamento de Turismo. A ideia é promover o ecoturismo em trilhas nos circuitos arqueológicos, com passagens por caminhos percorridos pelo sertanista e explorador de ouro Romão Gramacho, o cangaceiro Lampião e a Coluna de Carlos Prestes.
Por se tratar de algo ainda não regulamentado, a Prefeitura de Sento Sé diz não dispor de informações sobre a quantidade de turistas que tem ido aos sítios, mas diz que tem buscado conversar com guias locais para fazerem um trabalho mais qualificado.
Um dos que atuam com turismo na região é o empresário Bruno Kestering, filho do arqueólogo Celito. As visitas aos sítios, segundo ele, "são realizadas mais por escolas da região, que costumam ir em grupo de 50 pessoas".
Devido à proximidade com as principais cidades da região do Vale do São Francisco - a baiana Juazeiro e pernambucana Petrolina, separadas pelo rio -, os sítios mais frequentados são os de Sobradinho, onde foram realizados os estudos iniciais pelo arqueólogo espanhol Valentin Calderón.
Alvandyr Dantas Bezerra, pesquisador do Instituto Habilis e do Grupo de Pesquisa Bahia Arqueológica, realizou em 2017 levantamento de sítios arqueológicos na região de Sento Sé com vistas à criação de um circuito de turismo, a pedido da prefeitura local.
"O potencial turístico lá é enorme. O que deu para perceber, de início, é que muitos (sítios) terão de ficar disponíveis para visitação, e outros para pesquisa científica", contou. Na Serra da Capivara, por exemplo, a visitação é aberta em 173 sítios.
Bezerra estima que, saindo o decreto presidencial que criará o Parque Nacional do Boqueirão da Onça, o projeto de visitação inicial dos sítios pode ficar pronto em dois anos - com o tempo mais locais podem ser liberados para visitas. Mas isso depende ainda da elaboração do plano de manejo pelo Ministério do Meio Ambiente.
"Com o decreto, vamos dar início à elaboração desse plano e liberar locais onde possa ocorrer a visitação turística. Em vez de fazer um plano de manejo completo, que contemple tudo, vamos fazer aos poucos para que as visitas possam ocorrer, tanto nos sítios arqueológicos quanto na área da Caatinga", diz Moara Menta Giasson, diretora de áreas protegidas da Secretaria de Biodiversidade do ministério.

Onça em extinção

Os sítios arqueológicos de Sento Sé fazem parte de um bioma ainda desprotegido pelo poder público. E não só eles estão nesta situação, como também cerca de 30 onças pintadas e 120 pardas, dentre outros mamíferos, aves e plantas diversas que habitam exclusivamente o bioma Caatinga.
Entre outros representantes da fauna em extinção no Boqueirão da Onça estão o tamanduá bandeira, o tatu-bola, o gato mourisco e o gato-do-mato. Entre as aves em risco estão a arara-azul-de-lear e o jacu estalo.
Répteis, anfíbios e insetos ainda a serem estudados completam o quadro da fauna selvagem do Boqueirão, onde está também a maior caverna do Brasil, a Toca da Boa Vista, com 93,7 km de extensão - e alvo de pesquisas científicas.
A flora nativa apresenta grande diversidade - recentemente, 97 novas espécies foram catalogadas. O Boqueirão da Onça é "a última grande área selvagem de todas as caatingas do Nordeste brasileiro", destaca o pesquisador José Alves Siqueira, doutor em biologia vegetal pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e autor do livro Flora das Caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação.
"Pesquisas iniciadas em 2006 apresentam uma flora rica, com mais de 900 espécies de plantas reunidas em 120 famílias botânicas, com espécies endêmicas da Caatinga, ameaçadas de extinção e até novas espécies que serão apresentadas brevemente à comunidade científica e que já se encontram no limiar da extinção", informa.
As discussões sobre a proteção da área com a criação de um parque nacional começaram em 2001. A ideia inicial era proteger um território de cerca de 900 mil hectares, mas interesses econômicos de mineradoras que buscavam as pedras de ametistas da região e empresas de energia eólica provocaram o atraso na definição de como seria o parque.
Em 2017, o Boqueirão da Onça ganhou destaque com a descoberta de uma jazida de ametista que provocou uma corrida com cerca de 20 mil garimpeiros de todo o Brasil. As comunidades locais reclamam de abusos e violência, além da extração de madeira, caça de animais silvestres e furto dos rebanhos.
A definição só veio em 2017, quando se decidiu criar um parque nacional numa parte do bioma e a APA na outra. A diferença crucial entre as duas é que, diferente do parque nacional, na APA pode haver atividades econômicas, desde que respeite as regras do decreto que cria a área de proteção ambiental. A área do garimpo, contudo, ficou de fora das duas áreas.
"Assim, as atividades de energia eólica vão poder continuar sem problemas, e ela também é incentivada por nós por ser uma fonte de energia limpa. A região do Vale do Boqueirão da Onça é uma das que tem mais potencial para a geração desse tipo de energia", diz André Luís Luma, coordenador-geral de Políticas para Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente.
Maior felino das Américas, a onça pintada tem na região um dos principais refúgios em área natural. A espécie já perdeu 55% da área de sua distribuição original e, atualmente, a maior parte de suas subpopulações está ameaçada de extinção. No Brasil, a onça pintada está criticamente ameaçada na Caatinga e na Mata Atlântica.
Projetos também estão sendo desenvolvidos com vistas à proteção animal, com foco nas onças, vítimas criadores de animais da região, sobretudo ovinos e caprinos, fonte de alimento das onças, ao lado de outros mamíferos, como as capivaras.
"Estamos incentivando os produtores a construir currais para guardar os animais à noite, pois os deixam soltos e aí as onças atacam. É difícil elas virem até os currais e atacar durante o dia", diz Rogério Cunha de Paula, coordenador substituto do Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros), ligado ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade).
O Boqueirão também tem papel-chave na segurança hídrica na região. Importantes nascentes localizadas nos planos mais altos irrigam o solo seco do sertão, garantindo condições de vida para comunidades urbanas e rurais.
Algumas dessas nascentes foram incluídas nos limites do futuro parque nacional, cuja criação é esperada também por entidades internacionais de proteção ambiental, como a WWF.
"Hoje, dos 11% restantes da vegetação original da Caatinga, apenas 2% é legalmente protegida. Então, qualquer iniciativa de conservação na Caatinga é bem-vinda", diz Jaime Gesisky, especialista em Políticas Públicas da ONG WWF-Brasil.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Marielle era uma das 32 mulheres negras entre 811 vereadores eleitos em capitais brasileiras

Marielle Franco foi uma das 32 mulheres negras eleitas vereadoras nas capitais brasileiras em 2016. Trinta e duas, ou 3,9%, de um total de 811 vereadores eleitos nas capitais.
Agora são 31. Marielle, quinta vereadora mais votada da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, pelo PSOL, foi assassinada na noite desta quarta, 14.
Marielle foi também a única mulher declarada preta a ser eleita como vereadora do Rio de Janeiro, a quinta mais votada da Câmara Municipal da cidade. Uma mulher autodeclarada parda, Tânia Bastos (PRB), também foi eleita. Eram duas mulheres em um total de 51 vereadores. As classificações "preta" e "parda" são adotadas pelo IBGE, que não utiliza a categoria "negra".
Para especialistas, o assassinato de Marielle representa um revés no combate à subrepresentatividade racial e de gênero na política brasileira e, portanto, dizem, também à democracia.
"Somos menos democráticos quando temos uma representação racial homogênea na política", diz Rosane Borges, pós-doutora em Ciência da Comunicação e professora do Celac (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP, observando que é preciso inserir nos espaços de poder "a pluralidade que é intrínseca à democracia" - e à sociedade brasileira.
As mulheres negras no Brasil correspondem a cerca de um quarto do total da população, segundo dados do IBGE. Mesmo assim, em todas os municípios brasileiros, foram eleitas para câmaras municipais 2.874 mulheres negras -elas não chegam a 5% do total de vereadores, 57,8 mil. Os dados sobre sexo e cor dos vereadores eleitos foram retirados do site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e consideram a cor autodeclarada pelo candidato, informada no pedido de registro à Justiça Eleitoral.
Para Bruna Cristina Jaquetto Pereira, doutora em sociologia pela Universidade de Brasília que estuda a violência contra a mulher negra, "a maior parte dos movimentos de base no Brasil são compostos por mulheres negras". "Tem-se a falsa ideia de que as mulheres negras não participam da política, mas elas são as que lidam diretamente com os problemas estruturais da sociedade brasileira. Elas se mobilizam no nível mais básico, fazendo a política do cotidiano, desde a participação em associações de bairro até a mobilização em grupos contra a violência de jovens negros assassinados, seus filhos."
Mas o problema, aponta, é que, embora façam a política de cotidiano, as mulheres negras não são reconhecidas como parte da política e, por isso, não são alçadas para o lugar de representantes.
Na opinião de Cristiano Rodrigues, professor do departamento de Ciência Política da UFMG que estuda a participação política de negros no Brasil, "Marielle e Áurea Carolina [vereadora do PSOL mais votada para a Câmara de Belo Horizonte], entre outras poucas, são infelizmente a exceção da exceção da exceção".

Importância

Existem duas principais correntes que discutem a representação na política, explica Rodrigues. A primeira fala em "representação substantiva", em que os políticos não necessariamente se "autorepresentam", podendo apresentar ideias que interessam a grupos distintos aos seus.
A segunda corrente, com a qual concorda, diz ele, é a de "representação adscritiva", "de que, na ausência de mulheres ou minorias nas legislaturas, os temas que são importantes para eles acabam sendo votados por um viés não condizente com seus interesses".
O pesquisador cita como exemplo o debate sobre o aborto na Câmara dos Deputados. No fim do ano passado, 18 deputados votaram a favor de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que restringiria o aborto em casos já permitidos pela legislação brasileira. A única mulher presente na comissão, a deputada Erika Kokay (PT-DF), votou contra.
"Mulheres negras na política democratizam seus próprios partidos, apresentando pautas que não foram pensadas anteriormente, que foram invisibilizadas, porque elas não estavam lá. E influenciam na ação política como um todo", afirma Rodrigues.

Causa

Para Rosane Borges, da USP, a incongruência da representatividade feminina negra em relação à demografia brasileira "se explica pelo machismo e pelo preconceito racial".
"Desde as dificuldades que as mulheres têm de financiamento, de apoio da própria legenda - e muitas vezes as mulheres trazem pautas incômodas até para os próprios partidos - até o imaginário que existe sobre quem deve nos representar", diz Borges, dando como exemplo um pensamento recorrente: "'Eu delego o poder a quem eu acho que tem o poder.' E normalmente essa pessoa é o homem branco, rico e hetero."
"Infelizmente, ainda pensamos a representatividade a partir do lugar de poder, de quem pode, em tese, nos ajudar. E uma mulher negra é vista como uma pessoa 'faltante'. Pensa-se: 'O que ela pode fazer por mim, se ela é alguém a quem tudo falta?'"
Rodrigues, da UFMG, diz que há dois elementos que alçam uma candidatura: a capacidade de mobilização financeira e a insersão de atores políticos em famílias políticas. Considerando isso, as mulheres negras enfrentam múltiplos problemas: "Estando na base da população brasileira, recebendo menos que o homem negro, menos que a mulher branca e, por fim, menos que o homem branco, têm dificuldade de mobilização de recursos", diz. Além disso, "os partidos tendem a valorizar e investir mais financeiramente nas candidaturas masculinas." E, ainda, mulheres negras não pertencem a famílias políticas - pelo contrário, representam uma renovação na política.

'Nossa voz incomoda'

"Não é só chegar lá, mas ter condições de permanecer", diz Gabriela Vallim, jovem negra de 23 anos. "Nossa voz incomoda."
Aos 21 anos, Vallim foi coordenadora de Políticas para Juventude da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, durante a gestão Fernando Haddad (PT). Criada em Itaquera, bairro periférico da zona leste de São Paulo, e filha de professora da rede pública que completou o ensino superior depois dos 40 anos, conta que sempre ouviu da mãe: "As coisas sempre vão ser mais difíceis para você porque você é uma mulher negra".
Vallim diz que o sentimento geral entre ela e várias jovens lideranças que conhece, depois que souberam do assassinato de Marielle Franco, é de desesperança. "A luta pela representatividade e inserção nos espaços de poder é muito grande. Fazemos parte de uma população que ficou muito tempo afastada desses ambientes", observa. "Quando começamos a ocupar esses espaços, muitas vezes nos falta preparo técnico - não íamos visitar as empresas dos nossos pais depois da escola, por exemplo. Também nos falta dinheiro."
"Normalmente, não temos opção de voto em gente que se parece com a gente. E é um super trabalho chegar lá. E aí, quando chegarmos lá, podemos morrer?", questiona ela.
Vallim liderou a área de políticas para juventude de São Paulo depois de anos engajada em temas relacionados à educação e segurança de jovens da periferia. Aos 21, representou o Brasil na Conferência Geral da ONU sobre os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável. Quando voltou, foi nomeada para o cargo da prefeitura.
Mas um acontecimento inesperado fez com que ela desistisse de ocupar cargos públicos.
"Eu era uma das únicas da secretaria que moravam na periferia. Fiz um acordo para que pudesse voltar para casa de carro oficial depois de comparecer a eventos e debates que terminassem tarde da noite. Uma noite, disseram que eu não poderia voltar de carro oficial. Chegando em casa, a pé, fui assaltada. Foi traumático. Pensei: 'preciso conseguir cuidar da minha vida para cuidar da vida das outras pessoas'."
Hoje, ela trabalha na iniciativa privada.

Soluções

Para aumentar o número de mulheres negras representantes na democracia brasileira, especialistas sugerem algumas medidas.
Hoje, as coligações são obrigadas a reservar 30% de suas candidaturas a mulheres. Mas isso nem sempre ocorre - e, para cumprir a cota, há casos de "candidatos fantasmas", que não recebem votos nem deles mesmos. Segundo Rodrigues, da UFMG, "90% desses candidatos fantasmas são mulheres".
Uma das propostas discutidas além da cota para candidaturas é a reserva de assentos para mulheres eleitas, não só candidatas. Rodrigues aponta que há regras assim em alguns países da América Latina, como a Bolívia e a Argentina.
Outra é a divisão do financiamento de cada partido de maneira igualitária para todos os candidatos.
Uma terceira via é o voto em lista fechada (proposta em que o eleitor vota na legenda e o total de votos é distribuído aos candidatos na ordem da lista) que tenha alternância de gênero. Assim, explica Rodrigues, "se um partido consegue coeficiente eleitoral que lhe permita eleger quatro candidatos, dois serão homens e duas serão mulheres". Para contemplar mulheres e homens negros, essa ideia também propõe que o número de candidatos negros seja proporcional à população negra da localidade.
Apesar da baixa representatividade das mulheres negras nos espaços de poder no Brasil, Rosane Borges, da USP, defende que o país tem melhorado no quesito, embora sempre com tensões. "Temos muitas conquistas e avanços. Mas esses avanços são acompanhados por retrocessos, confisco de direitos. Não é um caminho linear, evolutivo, progressivo", diz.
Para Bruna Pereira, da UNB, "ter representação de minorias aumenta a qualidade da democracia". "As pessoas negras não querem mais ser representadas pelos brancos. Queremos nós mesmos representar."

segunda-feira, 5 de março de 2018

Único inscrito, Alckmin vira pré-candidato à presidência

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, foi o único inscrito nas prévias que definiriam o candidato do PSDB à Presidência da República e, dessa forma, a consulta interna não será realizada e o governador torna-se oficialmente o pré-candidato tucano ao Palácio do Planalto na eleição de outubro.
Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, em evento do Partido da Social Democracia do Brasil (PSDB) em Brasília, Brasil
09/12/2017
 REUTERS/Adriano Machado
Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, em evento do Partido da Social Democracia do Brasil (PSDB) em Brasília, Brasil 09/12/2017 REUTERS/Adriano Machado
Foto: Reuters
De acordo com o presidente da comissão responsável pelas prévias do partido, deputado Marcus Pestana (MG), Alckmin, que também ocupa o cargo de presidente nacional do PSDB, se inscreveu com o apoio de 40 dos 46 deputados tucanos e de 10 dos 11 senadores da legenda. O apoio exigido para participação no processo interno era de 20 por cento das bancadas de deputados e senadores.
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"Agora então nós vamos operacionalizar, queimada esta etapa. Vamos reunir a Executiva no dia 13 para já traçar um plano de trabalho e uma estratégia para a pré-candidatura", disse Pestana, que também é secretário-geral do PSDB, à Reuters por telefone.
"Durante março, ele (Alckmin) ainda estará focado em ser o melhor governador possível, consolidando o balanço de suas realizações, fazendo inaugurações. A partir de abril, aí sim, é começar a viajar os Estados", acrescentou, se referindo ao prazo de desincompatibilização para poder disputar a eleição, no início de abril.
A oficialização de Alckmin como candidato do partido terá que esperar, no entanto, até pelo menos 20 de julho, quando começa o período previsto na legislação para as convenções que definiram os nomes que disputarão o Planalto.
Além de Alckmin, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, havia anunciado intenção de disputar as prévias tucanas, mas no último dia 23 anunciou que não participaria, por discordar do formato das prévias, especialmente da previsão de apenas um debate entre os postulantes à candidatura.
Ao anunciar que não participaria das prévias, Virgílio classificou o processo interno de "fraude" e disparou contra Alckmin, afirmando não respeitar mais o governador e dizendo sentir incompatibilidade com a ideia de votar no correligionário na eleição de outubro. Alckmin respondeu afirmando que o prefeito havia sido injusto com ele e com a legenda.
Alckmin, de 65 anos, está no quarto mandato como governador de São Paulo, deverá disputar a Presidência da República pela segunda vez. Em 2006 chegou ao segundo turno, mas foi derrotado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Além do governo do Estado, Alckmin, que é um dos fundadores do PSDB, foi vereador e prefeito de Pindamonhangaba, sua cidade natal. Foi também deputado estadual e federal por São Paulo antes de ser eleito vice-governador na chapa encabeçada por Mario Covas, em 1994 e 1998. Assumiu o governo paulista em 2001 com a morte de Covas e foi reconduzido ao cargo na eleição de 2002.
Após a derrota eleitoral de 2006, perdeu a disputa pela prefeitura de São Paulo dois anos depois, antes de se eleger governador mais duas vezes, em 2010 e 2014.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Intervenção no Rio: Procuradoria diz que mandado coletivo pressupõe que moradores de bairros pobres são 'naturalmente perigosos'

Na última segunda-feira, o decreto da intervenção federal na segurança pública do Rio rendeu uma vitória política muito importante ao Palácio do Planalto. Foram 340 votos favoráveis na Câmara dos Deputados - até deputados de partidos de oposição, como PDT, PSB e Rede, apoiaram a proposta. E na noite desta terça, o Senado aprovou definitivamente a medida.
Mas há um lugar a poucos metros do Congresso no qual a iniciativa de Michel Temer (MDB) não foi tão bem recebida: a Procuradoria-Geral da República (PGR).
No começo da noite desta terça-feira, a procuradora Deborah Duprat distribuiu aos colegas um texto no qual faz críticas duras ao decreto, anunciado pelo governo na última sexta-feira. Ela é a chefe da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
A peça é uma "nota técnica conjunta", assinada por Duprat e mais três procuradores, incluindo a coordenadora da 2ª Câmara do Ministério Público Federal (que trata da área criminal), Luiza Cristina Fonseca Frischeisen.
Quatro pontos chamaram a atenção dos procuradores, mas as críticas mais duras foram ao ministro da Defesa, Raul Jungmann. No começo da semana, ele defendeu o uso de mandados de busca e apreensão "genéricos", isto é, destinados a várias casas em uma mesma rua, bairro ou favela.
"Na realidade urbanística do Rio de Janeiro, você muitas vezes sai com uma busca e apreensão numa casa, numa comunidade, e o bandido se desloca. Então, você precisa ter algo que é exatamente o mandado de busca e apreensão e captura coletiva, que já foi feito em outras ocasiões. Ele precisa voltar para uma melhor eficácia do trabalho a ser desenvolvido tanto pelos militares como pelas polícias", disse.
Para a chefe da Procuradoria dos Direitos do Cidadão, porém, o procedimento é "ilegal".
"Mandados em branco, conferindo salvo conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade, do domicílio", diz o texto.
Segundo os procuradores signatários da nota, os mandados contra os moradores de bairros e comunidades seriam uma medida discriminatória. A ideia de um mandado de busca coletivo, diz eles, "faz supor que há uma categoria de sujeitos 'naturalmente' perigosos e/ou suspeitos, em razão de sua condição econômica e do lugar onde moram".
Além disso, algumas autoridades teriam defendido violações aos direitos humanos em entrevistas à imprensa, dizem os procuradores. Acesse a íntegra da nota aqui.
"Os signatários desta nota técnica não a podem concluir sem manifestar sua perplexidade com as declarações atribuídas ao Comandante do Exército (general Eduardo Villas Bôas), no sentido de que aos militares deveria ser dada 'garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade', e ao ministro da Justiça (Torquato Jardim), o qual, em entrevista ao jornal Correio Braziliense, fez uso da expressão 'guerra'", diz o texto.
"Guerra se declara ao inimigo externo. No âmbito interno, o Estado não tem amigos ou inimigos. Combate o crime dentro dos marcos constitucionais e legais que lhe são impostos", conclui.
O decreto de intervenção federal está em vigor desde que foi assinado, na sexta-feira passada. A medida significa que o controle da segurança pública no Rio passa a ser do general do Exército Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste.
A intervenção federal está prevista para durar até o dia 31 de dezembro deste ano. Polícia Militar, Civil, Bombeiros e administração dos presídios estão sob controle de Netto.

Suavização

Nesta terça, o ministro Torquato Jardim (Justiça) suavizou as declarações de Raul Jungmann sobre a necessidade de mandados de busca coletivos.
Segundo ele, pode ser que algumas operações precisem de buscas em vários locais, mas não de forma indiscriminada.
"Não há mandado coletivo. Há mandado de busca e apreensão, que conforme a operação, se dedicará a um número maior de pessoas", disse Jardim.
"O mandado de busca não pode ser genérico, isso a Constituição não permite (...). Portanto, esses mandados de busca e apreensão conterão um número maior ou menor de pessoas em razão do objetivo do inquérito que estará sendo realizado", disse ele.
A reportagem da BBC Brasil falou com a assessoria de imprensa de Raul Jungmann na noite desta terça-feira, mas não foi possível obter comentários do ministro.
O titular da Defesa deve abordar o assunto novamente nesta quarta-feira, após um evento marcado para as 14h30, em Brasília.

Outras preocupações

Além dos mandados genéricos, há outros três pontos da intervenção que são apontados como motivo de preocupação pelos procuradores signatários da nota técnica:
- O decreto não especifica quais ações serão tomadas, e fixa um prazo longo demais. A Constituição, dizem os procuradores, manda que intervenções deste tipo sejam feitas com "amplitude, prazo e condições" já definidas no decreto. A peça feita pelo Planalto "não cumpre com essa exigência". A proposta trataria de "competências genéricas" do general Braga Netto, sem detalhar "as providências específicas que serão adotadas".
- O texto aprovado no Congresso diz que Braga Netto "não está sujeito" às leis estaduais do Rio que entrarem em conflito com o cumprimento dos objetivos da intervenção. Para Duprat e seus colegas, Braga Netto precisa cumprir também as leis locais, integralmente, de modo a respeitar o Poder Legislativo do Rio e a separação de Poderes. A "imunidade" às leis estaduais "violenta um dos pilares do regime democrático e abre grave precedente", dizem os procuradores.
- Para os procuradores, o general Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste, atuará como um interventor civil, e seus atos devem ser julgados (se for o caso) pela Justiça comum, não pela Justiça Militar. A própria intervenção deve ser considerada civil, e não militar. "Qualquer interpretação que tente vincular o exercício da função de interventor com o desempenho de função estritamente militar será inconstitucional", diz a nota técnica.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão é o braço do Ministério Público que existe para representar os cidadãos frente aos órgãos públicos, protegendo direitos individuais e também aqueles chamados de "direitos coletivos" e "difusos", isto é, que dizem respeito a grande número de pessoas.
Deborah Duprat foi nomeada para a chefia do órgão por Rodrigo Janot, antecessor de Raquel Dodge no comando do Ministério Público Federal. Ela foi também vice-procuradora-geral na gestão de Roberto Gurgel (2009-2013).
A reportagem da BBC procurou Duprat por meio da assessoria de imprensa na noite desta terça-feira, mas não conseguiu contato com ela.

Tiroteio

A peça assinada por Duprat é a primeira manifestação oficial do Ministério Público Federal sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro. Mas desde que o tema começou a ser discutido, vários procuradores já fizeram críticas à iniciativa do Palácio do Planalto nas redes sociais.
"Se essa autorização (dos mandados de busca) for dada, será bom usá-la também em buscas coletivas nas avenidas Paulista e Luís Carlos Berrini, em SP, na avenida Vieira Souto, no Rio, e no Lago Sul, em Brasília. Afinal, a lei é para todos", escreveu o procurador Wellington Saraiva no Twitter, citando endereços nobres de Rio, São Paulo e Brasília.
"Imaginem um mandado de busca e apreensão genérico no setor de mansões em Brasília para combater a corrupção. Não dura duas horas antes do STF (Supremo Tribunal Federal) cassar. Se não vale para os ricos, não vale para os pobres", argumentou um procurador da Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima, no Facebook.