A morte trágica de um adolescente de
15 anos, que morava em Goiás e se enforcou em fevereiro deste ano, deu o
alerta para a Polícia Civil do Estado sobre a atuação de um grupo
online de incentivo ao suicídio nas redes sociais. Outras mortes de
adolescentes, que teriam sido encorajadas pelos mesmos perfis online,
também são investigadas. De acordo com os investigadores, os casos
estariam relacionados a dois grupos de Facebook cujos nomes, por
questões de segurança, a BBC Brasil optou por omitir.
Uma das
páginas foi retirada do ar, a outra continua ativa, apesar de já ter
sido temporariamente removida após denúncias. Ambas são apontadas como
responsáveis por incentivar jovens a atentar contra a própria vida.
Induzimento ao suicídio é crime previsto pelo Código Penal brasileiro:
quando o resultado da indução é a morte de alguém, o acusado pode pegar
até 6 anos de prisão.
De acordo com as investigações, as duas
páginas de Facebook possuem o mesmo administrador, um perfil
supostamente pertencente a um brasileiro. Juntas, chegaram a somar mais
de 43 mil membros. A primeira, que segue ativa, possui, atualmente, 25,6
mil membros.
Os líderes dos grupos que incentivam suicídios se
apresentam como adolescentes de diversos Estados, entre eles São Paulo,
Mato Grosso, Rondônia e Amazonas. Há também administradores em outras
regiões do Brasil, que não foram reveladas pela polícia.
Por
meio de desafios, cuja missão final é atentar contra a própria vida,
participantes dos grupos teriam sido induzidos ao sucídio.
As
tarefas são repassadas aos adolescentes por meio de grupos de WhatsApp,
para os quais são convidados os participantes dos grupos de Facebook que
se interessam pelos desafios. "Nesta segunda fase, somente aqueles que
recebem um link de convite podem entrar. É mais complicado termos
informações sobre esses grupos, porque são fechados", afirma a delegada
Sabrina Leles, da Delegacia Estadual de Repressão aos Crimes
Cibernéticos (DERCC) de Goiás.
Entre os desafios estão: invasão a redes sociais e computadores de terceiros, disseminação de fake news e automutilação.
"Os
grupos dizem que o objetivo deles é fazer piada, contar histórias e
apoiar uns aos outros. No entanto, temos provas que mostram que o
objetivo é criminoso", diz a delegada.
O jogo
Os desafios têm início
quando os jovens são chamados para participar dos jogos. Na maioria dos
casos, os convites são feitos por meio de mensagens privadas no
Facebook, motivadas pela participação em páginas pertencentes aos grupos
na rede social. Os responsáveis por convidar os adolescentes são os
moderadores ou administradores dos grupos, que têm a missão de atrair o
maior número possível de jovens.
Segundo a Polícia Civil, os
grupos investigados têm como figura mais importante o curador, cujo nome
não será divulgado pela BBC Brasil. Abaixo dele estão os
administradores e depois os moderadores. Cada um possui funções no jogo,
que variam da cooptação de jovens à invasão de computadores.
Um
adolescente que participou do grupo relatou à Polícia Civil que os
organizadores se tornam íntimos dos participantes, perguntam sobre
questões familiares e relacionamentos amorosos.
"Eles pegam nos
pontos fracos dos participantes. Dizem que a família não os ama e que os
amigos não gostam deles. Depois de um tempo, começam a incutir a ideia
de que ninguém gosta do adolescente de verdade e, por isso, seria melhor
ele acabar com o sofrimento e se matar, porque todo mundo morre no
final. Aconselham o adolescente a 'adiantar o processo'", relata Leles.
Antes de aceitar participar dos desafios, os jovens são informados de
que a última fase é o suicídio. Três adolescentes, que participaram do
jogo, confirmaram à polícia que sabiam da etapa na qual teriam que
atentar contra a própria vida. Um deles disse ter tentado se matar duas
vezes, para cumprir a fase final, porém foi socorrido por parentes.
O
fato de o jovem conhecer as etapas do jogo antes de iniciá-lo é a
principal diferença entre os desafios e o jogo virtual Baleia Azul - que
também estimula adolescentes a tirar a própria vida -, diz a Polícia
Civil. "No Baleia Azul, o curador se apossava de informações da vida
íntima do adolescente. O jovem era obrigado a participar, mediante
ameaça de que seria punido caso não concluísse os desafios. Nos grupos
atuais, os adolescentes participam porque, em tese, querem", pontua a
delegada.
Professora de Psiquiatria da infância e adolescência da
Faculdade de Medicina da USP, Sandra Scivoletto afirma que o adolescente
que participa desse tipo de desafios possui, geralmente, algumas
dificuldades em relação a si mesmo e a seu círculo social, como
insegurança e problemas de autoimagem.
"Eles aceitam esses
desafios para fortalecer a autoestima. Não podemos dizer, pois ainda
faltam estudos, que haja uma pré-disposição ao suicídio. Mas podemos
afirmar que a participação nesses desafios envolve adolescentes com
problemas anteriores na vida real, não apenas no mundo virtual", diz.
Os desafios
Logo
que aceitam entrar no jogo, os participantes são colocados em um grupo
de WhatsApp. Nele, os administradores ou moderadores distribuem os
desafios. Uma das tarefas é a invasão de computadores. A prática ocorre
por meio de um vírus, vendido pelos administradores, com o qual seriam
capazes de invadir sistemas e perfis em redes sociais.
Entre as
missões também estão apagar perfis de Facebook, indicados pelos
administradores; implantar fake news, por meio de perfis invadidos;
buscar novos membros para os desafios e participar de ataques a páginas
nas redes.
Os ataques funcionam por meio de comentários ofensivos
em páginas de conhecidos do participante ou a perfis de famosos. Eles
costumam reunir diversos membros dos grupos investigados e não se
restringem àqueles que estariam participando dos desafios.
Outro desafio proposto pelos líderes do grupo é a automutilação. O
participante deve cortar parte do próprio corpo e enviar imagens do
sangramento. À Polícia Civil, a ex-namorada do adolescente que se
suicidou em Goiás disse que o jovem tinha passado a se cortar pouco
antes de cometer suicídio. Duas semanas antes da morte do rapaz, os pais
notaram os cortes em seu braço. "Ele disse que tinha se machucado em
nossa chácara. Como não tínhamos motivo para pensar que ele estivesse
mentindo, acreditamos", relata o gerente comercial Onilton Pires, pai do
adolescente.
Cada etapa cumprida pelo participante representa
mais prestígio entre os administradores. "Eles vão se tornando
importantes na hierarquia desse grupo", diz a delegada.
A fase do
suicídio é considerada, para o grupo, o ápice do desafio. "Os
administradores orientam passo a passo como obter coragem" para o ato,
diz a delegada.
As investigações
A descoberta
sobre os grupos de incentivo ao suicídio se deu após Onilton Pires
relatar à Polícia Civil um fato que causou estranheza no velório de seu
filho: diversos adolescentes desconhecidos acompanharam a cerimônia e
fizeram fotos no local. Alheios ao luto da família, eles não
demonstravam tristeza. Conforme as investigações da Polícia Civil, o
objetivo deles era mostrar aos administradores do jogo que o jovem
realmente havia se suicidado.
Outro fato que também despertou
desconfiança na polícia foi o suicídio de Júlio (nome fictício), de 13
anos, também em Goiás, no mesmo dia em que o filho de Onilton se matou. O
garoto se jogou do 26º andar do prédio da avó. A família dele também
procurou a Polícia Civil. Porém, as investigações comprovaram que Júlio
não participava dos desafios. "Ele tinha amplo acesso à internet e havia
manifestado vontade de se matar, mas não participava dos grupos", conta
a delegada Sabrina Leles.
Em relação ao filho de Onilton Pires, a
Polícia Civil assegura que ficou comprovada a participação do jovem nos
grupos e que eles efetivamente incentivaram seu suicídio. Para tal
constatação, as investigações analisaram o computador do adolescente. O
aparelho havia sido formatado por ele antes de morrer e todos os dados
foram apagados. O fato chamou a atenção dos pais do jovem, que disseram
que ele não costumava excluir as informações do computador.
Alguns
itens foram recuperados pela Polícia Civil, entre eles uma carta de
despedida do jovem. "Em um trecho, ele dizia que não era para os pais se
preocuparem, porque ele não havia participado de nenhum jogo de
internet. Isso causou estranheza, porque a família disse que nunca o
questionou sobre esse assunto. Era aquela coisa da psicologia invertida:
'vou dizer que não participo, para eles não pensarem isso'. Mas, no
fundo, ele participava, sim", diz a delegada.
No quarto do jovem
também havia um pen drive com um vírus capaz de invadir sistemas e redes
sociais, além de implantar fake news. Os amigos do jovem disseram à
polícia que ele comprou o vírus do curador de uma das páginas, por pouco
mais de R$ 400, para cumprir parte das etapas do jogo.
Por meio das poucas conversas resgatadas do computador, a polícia
identificou Marcelo*, de 18 anos. Ele teria sido o intemerdiário dos
contatos entre o jovem morto e os administradores dos grupos
pró-suicídio.
Marcelo também participava do jogo. Porém, disse
ter desistido dos desafios porque não queria se matar. Em depoimento à
Polícia Civil, o jovem declarou acreditar que o amigo foi influenciado a
participar do jogo e a pôr fim à própria vida.
Para Onilton, no
entanto, Marcelo teria sido o responsável por convencer o garoto a
participar do jogo. "Não tenho nenhuma dúvida de que ele influenciou meu
filho a entrar nisso. Meu filho era muito corajoso, então ele deve ter
mostrado como funcionavam os desafios, para convencê-lo", diz o pai.
Além
de responder pelo crime de incentivo ao suicídio, que prevê prisão de
dois a seis anos, se o ato for consumado, os administradores das duas
páginas podem também responder por tentativas de suicídio que resultem
em lesão corporal grave. Nesse caso, a pena pode variar de um a três
anos de reclusão. Como os investigados são menores de idade, a
condenação e cumprimento da pena devem seguir diretrizes do Estatuto da
Criança e do Adolescente. Conforme a Polícia Civil, nenhum jovem foi
apreendido até o momento.
Por meio de comunicado publicado em sua
página no Facebook, os administradores da página ainda ativa negaram a
realização dos desafios suicidas. Para eles, tais informações são "puro
sensacionalismo da mídia". "Menosprezamos tal conduta [de incentivo ao
suicídio]. Consideramos um ato horrível. Buscamos ser uma família e
ajudar a todos que precisam", diz trecho do texto disponibilizado no
grupo.
A delegada Sabrina Leles frisa que há provas suficientes
para determinar o elo entre o grupo e o jogo que incentiva o suicídio.
"Eles não vão confessar isso no Facebook, onde qualquer um pode ver.
Esse incentivo acontece de modo individual. Tudo o que foi levantado
pela Polícia Civil tem como base provas e declarações colhidas nas
investigações."
Conforme Leles, as apurações apontaram ainda que
outros grupos de Facebook também teriam incentivado suicídios de
adolescentes. "Os casos estão sendo investigados", explica.
Outras mortes
Os
suicídios de duas adolescentes de Goiás são investigados pela Polícia
Civil, que suspeita que elas também possam ter sido incentivadas pelo
grupo ainda ativo. As jovens moravam no município de Rio Verde. Uma
delas, de 14 anos, se jogou do quinto andar do prédio de sua escola, em 7
de março. Semanas depois, a outra garota, de 13 anos, se enforcou no
quintal de casa.
"Elas tinham, entre os amigos no Facebook, pessoas que seriam
responsáveis por buscar novos membros para esses jogos. Mas só ao fim
das investigações saberemos se elas também foram influenciadas", comenta
a delegada.
A atuação do grupo pode ter extrapolado fronteiras. A
Polícia Civil investiga o suicídio de uma adolescente brasileira, de 15
anos, que morava no País Basco, região da Espanha.
De acordo com
Leles, não é descartada a possibilidade de que as mortes de outros
jovens tenham sido motivadas pelo grupo. "Não temos condições de
investigar outros casos agora. Uma das dificuldades é que as
investigações que envolvem questões virtuais devem ocorrer o quanto
antes, após a situação."
'Quero que eles sejam presos'
Desde
que o filho caçula se matou, Onilton Pires tem se perguntado o porquê
de o adolescente ter participado do grupo. "Ele era um filho muito
estudioso, atencioso e não dava problemas para a gente. Ele não
costumava sair muito e passava a maior parte de seu tempo em frente ao
computador. Nunca passou pela nossa cabeça que ele tivesse pensamentos
suicidas", lamenta.
Ele conta que o filho se tornou mais
introvertido e passou a dialogar menos com os pais nas duas semanas
antes de morrer. "A minha esposa disse a ele que ele estava diferente.
Ele respondeu que estava do mesmo jeito. Mas a gente via que ele estava
mais triste e calado. O meu filho sempre foi muito extrovertido. Por
isso, tínhamos decidido que iríamos procurar acompanhamento psicológico
para ele, mas não deu tempo", comenta.
O pai costuma se perguntar
sobre as atitudes que poderia ter tomado para evitar que o filho
atentasse contra a própria vida. "Talvez eu devesse ter tirado um dia
para sentar ao lado dele no computador. Eu achei que com tudo o que
proporcionava, estava protegendo ele do mundo. Mas na verdade, eu estava
dando o acesso a ele ao mundo", declara.
A psiquiatra Sandra
Scivoletto afirma que é fundamental que os pais acompanhem as atividades
dos filhos na internet e evitem o uso excessivo das redes sociais. "O
uso inadequado dificulta acompanhar o que o filho vive e o que faz. Por
isso, é importante os pais estarem próximos. É necessário conhecer um
pouco mais sobre o mundo virtual dos jovens", pontua.
Em meio às
perguntas sem respostas sobre o filho, Onilton e a mulher, Cleide Pires,
torcem que os envolvidos no grupo de incentivo ao suicídio sejam
presos. "É o mínimo que esperamos. Tenho certeza de que se eles forem
presos, a situação vai ser um pouco mais moralizada. As pessoas perderam
o senso do perigo da internet e o limite", assevera.
Onilton e
Cleide têm buscado formas de seguir adiante, desde que perderam o filho.
Nas próximas semanas, devem se mudar da casa em que viviam com o jovem.
Para eles, a residência lembra o filho a todo instante. "A gente sabe
que essa dor pela perda nunca vai passar, mas espero que ao menos
amenize, para que possamos aprender a viver com ela."