quinta-feira, 18 de abril de 2019

A ascensão da Okaida, facção criminosa com 6 mil 'soldados' na Paraíba

Era para ser uma espécie de clipe musical sobre o crime na Paraíba. Sete jovens estão com os rostos cobertos por panos brancos. Ao violão, um deles toca uma melodia roqueira. Três garotos, mais atrás, carregam facas e fazem movimentos de dança como se estivessem golpeando alguém. À frente, o vocalista nomeia a música: "Mago do Facão".
A letra começa assim: "Pensamento eloquente me leva a mais um aviso / poder do crime fica cada vez mais infinito". O refrão, por sua vez, explica quem é o protagonista do som: "Nossa união é massa em várias quebradas / fechamento forte / facção Okaida".
O vídeo, gravado em uma prisão e publicado no YouTube em maio de 2017, mostra duas características da facção que hoje praticamente domina o crime paraibano: juventude e autopromoção em redes sociais.
Composta de jovens e adolescentes, a Okaida cresceu nos últimos anos: atualmente, domina vários municípios, expandiu seus braços para Pernambuco e conta com 6 mil membros "batizados" na Paraíba, segundo investigação do Ministério Público Estadual paraibano.
Como comparação, o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior e mais poderosa facção do país, tinha pouco mais 30 mil "filiados" em 2017 - recentemente, o grupo fez uma campanha para aumentar seu "exército".
Em outubro do ano passado, os "soldados" da Okaida deram outra demonstração pública de força: promoveram queimas de fogos de artifício para comemorar o aniversário da sigla em seis cidades da Paraíba, como João Pessoa, Campina Grande, Santa Rita e Guarabira. Vídeos da festa estão nas redes sociais e no YouTube.
Em bairros mais pobres da capital paraibana, a Okaida dita até um código de conduta para seus integrantes e moradores. As proibições são pintadas nos muros: não pode usar drogas na frente de crianças, roubar na comunidade, escutar som alto tarde da noite e andar de moto em alta velocidade.

A origem da Okaida

Há histórias diferentes sobre a origem da facção. Okaida é uma forma abrasileirada do nome da rede terrorista que já foi comandada por Osama bin Laden, a Al-Qaeda. Mas a versão brasileira não tem nenhum aspecto religioso por trás.
O certo é que a quadrilha cresceu em paralelo com seu maior rival, a facção Estados Unidos, criada em meados dos anos 2000.
O conflito entre os dois grupos de criminosos já dura alguns anos nas ruas e nos presídios - e, ironicamente, emula a guerra empreendida pelos americanos contra o terrorismo.
No início dessa década, enquanto a Okaida dominava bairros de João Pessoa como a Ilha do Bispo, São José e Alto do Mateus, os membros dos Estados Unidos estavam presentes nas regiões de Mandacaru, Bola da Rede e Novais.
Os dois grupos também se diferenciam pelas tatuagens de seus integrantes, como registra uma dissertação de mestrado concluída em 2015 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Feito pelo tenente-coronel Carlos Eduardo Santos, da Polícia Militar da Paraíba, o estudo mapeou os símbolos marcados na pele dos filiados às facções.
Quem é da Okaida costuma marcar a pele com palhaços ou com o personagem Chucky, do filme Brinquedo Assassino. Já os membros da Estados Unidos tatuam a bandeira americana ou o desenho de um peixe.
Nos últimos anos, porém, o crescimento da Okaida praticamente suplantou sua rival em número e força, ainda que a Estados Unidos continue ocupando alguns poucos bairros e pavilhões de cadeias de João Pessoa, segundo agentes de segurança.

A presença do PCC

A relação entre as duas facções locais tem forte influência de um elemento "forasteiro": o PCC. Até 2010, a Okaida era mais próxima do grupo paulista, que fornecia parte da droga vendida nas ruas. Mas um assassinato, que teria sido cometido a mando do PCC sem o aval dos paraibanos, afastou os grupos e criou um antagonismo violento entre eles.
Nos anos seguintes, o grupo de São Paulo se aliou à Estados Unidos, aumentando o conflito local. A guerra foi promovida dentro e fora dos presídios com episódios de barbárie.
Segundo pesquisadores, desde o ínico da década passada, o PCC decidiu atuar no atacado e fornecer a droga para grupos menores venderem nas capitais.
"No início dos anos 2000, o PCC chegou nas fronteiras e conseguiu importar a droga, que ele repassa para aliados menores", diz Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores do livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Ed. Todavia).
A chegada dos paulistas no Nordeste e a maior oferta de drogas aumentaram rivalidades entre traficantes locais, avalia Paes Manso. "Como é um mercado ilegal, as disputas se dão pela força. E como o PCC também colocou armas na região, essa dinâmica produziu mais violência e assassinatos", diz.
Na Paraíba, por exemplo, a taxa de homicídios cresceu bastante nesse período. Em 1996, o Estado registrava 19,2 assassinatos por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência. Já em 2011, seu pico, o número chegou a 42,5 mortes por 100 mil habitantes.
No Rio Grande do Norte, que também enfrenta problemas com facções criminosas, o aumento foi mais dramático. Em 1996, o Estado registrava 9,4 assassinatos por 100 mil - em 2016, foram 53,3, alta de 466% em 20 anos.

Os jovens da Okaida

Um dos motores do crescimento da Okaida foi sua política de filiar menores de idade - embora a Estados Unidos também utilize adolescentes, seu aliado PCC evita batizá-los, segundo agentes de segurança da Paraíba.
"Os que se dizem integrantes de facções no nosso Estado são pessoas bastante jovens, inclusive admitindo-se adolescentes entre os faccionados", diz o promotor Manoel Cacimiro Neto, do Gaeco (Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado) do Ministério Público da Paraíba.
Divergências com as "doutrinas" do PCC, aliás, explicam também a criação de outra facção nordestina, o Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte. O grupo potiguar surgiu depois que criminosos questionaram a obrigação do PCC de submeter decisões a chefes em São Paulo.
Essa presença massiva da juventude nas facções do Nordeste tem impacto negativo no índice de homicídios dessa faixa etária - são eles as maiores vítimas dos conflitos.
Segundo o Atlas da Violência, que reúne dados até 2016, a taxa de mortes violentas entre jovens paraibanos de 15 a 29 anos chegou a 70,4 pessoas por grupo de 100 mil habitantes. Embora o número seja considerado muito alto, ainda é menor que os de Estados vizinhos, como Ceará (87,6) e Pernambuco (105,3) - a média nacional é 65.
No Rio Grande do Norte, cuja quadrilha Sindicato do Crime também aposta no aliciamento de jovens e adolescentes, o índice de assassinatos entre eles chega a 125,5 por 100 mil habitantes - alta de 734% em 20 anos.

Rede de facções

Segundo Marcelo Gervásio, presidente da Associação dos Agentes Penitenciários da Paraíba, os maiores presídios do Estado têm alas separadas para integrantes da Okaida, Estados Unidos e PCC, mas a primeira ganha em número.
"Essa divisão ocorre para garantir uma certa segurança do preso", afirma.
Do lado de fora das prisões, a Okaida se aliou ao Sindicato do Crime em uma rede de facções que se contrapõem à presença do PCC no Norte e no Nordeste - também fazem parte o Comando Vermelho, do Rio, e a Família do Norte, que atua na região amazônica.
Essa divisão causou três massacres de presos em cadeias da região em 2017 - os dois primeiros em Manaus e Boa Vista. O último ocorreu no presídio de Alcaçuz, na Grande Natal - ao menos 26 homens ligados ao Sindicato do Crime foram mortos por detentos do PCC. O motim seria uma vingança pelo ataque em Manaus, quando dezenas de integrantes da facção paulista foram assassinados por membros da Família do Norte.
Segundo o promotor Manoel Cacimiro Neto, do Gaeco, essa rede anti-PCC consegue abastecer a região com drogas e armas vindas de países fronteiriços, como Colômbia e Bolívia.
Já o delegado Braz Morroni, ex-chefe da delegacia de narcóticos da Paraíba, aponta que a Okaida consegue carregamentos oriundos do chamado "polígono da maconha", região de Pernambuco conhecida por produzir grandes quantidades de cannabis.
Para o deputado estadual paraibano Walber Virgolino (Patriotas), que foi secretário de Administração Penitenciária da Paraíba e do Rio Grande do Norte, um dos principais objetivos das facções locais é impedir que o PCC domine o tráfico de drogas na região. "Hoje, o PCC só não tem o controle da Paraíba por causa da Okaida", diz o parlamentar, hoje na oposição ao governador João Azevedo (PSB).

A 'nova doutrina'

Há pouco mais de um ano, houve uma cisão na Okaida. Integrantes ficaram descontentes com o então chefe do grupo, o detento André Quirino da Silva, conhecido como Fão.
"Alguns membros ficaram muito irritados com a violência praticada por esse líder. Fão mandava matar pessoas da própria facção", diz Braz Morroni, hoje titular da delegacia de roubos e furtos.
Surgiu uma dissidência chamada Okaida RB (iniciais dos apelidos de presos conhecidos como Ro Psicopata e Betinho, criadores do novo grupo). Rapidamente, a nova facção ganhou milhares de adeptos (6 mil, segundo o Ministério Público), assumindo a maior parte do poder da antiga.
Embora a Okaida RB ainda seja inimiga declarada do PCC, ela passou a seguir parte de suas "doutrinas", segundo Morroni. A nova estratégia, que inclui ditar um código de conduta nos bairros, tenta diminuir os assassinatos e roubos próximos de pontos de venda de droga - com isso, a facção evita a presença da polícia.
"O foco são os negócios e não mais a violência extrema. Antigamente, dívidas de tráfico eram punidas com a morte. Hoje, a Okaida negocia outras formas de pagamento ", afirma o delegado.
Para o promotor Manoel Cacimiro Neto, a Okaida "não possui uma estrutura hierarquizada rígida, a exemplo do PCC". Ou seja, apesar de existirem chefes com maior influência, a facção "pulverizou" o poder em vários territórios, segundo Neto.

A expansão

A ascensão da Okaida coincide com uma sequência de quedas dos homicídios na Paraíba. Segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que compila dados das secretarias estaduais da área, o Estado registrou 1.286 assassinatos em 2017 - baixa de 16,7% em relação a 2014.
Segundo especialistas, boa parte da queda está relacionada ao programa de redução de homicídios do governo estadual, o "Paraíba Unida pela Paz", que conseguiu diminuir a taxa de homicídios para 31,9 mortes a cada 100 mil habitantes em sete anos.
Por outro lado, a Okaida expandiu seus braços para outros cidades paraibanas. A facção atua em muncípios como Cachoeira dos Índios e Campina Grande, a segunda maior cidade do Estado.
Reportagem do jornal Correio da Paraíba mostrou que vários bairros da periferia de Campina Grande já estão ocupados pelo grupo criminoso - em um deles, por exemplo, integrantes da facção têm o controle até das chaves de uma escola pública.
Ao sul, células da Okaida também foram desmontadas pela polícia em cidades de Pernambuco.
Em março do ano passado, uma operação da Polícia Civil descobriu que integrantes da Okaida estavam organizando roubos e o tráfico de drogas em Camutanga, município na zona da mata pernambucana. Outra célula foi descoberta neste mês em Afogados, bairro do Recife.
Os presídios pernambucanos também têm presença de integrantes da Okaida, segundo João Carvalho, presidente do sindicato dos agentes penitenciários local. "Nas cadeias de Pernambuco, a força das facções se divide entre PCC, Okaida e Comando Vermelho", diz.

Os presídios e o que dizem os governos

Tanto a Paraíba quanto Pernambuco têm superlotação em suas cadeias. Aliada à precariedade estrutural dos espaços, o aumento exponencial da massa carcerária facilita, em tese, o aliciamento de novos "soldados" pelas facções criminosas.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a Paraíba apresenta um déficit de 5.430 vagas no sistema carcerário - no total, o Estado tem 13.189 presos. O governo diz que tem investido na criação de novos presídios.
Já Pernambuco tem 32.884 detentos para 11.689 vagas - déficit de mais de 21 mil. O governo de Paulo Câmara (PSB) afirma que "criou nos últimos quatro anos 2.374 vagas nos presídios" para diminuir a superlotação.
Sobre a expansão da Okaida, o governo da Paraíba diz que programas estaduais de redução da violência têm dado certo. "O resultado foi a queda de crimes contra a vida durante sete anos consecutivos no Estado e também nos primeiros três meses de 2019."

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Milícia no Rio de Janeiro: como é a vida em Rio das Pedras, bairro dos suspeitos da morte de Marielle

Quando deixou sua cidade no Nordeste, ainda jovem, rumo ao Rio de Janeiro, Zélia (nome fictício) sabia da fama de perigosa que a cidade carregava, mas tinha ouvido falar que o lugar onde se instalaria, Rio das Pedras, perto da Barra da Tijuca, na zona oeste, era mais calmo.
Sua fama de "favela tranquila" não se deve à ausência de violência, mas à imposição de certa ordem pela força e pelo medo, não do tráfico, mas da milícia, grupo armado violento formado por integrantes e ex-integrantes de forças de segurança do Estado, como policiais, bombeiros e agentes penitenciários.
Apesar de ser a terceira maior favela da cidade, atrás de Rocinha e Maré, Rio das Pedras não costumava frequentar o noticiário nacional como as outras duas, marcadas por disputas entre facções criminosas e entre criminosos e policiais.
Nos últimos meses, no entanto, Rio das Pedras vem se tornando mais conhecida. Em janeiro, o Ministério Público e a Polícia Civil do Rio prenderam lideranças de uma milícia que atua ali, no bairro vizinho de Muzema e adjacências.
Investigações mostraram que Rio das Pedras é a sede do chamado Escritório do Crime, suposto grupo de extermínio formado por policiais reformados ou na ativa que pode ter sido responsável pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, que aconteceu em março de 2018 e até hoje, 11 meses depois, não foi esclarecido.
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  • O que são e como agem as milícias acusadas de matar Marielle FrancoA polícia encontrou imagens que mostram o carro usado pelos assassinos passando por um via que margeia a favela.
    Outro motivo que fez país voltar o olhar para o lugar é por sua aparente conexão com o poder. Segundo o jornal O Globo, Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL) - filho do presidente Jair Bolsonaro - ficou abrigado ali após vir à tona que ele fora citado em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) devido a uma movimentação atípica de valores em sua conta.
    Em 2005, o filho do presidente homenageou o policial suspeito de integrar a milícia, Adriano Magalhães da Nóbrega, entregando a ele a medalha Tiradentes, uma honraria concedida pelo Estado do Rio a pessoas que prestaram bons serviços públicos. Alvo da operação policial deflagrada em janeiro, Nóbrega está foragido.

    Como é morar em Rio das Pedras hoje

    Desde 1951, quando começou a ser ocupada, a favela de Rio das Pedras cresceu muito, e rapidamente, acompanhando o desenvolvimento da cidade na zona oeste. Seu nome se deve ao rio que a atravessa, que nasce na floresta e deságua na Lagoa da Tijuca.
    No início, era ocupada por pescadores, diz Jorge Jáuregui, arquiteto responsável pelo projeto de urbanização Favela-Bairro, implementado (mas não concluído) na década de 1990.
    Sua população, esparsa durante a década de 1960, foi aumentando atraída especialmente pelas oportunidades que surgiam na região da Barra da Tijuca, bairro próximo e que passou por um boom de construção civil nas décadas seguintes. Muita gente veio também de outras favelas, numa época em que o poder público adotava uma política de remoção, segundo dissertação de mestrado em arquitetura pela USP de Izabel Mendes.
    Cresceu até se tornar a terceira maior favela do Rio, segundo estimativa da Prefeitura com base no IBGE de 2010. Tem 63.484 habitantes, boa parte deles de origem nordestina. Moradores contam que até hoje há um ônibus que faz semanalmente viagens de e para o Ceará direto do bairro.
    A presença nordestina é perceptível em qualquer ponto do bairro, nos sotaques das pessoas, no forró das caixas de som. As ruas são agitadas.
    Marta (nome fictício) veio de um Estado do Nordeste depois de se casar com um homem que já morava em Rio das Pedras. Célia (também nome fictício) veio ainda adolescente, deixando para trás uma vida de doméstica pela qual ganhava R$ 150 por mês.
    Elas e outros moradores com quem a BBC News Brasil conversou dizem que sabem que a região é controlada por milicianos, que isso é comentado em conversas, mas não lidam diretamente com eles e não têm sua vida afetada por suas atividades.
    "Às vezes a gente fica sabendo que alguém fez alguma coisa errada - roubou, vendeu droga, algo assim -, e aí essa pessoa some", diz uma delas.
    "Uma vez, era cedo de manhã, vi dois homens numa moto atirarem nos pés de outro homem que estava em pé em frente a um bar. Aqui é assim, eles avisam uma vez, duas vezes, na terceira te pegam", diz outro morador. "Você leva uma vida tranquila, mas não pode fazer coisas que eles acham ruins. Acostumar, a gente não se acostuma, mas vive um dia após o outro."
    A violência lá é presente, mas mais velada do que em outras favelas, dizem.
    "Não tem gente armada na entrada e nas ruas que nem em outros lugares. Se pudesse, me mudaria para um bairro melhor, mas tenho amigos que moram em favelas como a Rocinha e sei que a vida deles é mais difícil. Eles passam noites em claro ouvindo tiroteio, às vezes não sabem se podem sair de casa para o trabalho. Aqui pelo menos não tem isso."

    O que é a milícia e por que Rio das Pedras é considerado seu 'berço'

    É comum ouvir que Rio das Pedras é o berço das milícias do Rio. Ainda que não seja possível afirmar isso categoricamente, é consenso entre pesquisadores que esses grupos têm décadas de atuação no bairro. O modelo de poder paralelo, à margem do estado mas com a participação de membros dele, hoje é forte principalmente na zona oeste da capital e na Baixada Fluminense.
    "Estes grupos podem ter 20, 30 ou até 40 membros. São pessoas que de alguma forma têm acesso privilegiado a armas e bons contatos na polícia, o que lhes confere proteção. Eles ocupam uma área sob a justificativa de que proporcionarão a segurança que o Estado não é capaz de fornecer, deixam um grupo armado no local e partem para outras áreas para invadi-las", diz Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
    As milícias têm como objetivo principal o lucro, obtido a princípio pela cobrança da proteção oferecida nestes locais.
    "Eles chegam dizendo que trarão a paz, mas isso tem um preço, que é a taxa de segurança imposta a moradores e comerciantes. Quem se opõe, é morto. Depois, as milícias percebem que podem criar um negócio mais amplo e ampliam o portfólio de suas atividades", explica o sociólogo José Cláudio de Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
    O pesquisador diz que atualmente as milícias estão envolvidas na oferta de uma variedade de serviços, como venda de água, gás e cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e internet piratas, roubo e refino de petróleo cru para fabricação de combustível, coleta de lixo e também na apropriação de terras públicas e privadas abandonadas ou sem uso, que são loteadas e vendidas ilegalmente.
    No início, esses grupos não eram chamados de milícia, mas de "polícia mineira".
    "Num primeiro momento, surgiram grupos que são protótipos de milícia, associados a ocupações urbanas de terra, liderados por civis. Eles constroem relações com a população e elegem lideranças, sempre matando e fazendo o uso da violência. A partir dos anos 2000, o modelo atual, liderado por pessoas ligadas às forças de segurança, começa a emergir", diz Alves.
    Seguindo linha parecida com a de Alves, o sociólogo Ignacio Cano, que também pesquisou milícias no Rio, diz que o modelo era um pouco diferente do de hoje. "Havia nas polícias mineiras não só forças de segurança mas também líderes comunitários que não eram policiais." Um exemplo de Rio das Pedras era Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho, candidato da associação de moradores eleito vereador em 2004 e assassinado em 2009.
    Quando começou a fazer pesquisa em Rio das Pedras, na década de 1990, Cano diz já havia um grupo que controlava o território.
    O tipo de atividade era diferente naquela época. "Não ia na linha de pagamento de taxas por serviços, como hoje, era mais um controle imobiliário. Controlavam todas as transações - quem podia construir onde etc. Hoje é um modelo mais invasivo, que lucra a partir de qualquer coisa", diz Cano.
    Esses grupos, diz Cano, impunham medo e criavam certa estabilidade na região. Não deixavam que traficantes de drogas se estabelecessem e eram a principal autoridade local.
    "O Nadinho dizia, 'aqui o povo vem do Nordeste, é um povo ordeiro, que não gosta de tráfico'. Eles impunham ordem, expulsavam o tráfico, diziam o que podia ou não fazer, havia um projeto moral - decidiam se podia ouvir certas letras de música ou não, coisas assim. Diretores de escola, quando não conseguiam ônibus para os alunos, iam falar com a milícia e eles providenciavam. Há depoimentos que mostram que, quando crianças estavam aprontando na escola, chamavam a milícia para mandar uma mensagem."

    Problema crescente

    Cano diz que havia também certa condescendência do poder público em relação a esses grupos. "O Cesar Maia (ex-prefeito do Rio) dizia que eram um mal menor."
    Depois que funcionários do jornal O Dia foram torturados por milicianos, essa postura mudou. Entre 2006 e setembro deste ano, 1.709 pessoas foram presas por ligações com milícias, e os milicianos foram obrigados a adotar um perfil mais discreto, diz Cano.
    Alves acha que o fortalecimento da milícia em Rio das Pedras tem a ver com o acelerado crescimento populacional da favela e a demanda por terras.
    "É uma comunidade que se expande muito rápido, tem um mercado imobiliário pujante. A milícia tem acesso ao mapa da região e começa a ver onde pode montar negócios, ocupar o solo urbano, é um grande negócio."
    Segundo o estudo Favelas Sob o Controle das Milícias no Rio de Janeiro, de Alba Zaluar e Isabel Siqueira Conceição, em 2002 e 2003 a associação de moradores fez uma campanha de regularização e transferência de títulos eleitorais dos moradores de Rio das Pedras, já que boa parte deles vinha do Nordeste. A intenção era eleger Nadinho, o que deu certo.
    O estudo sugere que teria sido a partir daí que começou "a grande expansão da milícia". Elas assumiram controle territorial em outros bairros, às vezes tomando-os de traficantes. Também foi a partir de então que entraram de vez para a política - outras favelas dominadas por milícias começaram a eleger representantes para o Legislativo da cidade e do Estado.
    Cano diz que as eleições lá acontecem da mesma maneira que em outros territórios controlados por grupos armados: "faz campanha quem eles (milicianos) querem".

domingo, 27 de janeiro de 2019

Brumadinho: Justiça libera acesso a dados sobre sinal de celulares para auxiliar na localização de desaparecidos

As equipes dedicadas ao resgate das vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho e à procura dos desaparecidos poderão contar com a ajuda dos dados sobre os sinais de celulares de quem estava na região no horário do acidente quando as buscas forem retomadas.
Na noite de ontem, a AGU (Advocacia Geral da União) obteve na Justiça Federal de Minas Gerais uma liminar que exige que as operadoras de telefonia móvel liberem informações sobre os aparelhos daqueles que estavam na área afetada pela tragédia no Córrego do Feijão sempre que solicitado pelas autoridades envolvidas com a operação de resgate e salvamento.
Através dos dados é possível saber também qual torre de comunicação recebeu o último sinal emitido por um celular que por ventura esteja agora inativo, diminuindo a área de busca o que facilitaria a localização dos aparelhos.
"O objetivo é auxiliar as equipes de busca a localizar as cerca de 350 pessoas desaparecidas após o ocorrido", diz a AGU em comunicado.
Com as informações, as equipes de socorro poderiam saber, por exemplo, quais aparelhos se mantiveram ativos após a tragédia e quais estão inativos desde então.
A assessoria de imprensa do Corpo de Bombeiros afirmou que, até o momento, o recurso ainda não está sendo utilizado e que os profissionais responsáveis pela estratégia de resgate estão reunidos no quartel da Polícia Militar no Morro do Querosene para definir os próximos passos da operação de resgate.
Na madrugada deste domingo, técnicos da mineradora Vale informaram que havia "risco iminente de rompimento" da barragem B6 e, por isso, o trabalho dos Bombeiros e da Defesa Civil no local foi interrompido.
A decisão da Justiça de Minas se estende aos clientes que estavam nas imediações da Mina de Córrego de Feijão entre a meia-noite de quinta-feira, dia 24 de janeiro, e o mesmo horário do dia 25, em um raio de 20 quilômetros.
Conforme o pedido da AGU, as operadoras Vivo, Tim, Claro, Oi, Nextel, Algar Telecom e Sercomtel devem entregar os dados diretamente aos envolvidos nas operações.
A agência informa que autorização judicial é necessária porque o sigilo das comunicações é protegido pela Constituição.

Ajuda externa

Neste domingo, chega a Minas Gerais uma equipe de 136 soldados do Exército israelense, especializada em operações de resgate em situações extremas, para auxiliar na busca por sobreviventes.
A informação, antecipada no sábado pelo presidente Jair Bolsonaro, foi confirmada pelo governo de Minas Gerais.
Na segunda-feira, a equipe fará um reconhecimento da área e iniciará em seguida os trabalhos. Além de especialistas em salvamento, a equipe israelense conta com cães farejadores e 16 toneladas de equipamentos, incluindo radares terrestres.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Infestação de escorpiões desespera famílias no interior de SP e Ministério da Saúde cria 'força-tarefa'

A fotógrafa Caroline Ruffo, de 38 anos, moradora de Americana, cidade a 120 km de São Paulo, precisou mudar do bairro Terramérica para se ver livre da infestação de escorpiões em sua casa - em 20 dias, encontrou pelo menos 10 bichos.
A técnica em RH Jessika Martins, de 27 anos, que mora no Jardim São Pedro - bem em frente a um tradicional colégio da cidade - encontrou 31 escorpiões em sua casa num período de 15 dias e até o trilho do box do banheiro ela retirou em busca de ninhos do animal.
A dona de casa Lúcia Marchesin, de 38 anos, já foi picada duas vezes pelo pequeno aracnídeo, precisando receber soro antiescorpiônico nas duas ocasiões.
Os relatos acima mostram um pequeno retrato do aumento dos casos de acidentes envolvendo escorpiões não apenas no interior de São Paulo, mas em todo o Brasil - o que tem levado as famílias ao desespero para tentar eliminar os animais de dentro de casa.
Segundo série histórica do Ministério da Saúde feita a pedido da BBC News Brasil, o número de casos passou de 52.509 em 2010 para 124.903 no ano passado - um salto de 138% nos registros. Se considerarmos as mortes, o aumento no período foi de 152%, saindo de 74 em 2010 para 184 em 2017.
O aumento de casos é tão expressivo que o número de mortos por picadas de escorpião ultrapassou o de picados por cobras - que até então lideravam o ranking de animais peçonhentos que mais matam no Brasil.
Apesar de o crescimento ser um problema nacional, os Estados de São Paulo e de Minas Gerais são os que exibem a situação mais alarmante: ambos registraram, respectivamente, 26 e 22 mortes por picadas de escorpião no ano passado.
Ainda em Americana, a dona de casa Daiana Pântano, também moradora do bairro Terramérica, já desembolsou cerca de R$ 5.000 reais para capinar terrenos vizinhos à sua casa que estão abandonados e para comprar produtos para vedar frestas e dedetizar sua casa.
Em Santa Bárbara d'Oeste, cidade vizinha, uma criança de 10 anos morreu no início deste mês após ser picada duas vezes por um escorpião.
A primeira picada foi no pé. Ao reagir pela dor, a criança também foi picada na mão. Ela chegou a ser socorrida, mas morreu antes da chegada do soro.
Na mesma semana, uma criança de 13 anos foi picada dentro de uma escola estadual na cidade e um detento foi picado dentro da cadeia pública. Ambos foram atendidos em hospital e passam bem.

Força tarefa para educar médicos e agentes de saúde

O Ministério da Saúde reconhece o problema e afirma que desde 2009 faz campanhas educativas com os profissionais de saúde dos Estados para orientá-los a respeito do pequeno aracnídeo.
Mas, diante do crescimento acelerado de picadas, juntou forças com o Instituto Butantan - fabricante do soro antiescorpiônico - para elaborar uma série de vídeos educativos e ferramentas educacionais voltadas para médicos e agentes de saúde, com foco na vigilância, prevenção e assistência das vítimas.
A médica Fan Hui Wen, gestora de projetos do Núcleo Estratégico de Venenos e Antivenenos do Butantan, é uma das responsáveis pelo material que está sendo elaborado e será distribuído aos Estados a partir de 2019.
De acordo com ela, o objetivo é orientar os profissionais de saúde a não negligenciarem possíveis casos de envenenamento e que requeiram o uso imediato do soro. Também serão oferecidas vídeo-aulas para técnicos e agentes responsáveis pela vigilância em saúde.
"Até agora, estamos enxugando gelo no combate aos acidentes com escorpião. Os casos estão aumentando e precisamos encontrar uma resposta para a população. Essa parceria vai permitir fornecermos educação e treinamento à distância para todo o País", afirma Wen.

Pesquisa para entender o comportamento da espécie

E não é apenas o Ministério da Saúde que está buscando formas de controlar a infestação de escorpiões. O Butantan também firmou uma parceria com a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) para iniciar uma pesquisa inédita que vai mapear a evolução dos casos e buscar entender o comportamento da espécie - no caso, o Tityus serrulatus, o escorpião amarelo, o mais comum na região Sudeste.
Segundo Wen, no começo dos anos 2000, os casos ficavam restritos à região de Ribeirão Preto. Hoje, já há casos em todo o Estado de São Paulo, e também na região Sul do País.
"Precisamos entender como o escorpião se comporta, como ele se desloca. Ele não anda quilômetros, ele é levado de um lugar para o outro. Hoje em dia já nem conseguimos dizer mais qual é o seu habitat natural, de tão bem que ele se adaptou às áreas urbanas", diz a médica.
O professor Francisco Chiaravalotti Neto, do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP, será um dos coordenadores do projeto. Ele explicou que o mapeamento das ocorrências será feito por meio das notificações de caso, sem coleta in loco dos animais.
Dessa forma, explica o professor, será possível pensar novas estratégias de saúde pública e redefinir critérios de distribuição do soro antiescorpiônico, por exemplo.
"Hoje, a logística de entrega do soro é baseada nos casos de picadas de cobra. Mas já sabemos que os escorpiões estão mais perigosos que as cobras. Essa pesquisa nos dará um norte e, talvez, a estratégia de entrega do soro mude", afirmou o professor.

Buscar foco de escorpião como se busca o de dengue

A médica Fan Wen, do Butantan, espera que os resultados da pesquisa tragam respostas à população e, mais do que isso, novas estratégias de combate às picadas.
Na opinião dela, é preciso que as vigilâncias sanitárias das cidades alterem sua rotina de fiscalização e incluam o escorpião nas buscas, assim como acontece com a dengue.
"O agente de saúde vai de casa em casa buscando focos de dengue para evitar casos, certo? Não dá mais para trabalharmos de forma isolada. Os municípios precisam incluir a busca de focos de escorpiões na rotina e fazer com que os agentes procurem o escorpião além do mosquito da dengue", avalia.

Aquecimento global e aparecimento de baratas

Mas, afinal, por que o número de acidentes com escorpiões tem crescido tanto na última década? Segundo o Ministério da Saúde, ainda não há uma resposta específica e nem se pode atribuir a um único fator. Mas é fato que o aumento da temperatura global tem influenciado na reprodução da espécie.
"Os escorpiões gostam de ambientes quentes e úmidos. Há inúmeros estudos sendo feitos analisando o aumento da temperatura com o aparecimento dos escorpiões", afirma Wen.
Outro fator que ajuda a proliferação dos escorpiões é o crescimento desordenado das cidades, com aumento da quantidade de lixo e entulhos. Nesses locais, há o aparecimento de baratas e onde há baratas, há escorpiões.
"Cada ser humano produz, em média, 1 kg de lixo por dia. Onde tem lixo, tem barata. E no calor, elas aparecem ainda mais. As baratas são o principal alimento dos escorpiões", explica o biólogo Randy Baldresca, especialista no aracnídeo e consultor em controle de pragas.
Além disso, a fêmea do escorpião não precisa do macho para se reproduzir - ela entra num processo chamado partenogênese e consegue se reproduzir sozinha, liberando de 20 a 30 filhotes a cada ciclo.
"A fêmea encontrou tudo o que precisa para seu ciclo biológico: calor, umidade, comida e abrigo", diz a médica Wen.

Dedetizar não adianta

Ainda não existe um tipo de veneno específico para o combate aos escorpiões, por isso, as pessoas dedetizam suas casas e os bichos continuam aparecendo. Segundo Baldresca, um dos equívocos é aplicar inseticida em casa achando que vai matar os animais. De acordo com ele, os escorpiões possuem um exoesqueleto, um tipo de carapaça, que os protegem.
"Quando ele sente o veneno, ele fica irritado com o cheiro e pode até ficar grogue, mas não vai morrer. No máximo, vai se deslocar procurando outro abrigo. Então, ao invés de matar, que era o efeito desejado, você só vai espalhar mais o animal", orienta o biólogo.

Como cada um pode se proteger?

Diante de um cenário tão desfavorável, os especialistas recomendam ficar atentos à limpeza de casa e dos terrenos vizinhos. "É preciso que haja uma mudança de comportamento das pessoas. Não adianta nada eu manter a minha casa limpa se a casa do lado está cheia de mato e entulho", diz Wen.
Ao encontrar um animal em casa, as orientações são: não tente pegar o escorpião, isso pode causar um acidente. Mate-o e se certifique de que ele realmente morreu; não passe inseticida, pois eles não vão eliminar os escorpiões, vão fazer apenas eles se deslocarem temporariamente; não acumule lixo; não deixe louça na pia de um dia para o outro para não atrair baratas; coloque telas nas janelas e nos ralos; vede rachaduras e proteja os vãos sob as portas. Se morar em casa, criar galinhas d'Angola é uma ótima saída, pois elas comem escorpiões.
Se você for picado, procure imediatamente o hospital mais próximo para avaliar a necessidade de recebimento do soro antiescorpiônico. O veneno do escorpião é neurotóxico e ataca o sistema nervoso central, podendo ser letal. Segundo a médica Wen, a maioria das picadas é sem gravidade, mas, nos casos graves, o socorro imediato é fundamental.
"Se nada for feito para combater a proliferação dos escorpiões, a tendência é que os acidentes aumentem em 70% nos próximos dois anos", alerta o biólogo Baldresca.

A fabricação do soro

O Instituto Butantan, vinculado ao governo de São Paulo, é um dos responsáveis pela fabricação do soro antiescorpiônico para o Ministério da Saúde. O Instituto recebe os animais e os cria num biotério.
A Prefeitura de Americana, por exemplo, já mandou para o Butantan até outubro deste ano mais de 13 mil escorpiões recolhidos nos dois cemitérios da cidade.
Ao chegar, os animais passam por uma triagem para avaliar como chegaram, se não estão letárgicos ou machucados. Em seguida, eles passam por uma quarentena, para avaliar sua resistência. São mantidos em caixas que simulam o seu ambiente preferido, com água, baratas e temperatura estável.
A cada mês, os escorpiões adultos são levados para extração manual do veneno. O veneno extraído é levado para ser diluído e aplicado em cavalos, de forma que o animal não sinta o envenenamento.
Segundo a médica Wen, é o cavalo que vai produzir anticorpos de defesa contra aquele veneno aplicado. Em seguida, os anticorpos que estão no sangue (no plasma) do cavalo são separados e as hemácias (células vermelhas do sangue) são devolvidas ao animal.
"Os cavalos são animais de grande porte que respondem bem à imunização. São animais dóceis, de fácil manejo", explica Wen.
O plasma é a matéria-prima para a produção do soro - o anticorpo está no plasma, que passa por um processo de purificação antes de virar remédio.
"Um mesmo cavalo trabalha anos e anos. Cada animal é submetido a quatro ciclos de imunização por ano. O processo todo tem várias etapas e pode demorar de seis a oito meses", disse Wen.
Para se ter uma ideia da quantidade de escorpiões usada na fabricação de soro, Wen disse que enviou 44 mil doses de soro antiescorpiônico no período de um ano ao Ministério da Saúde - e para isso usou cerca de 12 mil escorpiões.
A indicação do uso do soro depende da reação do paciente após a picada. Em geral, o principal sintoma é uma dor aguda. Mas se houver sudorese, agitação, náuseas, vômito e falta de ar, há a indicação imediata do uso do soro.
"As toxinas causam alterações cardíacas e é preciso agir com rapidez", afirma Wen.
As prefeituras de Americana e de Santa Bárbara d'Oeste informaram que o aumento de casos acontece por causa do crescimento acelerado das cidades. Dizem que o controle dos animais é feito por meio de coleta noturna em cemitérios e que a maior incidência de acidentes ocorre nos meses mais quentes do ano, mas que o risco para acidentes graves, principalmente em crianças, permanece o ano todo.
As autoridades ainda dizem que a população deve manter limpos o quintal e o jardim; evitar acumular entulho e lixo para não atrair baratas e outros insetos (alimentos preferidos dos escorpiões); examinar roupas e calçados antes de vestir; verificar toalhas de banho e as roupas de cama; utilizar luvas de couro quando for trabalhar com materiais de construção e evitar andar sem calçados.

domingo, 18 de novembro de 2018

O que é o protesto dos 'coletes amarelos' na França, que reuniu 280 mil pessoas contra alta do diesel

Mais de 280 mil pessoas foram às ruas na França para protestar contra o aumento do preço dos combustíveis neste sábado. Uma pessoa morreu atropelada e mais de 200 ficaram feridas. O episódio está sendo chamado de protesto dos "coletes amarelos" (gilets jaunes, em francês), já que manifestantes usaram coletes refletivos amarelos, peça obrigatória nos carros franceses.
O preço do diesel - o combustível mais usado pelos carros franceses - aumentou cerca de 23% nos últimos 12 meses. Assim, chegou a custar uma média de €1.51 por litro (R$ 6,46). É o valor mais alto desde o começo de 2000, segundo a agência de notícias AFP. Nas bombas, o preço varia de £1.32 a $1.71 (R$ 5,64 a R$ 7,31) por litro.
Para comparação, no Brasil, o preço médio do litro do diesel está em R$ 3,68, segundo dados do início de novembro compilados pela Agência Nacional do Petróleo (ANP). Por aqui, o aumento do preço do diesel também gerou uma forte onda de manifestações, promovida por caminhoneiros em maio deste ano - no Brasil, o diesel é mais usado para transporte de carga.
Segundo o ministro do Interior da França, mais de 280 mil pessoas participaram do protesto. Em vários pontos do país, os manifestantes bloquearam vias de passagem para automóveis. Em Paris, se aproximaram do Palácio do Eliseu, a residência oficial do presidente francês, e foram contidos pela polícia com gás lacrimogêneo.
O caso de morte ocorreu quando um motorista de caminhão foi cercado por manifestantes, entrou em pânico, acelerou e acabou atropelando e matando uma mulher de 63 anos. Ele estava levando a filha para o hospital e foi conduzido à polícia em estado de choque. Os episódios de ferimentos, em sua maioria, também ocorreram quando motoristas tentaram forçar a passagem pelo protesto.

Por que os motoristas franceses estão protestando?

Os manifestantes acusam o presidente francês Emmanuel Macron de ter abandonado os mais pobres. Até agora, Macron não se pronunciou sobre os protestos - em alguns deles, houve quem pedisse a renúncia do presidente.
Em um pronunciamento na última quarta-feira, o líder francês assumiu que não "conseguiu reconciliar o povo francês com seus governantes". Ao mesmo tempo, acusou seus opositores de usarem os protestos para barrar seu programa de reforma.
Macron falou ainda que a alta internacional no preço dos combustíveis é responsável por três quartos do aumento visto na França. De fato, o preço internacional dos combustíveis subiu - embora tenha caído em seguida.
Mas há um outro fator que levou ao aumento no preço do diesel francês. Este ano, o governo Macron aumentou os impostos sobre combustíveis fósseis, como parte de uma campanha para promover alternativas mais menos poluentes. A este respeito, Macron declarou que os impostos são necessários para financiar investimentos renováveis no setor de energia.
Além disso, o governo anunciou um novo aumento no preço dos combustíveis a partir de 1º de janeiro de 2018 - alta de 6,5% no diesel e de 2,9% na gasolina. A medida foi vista pelos manifestantes franceses como a gota d'água.

Qual o tamanho do movimento?

O protesto dos "coletes amarelos" recebeu enorme apoio. Segundo uma pesquisa de opinião realizada pelo instituto Elabe, 75% dos entrevistados disseram que apoiam os "coletes amarelos". Outros 70% querem que o governo francês reverta os aumentos nos preços dos combustíveis.
"As expectativas e o descontentamento em relação ao poder de compra são gerais. Não é algo que preocupa apenas a França rural ou as classes mais baixas", afirma Vincent Thibault, do instituto Elabe.
A repórter da BBC em Paris, Lucy Williamson, relata que o movimento cresceu pelas redes sociais e se transformou em uma crítica ampla às políticas econômicas de Macron.

Os políticos de oposição estão envolvidos?

Certamente, os políticos de oposição a Macron tentaram pegar uma carona no movimento. Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita francês, que concorreu contra Macron e foi derrotada no segundo turno, tem encorajado os protestos pelo Twitter.
"O governo não deveria ter medo do povo francês que vai manifestar sua revolta e faz isso de uma forma pacífica", falou Le Pen.
Laurent Wauquiez, líder de centro-direita dos republicanos franceses, instou o governo de Macron a voltar atrás no aumento de imposto sobre combustíveis fósseis, como uma forma de reduzir os preços.
Christophe Castaner, ministro do Interior da França, falou que as ações de sábado são "um protesto político, com os republicanos por trás".
Já Olivier Faure, líder do Partido Socialista, de esquerda, falou que o movimento "nasceu fora dos partidos políticos". "As pessoas querem que os políticos as escutem e respondam a elas. A sua demanda é por ter poder de compra e uma justiça financeira", falou.

Há algum espaço para negociação entre governo e manifestantes?

Na quarta-feira, o governo francês anunciou uma medida para ajudar as famílias mais pobres a pagarem a conta de energia e custos relacionados ao transporte. O primeiro-ministro Edouard Philippe afirmou que 5,6 milhões de famílias vão receber os subsídios. Atualmente, são 3,6 milhões.
Outra medida a ser implementada são créditos fiscais para aqueles que dependem do carro para trabalhar.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Eleições 2018: Denúncias de agressões se espalham no Brasil da polarização política

Faltando pouco mais de duas semanas para a votação do segundo turno, o acirramento dos ânimos e as discussões sobre as eleições à Presidência do Brasil extrapolaram as redes sociais. Nos últimos dias, tem crescido o número de relatos sobre episódios de violência e agressões verbais ou físicas ocorridas em diversos Estados.
Os casos envolvem ataques físicos e xingamentos, na maioria contra mulheres e homossexuais.
Em meio a muitas denúncias, a BBC News Brasil ouviu envolvidos e investigadores em casos ocorridos nos últimos dez dias - em todos, houve formalização das queixas em boletim de ocorrência.
Os episódios ainda estão em fase de investigação. Envolvem socos, golpes, xingamentos, brigas de rua e uma morte a facadas. Em todos, há motivação política ou eleitoral, segundo os relatos.
Surgiram também, nos últimos dias, iniciativas de mapeamento e registro dessas denúncias, como as do site Mapa da Violência e da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
A reportagem também questionou o Ministério da Segurança Pública sobre providências, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se reuniu ontem com integrantes do Ministério Público Eleitoral para discutir que atitudes tomar em relação aos ataques. Uma manifestação oficial ainda é aguardada.

Servidora pública agredida em Pernambuco

A servidora pública Paula Pinheiro Ramos Pessoa Guerra, de 37 anos, disse ter sido agredida no último domingo em um bar por estar usando adesivos do Ciro Gomes e botons do "Ele Não", em menção ao candidato Jair Bolsonaro. Em fotos publicadas em redes sociais, ela aparece com hematomas no olho e nos braços, além de um corte com pontos no antebraço.
Em depoimento à polícia, Guerra disse ter sido espancada por uma mulher no bar localizado no bairro de Cajueiro, na zona norte do Recife, por volta das 22h do último domingo – primeiro turno das eleições. A agressora, ainda não identificada, também teria quebrado o celular da vítima.
Segundo o depoimento da servidora, a agressão foi motivada por uma discussão entre ela e seu amigo com a agressora e dois homens que a acompanhavam.
Guerra foi encaminhada ao IML para fazer exames de corpo de delito. A polícia investiga o caso para identificar e prender os responsáveis.

Chutes, socos e garrafadas no Paraná

Na terça-feira, em Curitiba, testemunhas ouvidas pela Polícia Civil relataram que um servidor público foi agredido a socos, pontapés e garrafadas em frente à Universidade Federal do Paraná por ao menos cinco homens, identificados como membros da torcida organizada Império Alviverde, do clube de futebol Coritiba.
De acordo com os depoimentos, a vítima usava uma camiseta vermelha e um boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, durante o ataque, um ou mais agressores teriam gritado "aqui é Bolsonaro". A motivação política é uma entre três hipóteses investigadas, segundo o delegado Luiz Alberto Cartaxo Moura; as demais hipóteses seriam briga comum ou briga entre torcidas organizadas.
"(Começou quando) houve um princípio de confusão na rua e ele (vítima) foi intervir, dizendo 'aqui não é lugar de briga'. Passou a ser agredido com chutes, socos e garrafadas e sofreu lesões corporais, principalmente uma contusão no olho esquerdo", afirmou o delegado em entrevista coletiva realizada ontem.
"Identificamos cinco ou seis possíveis autores pelas redes sociais. Vamos interrogá-los, ouvir as testemunhas e tentar identificar a motivação."

Tentativa de atropelamento na Bahia

Em Salvador, dias antes do primeiro turno das eleições, um professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) foi preso pela polícia. Ele é suspeito de tentar atropelar um homem que vendia camisetas de temática política - segundo a imprensa local, as camisetas seriam pró-Bolsonaro.
"A vítima não foi atingida pelo veículo, mas sofreu ferimentos leves e teve os produtos danificados. O professor foi indiciado por crime de lesão corporal", informou a polícia baiana em nota à BBC News Brasil.
Em nota, a reitoria da UFRB afirma que o professor nega o "atropelamento ou qualquer tentativa de atitude dolosa" e que, sentindo-se ameaçado por se recusar a comprar material de campanha, retirou-se "bruscamente do local, causando danos materiais ao arrastar um varal contendo camisas que estavam sendo vendidas em via pública".
Até agora, o caso mais dramático foi registrado também em Salvador: o assassinato do mestre de capoeira baiano Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê, de 63 anos. Ele foi morto a facadas após uma discussão política algumas horas depois da eleição de domingo.

Agressão com barras de ferro no Rio de Janeiro

Na manhã de sábado, a cantora transexual Julyanna Barbosa, de 41 anos, relatou que voltava andando para casa em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, quando foi provocada por três homens.
"Eles começaram a me xingar e a dizer coisas como: 'Bolsonaro tem que ganhar mesmo, para tirar esses lixos da rua' e 'esses veados são todos doentes, têm Aids'", disse à BBC News Brasil.
"Um deles puxou uma barra de ferro de uma barraca de camelô e acertou a lateral da minha cabeça."
Julyanna conta ter caído no chão e sido agredida com chutes por mais três homens, mas conseguido fugir e chegar em casa.
"Nem sei se a agressão teve a ver com política. Eles falaram o nome de Bolsonaro, mas não posso dizer se eles são eleitores ou não."
A cantora levou dez pontos na cabeça e tem hematomas espalhados por todo o corpo. Ela registrou o crime na 56ª DP na cidade vizinha de Mesquita e aguardava para fazer o exame de corpo de delito quando falou com a reportagem.
"Nos pareceu ser uma agressão mais relacionada com homofobia do que com política, mas vai ser investigado", disse à BBC News Brasil o delegado Matheus Romanelli, que atendeu Julyanna.

Mapear as denúncias e registrar na polícia

Em meio às ocorrências, surgem algumas iniciativas de mapear as denúncias de violência pelo Brasil. O caso de Julyanna, por exemplo, entrou para as estatísticas da ONG Aliança Nacional LGBTI, que vem compilando relatos de agressões a homossexuais e transexuais relacionados com as eleições. Desde o primeiro turno, eles registraram 15 casos, incluindo ataques verbais e físicos.
"Eu até acredito que Bolsonaro não seja tudo isso, mas ele abriu uma porta para fascistas, nazistas e extremistas", afirma Toni Reis, presidente-executivo da ONG.
Em iniciativas semelhantes, os sites Mapa da Violência e Vítimas da Intolerância, criados na última semana, também reúnem dezenas de relatos de agressões físicas e verbais.
De acordo com um levantamento feito pela Agência Pública e pela Open Knowledge Foundation, cerca de 70 ataques relacionados às eleições aconteceram no país nos últimos 10 dias.
Nesta semana, o aplicativo de encontros Grindr, voltado a homossexuais, passou a exibir a seus usuários brasileiros, pela primeira vez, um aviso sobre segurança, que normalmente é feito em países onde a homossexualidade é ilegal.
"Relatos de violência contra membros da comunidade LGBTQ+ foram trazidos ao nosso conhecimento por diversas organizações locais", disse, em nota, Jack Harrison-Quintana, diretor-executivo do programa Grindr for Equality.

O papel dos candidatos

Para o professor Marcos Cesar Alvarez, do Núcleo de Estudos de Violência da USP, ainda é cedo para saber se vivemos uma tendência de crescimento na violência de cunho político, embora considere preocupante o fato de "ser uma eleição de muitos conflitos e com ao menos um candidato defendendo claramente a violência e (se posicionando) contra os direitos humanos, o que pode estimular atitudes agressivas por parte de seus correligionários".
Alvarez, que destaca que o próprio Bolsonaro foi vítima de um atentado a facada no início de setembro e que a violência contra minorias acaba atingindo negativamente não só essas comunidades, mas toda a sociedade.
"Piora a cultura política e vai contra as próprias instituições (democráticas)."
Adélio Bispo, autor do ataque contra o candidato do PSL, está preso preventivamente pela Polícia Federal em Campo Grande. O processo contra ele, que confessou o crime em depoimento à PF, foi suspenso temporariamente nesta semana para que seja realizado um exame de sanidade. O delegado responsável pelo caso concluiu que ele agiu sozinho.
O pesquisador defende que os candidatos ainda em disputa "claramente se manifestem negando a violência, porque até mesmo a omissão pode estimular correligionários a agir violentamente".
Em entrevista concedida ao portal UOL esta semana, o presidenciável Jair Bolsonaro disse lamentar os ataques registrados recentemente, mas afirmou que "não tem controle sobre milhões e milhões de pessoas" que o apoiam.
Na noite de quarta-feira, em seu perfil de Twitter, o capitão reformado falou novamente sobre o tema: "Dispensamos voto e qualquer aproximação de quem pratica violência contra eleitores que não votam em mim. A este tipo de gente peço que vote nulo ou na oposição por coerência, e que as autoridades tomem as medidas cabíveis, assim como contra caluniadores que tentam nos prejudicar".
Em seguida, no entanto, o candidato disse na rede social que "há também um movimento orquestrado forjando agressões para prejudicar nossa campanha nos ligando nazismo, que, assim como o comunismo, repudiamos completamente".

Agressões verbais e intimidação contra mulheres

Nos últimos dias, a reportagem ouviu relatos de pelo menos cinco mulheres que foram empurradas ou xingadas nas ruas de Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia.
Elas atribuem as agressões ao fato de estarem usando camisetas vermelhas, adesivos ou broches da campanha "Ele Não" - em referência ao movimento de mulheres contra Jair Bolsonaro - e dizem ter sido chamadas com frequência de "petista", "vagabunda" e outros nomes impublicáveis.
A professora universitária Marília Flores Seixas, de 56 anos, registrou na polícia uma agressão que sofreu em seu próprio prédio, em Vitória da Conquista (BA), no dia da votação.
"Eu estava entrando em casa com uma amiga - uma senhora de 60 e poucos anos - e o neto dela, de três anos de idade, quando um homem que estava saindo da casa do meu vizinho começou a gritar: 'vou embora porque chegaram as vagabundas, as prostitutas do PT'", disse a professora, que relata que foi empurrada e reagiu pedindo respeito.
"Meu marido viu o ocorrido e desceu, conseguimos entrar em casa correndo. Fiquei muito nervosa."
Segundo Marília, a sensação na cidade é de "violência banalizada" nas últimas semanas.
"Acho que os violentos 'saíram do armário'. A agressividade pela rua está perceptível pela cidade. Tenho medo de colocar um adesivo no meu carro, para você ter ideia."

Agressões contra jornalistas

O período eleitoral também foi marcado por casos de agressões a jornalistas. Foram 137 em 2018, segundo estimativas da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) - sendo 75 ataques digitais e 62 físicos, e a maioria deles ligados à cobertura eleitoral.
A Abraji denuncia também "a exposição indevida de comunicadores, quando os agressores compartilham fotos e/ou perfis apontando que o profissional seguiria uma ideologia e, assim, incentivando ofensas em massa" em redes como Facebook e Twitter.
A entidade cita o caso de grupos e influenciadores como Danilo Gentili - que, pelo Twitter, conclamou seus seguidores a uma ofensiva contra jornalistas após a publicação de reportagem com a ex-mulher de Bolsonaro - e o Movimento Brasil Livre (MBL), que produziu um "dossiê" com o perfil de jornalistas que classificava como sendo de "esquerda" e "extrema esquerda". A BBC News Brasil procurou a assessoria de Gentili e aguarda retorno.
"Declarações e posicionamentos de qualquer figura pública influenciam uma audiência bastante ampla, que muitas vezes ecoa a mensagem transmitida ou repete a atitude. Em alguns dos casos digitais, por exemplo, fatos falsos sobre jornalistas passaram a ter o alcance amplificado depois de terem sido compartilhados por essas figuras."

Fui agredido. O que fazer?

Em São Paulo, a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) é responsável por investigar pessoas e grupos que praticam crimes motivados por intolerância religiosa, racial, política ou qualquer outra. Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo informou que "não tem nenhuma investigação de cunho político em andamento".
Denúncias ou pedidos de ajuda em caso de violência também podem ser feitos em um batalhão da Polícia Militar, na delegacia mais próxima, ou pelo telefone 190, destinado ao atendimento da população nas situações de urgências policiais. As denúncias também podem pelo Disque Denúncia - número 181.
*Colaborou Mariana Schreiber, da BBC News Brasil em Brasília.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Haddad conseguirá herdar votos de Lula? 5 desafios da campanha petista

A menos de um mês do primeiro turno da eleição (7 de outubro), o PT deve oficializar nesta terça-feira o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad como candidato a presidente no lugar do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O prazo foi estabelecido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na decisão que considerou Lula - condenado criminalmente em segunda instância - inelegível por aplicação da Lei da Ficha Limpa.
A troca só não ocorrerá nesta terça se Lula conseguir uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendendo sua inelegibilidade ou alongando o prazo para substituição até dia 17 de setembro – limite estabelecido pela Justiça Eleitoral para fechar os nomes que entram na urna eletrônica. Dois novos pedidos da defesa de Lula aguardam decisões dos ministros Celso de Mello e Edson Fachin.
A BBC News Brasil analisa abaixo alguns dos obstáculos que Haddad pode ter de enfrentar se for, de fato, confirmado como substituto de Lula:

Há tempo para Haddad herdar votos de Lula?

Apesar da provável entrada retardatária na disputa, cientistas políticos consideram que Haddad será um candidato competitivo, porque tende a herdar parte do apoio de quase 40% do eleitorado à candidatura de Lula, segundo pesquisas de opinião que anteriores que ainda incluíam o petista entre os candidatos. Uma importante questão, no entanto, é se haverá tempo suficiente para essa transferência, já que o PT optou por adiar ao máximo a troca.
Analistas lembram que Lula foi bem-sucedido em transferir seus votos em 2010 para eleger a então ministra da Casa Civil Dilma Rousseff presidente. Sua candidatura, porém, foi preparada com dois anos de antecedência, período em que Lula, então um presidente com alta popularidade, viajava com a pupila a tiracolo pelo país, chamando-a de "mãe do PAC", o megaprograma de infraestrutura da gestão petista.
"A transferência de votos entre uma liderança e seu apadrinhado é algo comum, um fenômeno bem documentado (pela ciência política). A questão é se dá tempo nas circunstâncias atuais e com as limitações de propaganda: Lula não pode gravar (vídeos), abraçar o candidato, rodar o Brasil com ele", nota Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP).
Além do tempo curto, com menos de um mês para as eleições, há também uma grande variedade no perfil da migração de votos de Lula para os demais candidatos. Segundo a última pesquisa do Ibope, a candidata Marina Silva seria a mais beneficiada. O retrato, no entanto, foi anterior à apresentação de Haddad como 'herdeiro oficial' dos votos de Lula pelo PT.
Campanha por 'voto útil' em Ciro pode prejudicar Haddad?
Pesquisa do instituto Datafolha realizada nesta segunda-feira mostra que Haddad foi o candidato que mais melhorou sua intenção de voto em relação a pesquisa de 22 de agosto, subindo de 4% a 9%.
Considerando a margem de erro da pesquisa, de dois pontos percentuais, ele está empatado em segundo lugar com outros três candidatos: Ciro Gomes (PDT), que passou de 10% para 13%; Marina Silva (Rede), que caiu de 16% para 11%; e Geraldo Alckmin (PSDB), que oscilou de 9% para 10%.
Segundo o levantamento, Jair Bolsonaro (PSL) mantém a liderança, com 24% das intenções de voto, ante 22% na sondagem anterior. O candidato foi vítima de uma facada na última quinta-feira, durante um ato de campanha em Minas Gerais, e está internado em São Paulo sem previsão de alta.
As simulações de segundo turno indicam que, no atual cenário, Bolsonaro perderia para Ciro, Marina e Alckmin e empataria com Haddad. Ciro também venceria Alckmin e Marina, enquanto Haddad perderia para os dois.
Se esse cenário se mantiver nas sondagens mais próximas à eleição, colocando o candidato do PDT como mais competitivo no segundo turno contra Bolsonaro, Haddad corre o risco de perder eleitores de esquerda para um possível "voto útil" em Ciro.
Para a cientista política Maria Hermínia Tavares, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professora aposentada da USP, a recente alta do ex-governador do Ceará nas pesquisas indica que parte do eleitor de esquerda já começou a migrar antes da definição do novo candidato petista, mostrando um "problema de timing" na substituição. A última pesquisa Ibope também apontou melhora no desempenho de Ciro.
Por outro lado, ela acredita que Haddad ainda pode crescer mais, devido ao percentual significativo de eleitores simpatizantes do PT. Levantamento do Datafolha realizado em agosto sobre a preferência por partidos mostrou que 24% apoiam a legenda de Lula, valor muito superior ao das outras siglas. Empatados em segundo lugar, PSDB e MDB foram citados por apenas 4% dos entrevistados.
"Esse índice mostra que não só Haddad, mas qualquer nome indicado pelo PT, tem potencial de crescer e é competitivo", ressalta Tavares.
A pesquisadora lembra que a disputa fragmentada reduz o percentual mínimo de votos necessários para chegar ao segundo turno, de modo que Lula não precisa transferir 100% do seu apoio para levar um substituto à etapa final. Ela ressalta também que o PT tem estrutura nacional maior e mais tempo de propaganda eleitoral que PDT, de Ciro, e Rede, partido de Marina Silva, o que lhe dá uma vantagem na disputa pelo voto de esquerda "órfão" de Lula.

Perfil acadêmico e distante do povão?

O provável substituto de Lula tem perfil bem diferente do ex-presidente petista. Enquanto Lula vem de uma origem pobre e se lançou na política a partir do movimento sindical, Haddad tem trajetória acadêmica e com passagem pelo sistema financeiro, quando foi analista de investimentos do Unibanco. É formado em Direito, com mestrado em Economia e doutorado em Filosofia. Ascendeu no PT ocupando cargos de gestão a partir de 2001. O mais importante deles, de ministro da Educação, assumiu em julho de 2005, quando Tarso Genro deixou a pasta para assumir o comando do PT no lugar de José Genoino, atingido pelo escândalo do Mensalão.
Haddad só disputou duas eleições, ambas para prefeito de São Paulo - venceu a primeira em 2012, ungido por Lula, e perdeu a segunda no primeiro turno para João Dória (PSDB), em 2016, quando o PT vivia o auge de seu desgaste com as denúncias de corrupção na Petrobras e o impeachment de Dilma Rousseff.
Alguns também atribuem a derrota a uma falha da gestão Haddad em atender a periferia de São Paulo, o que ele nega. Por causa do perfil acadêmico, mais distante do "povão", parte do PT via no ex-governador da Bahia Jaques Wagner um candidato a presidente com mais apelo popular.
Para Hermínia Tavares, não está claro se essa diferença de perfil em relação a Lula prejudicará Haddad.
"Tirando a Marina, nenhum candidato (entre os mais competitivos) tem cara de povo. São todos homens brancos. Então, Haddad está disputando votos com candidatos de perfil semelhante", analisa.
Como Haddad se defenderá de herança econômica de Dilma?
"Brasil Feliz de Novo" é o mote da campanha do PT neste ano. Mas, enquanto tenta convencer o eleitor de que sua eleição é o passaporte para a volta dos anos de prosperidade do governo Lula, Haddad terá que driblar os ataques de adversários sobre a forte recessão econômica deixada pela administração de Dilma. Haddad reconhece parte dos erros cometidos por Dilma, mas atribui o agravamento da situação econômica à crise institucional gerada pelo impeachment.
Nesse ponto, o impeachment da petista acaba facilitando a vida de Haddad, acreditam os cientistas políticos ouvidos pela reportagem, na medida em que hoje parte dos brasileiros associa a crise econômica apenas ao presidente Michel Temer, que governa o país há pouco mais de dois anos.
"Desde que o PT deixou o governo, aumentou o desemprego, a crise se agravou. E na memória do eleitor a sua última experiência de bonança foi sob o governo do PT, sobretudo o governo Lula", nota a cientista política Lara Mesquita, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Que denúncias ainda pesam contra Haddad?
Por outro lado, além do desgaste que sua campanha também deve sofrer por causa do escândalo de corrupção na Petrobras durante os governos petistas, outro fator que cria embaraço ao ex-prefeito é a denúncia apresentada nos últimos dias pelo Ministério Público de São Paulo, que o acusa de corrupção passiva, associação criminosa, e lavagem de dinheiro.
Os promotores dizem que Haddad teria recebido indevidamente da empreiteira UTC o valor de R$ 2,6 milhões em 2013 para pagar dívidas de sua campanha de 2012 com gráficas.
Questionado, Haddad tem afirmado que a acusação feita pelo ex-presidente da UTC Ricardo Pessoa em delação premiada é mentirosa e foi motivada por vingança porque ele, logo que assumiu como prefeito, suspendeu uma obra da empreiteira.
"Com 44 dias de meu governo, eu cancelei uma obra bilionária da UTC e da Odebrecht, do túnel Roberto Marinho. Cancelei porque meu secretário me trouxe a informação de que essa obra estava superfaturada", disse o ex-prefeito, em entrevista coletiva.
Além da denúncia apresentada pelo MP há uma semana, Haddad virou réu em um processo que apura fraude na construção de um dos trechos da ciclovia de São Paulo, uma das marcas de sua gestão. Segundo a denúncia, a obra foi feita sem licitação, sem projeto executivo e com preço super faturado, causando prejuízo de R$ 5,2 milhões aos cofres públicos. A assessoria do petista rechaça as acusações e afirma que o próprio juiz, ao aceitar a denúncia, citou "as medidas tomadas pelo prefeito no âmbito da Controladoria Geral do Município, por ele criada, como argumento para afastar qualquer culpa ou dolo".
Na avaliação dos cientistas políticos entrevistados, a alta intenção de votos de Lula, que está condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mostra que as denúncias não terão um peso determinante na escolha de parcela dos eleitores. Eles ressaltam que hoje há muitos políticos acusados que seguem sem punição, o que alimenta em parte do eleitorado a percepção de uma perseguição a Lula.
"Essas denúncias e a recessão econômica pesaram muito sobre o PT em 2016 (nas disputas municipais), mas agora não faltam políticos acusados de corrupção em diferentes partidos, a crise continua braba, então o cenário mudou nessa eleição", acredita Hermínia Tavares.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A embaraçosa razão pela qual os homens têm melhor senso de direção que as mulheres, segundo estudo

Um estudo da University College de Londres apontou que os homens têm melhor senso de direção que as mulheres, mas que não há, necessariamente, razão para se orgulharem do resultado.
Isso porque, segundo os pesquisadores, a diferença tem mais a ver com discriminação e oportunidades desiguais do que com qualquer habilidade inata.
Os resultados vêm de uma pesquisa sobre um teste para demência - uma categoria que engloba várias doenças e transtornos que afetam a memória e o processamento do cérebro, incluindo Alzheimer - e deram uma visão sem precedentes sobre o senso de direção das pessoas ao redor do mundo.
Perder a orientação e se perder é um dos principais sintomas do mal de Alzheimer.
O experimento foi feito com o auxílio de um jogo de computador, o Sea Hero Quest, que teve mais de quatro milhões de jogadores.

Teste de demência

O jogo foi desenvolvido pelos pesquisadores que investigam a demência para, a partir dele, chegar a testes para diagnosticar precocemente doenças associadas.
Os jogadores acompanham a jornada de um marinheiro em busca de memórias perdidas de seu pai, e enfrentam criaturas marinhas fantásticas.
Tocando as telas de seu smartphone, os jogadores viajam de barco por ilhas desertas e oceanos gelados.
As rotas traçadas pelo jogadores geram "mapas de calor" globais, que permitem que os pesquisadores possam observar como as pessoas exploram ambientes 3D.
O objetivo final é desenvolver novos testes de diagnóstico que possam detectar quando as habilidades de navegação espacial de alguém estão falhando.

Homens x mulheres

O jogo registra, anonimamente, o senso de direção e a capacidade de navegação do jogador. Os cientistas analisaram dados coletados de 2,4 milhões de pessoas - que passaram algum tempo jogando o Sea Hero Quest no fim do dia ou a caminho do trabalho. Em um estudo clínico seriam necessários milhares de anos para conseguir uma quantidade de dados dessa dimensão.
E ao analisar o comportamento desses milhões de jogadores, um dos resultados que mais chamou a atenção dos pesquisadores é que os homens se mostraram muito melhores em navegar do que as mulheres. Mas por quê?
Hugo Spiers, um dos autores do estudo, acredita ter encontrado a resposta examinando dados do Índice de Diferença de Gênero do Fórum Econômico Mundial - que estuda a igualdade em áreas como educação, saúde e emprego, e política.
"Nos países onde existe uma grande igualdade entre homens e mulheres, a diferença de desempenho entre eles no nosso teste de navegação espacial é muito pequena, mas quando há alta desigualdade de gênero, essa diferença (identificada no jogo) é muito maior", acrescenta o pesquisador, observando que "isso sugere que a cultura em que as pessoas vivem tem influência sobre suas habilidades cognitivas".
O Sea Hero Quest produziu uma série de outras descobertas.
O jogo permitiu identificar que Dinamarca, Finlândia e Noruega têm as melhores habilidades de navegação do mundo, mas ainda não está claro por quê.
Outra constatação a partir do jogo é de que o senso de direção entra em constante declínio depois da adolescência. E, ainda, que pessoas em países mais ricos também tendem a ser melhores navegadoras.
A popularidade do jogo o transformou no maior experimento de pesquisa sobre demência no mundo.
"Os dados da Sea Hero Quest estão fornecendo uma referência incomparável sobre como a navegação humana varia e muda em função da idade, localização e outros fatores", diz Tim Parry, diretor da Alzheimer's Research UK, principal instituição britânica de pesquisa sobre demência.
"Este é apenas o começo do que podemos aprender sobre navegação a partir desta análise poderosa."
O projeto foi financiado pela Deutsche Telekom, a maior companhia de telecomunicações da Alemanha e da União Europeia, e o jogo foi desenhado pela Glitchers, empresa do ramo de videogames com sede em Londres.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Cientistas liderados por brasileiro criam técnica para estudar elementos de estrelas anãs vermelhas

Um grupo internacional de astrônomos, liderado pelo brasileiro Diogo Souto, do Observatório Nacional, desenvolveu uma técnica que torna possível determinar os parâmetros estelares (temperatura e gravidade) com grande precisão em estrelas anãs vermelhas – astros pequenos e relativamente frios, que constituem a maioria da nossa galáxia (70%) e possivelmente do universo.
Além disso, ela serve para caracterizar exoplanetas que por ventura as orbitem, descobrindo se são rochosos ou gasosos e se estão na zona habitável - órbita em que pode haver água líquida – do sistema, por exemplo.
Souto explica que a técnica foi desenvolvida durante o estudo do sistema planetário Ross 128, localizado a 11 anos-luz da Terra. "Ele é composto por uma estrela do tipo anã vermelha e por pelo menos um exoplaneta, o Ross 128b", conta. "Ela é fria, com aproximadamente metade da temperatura do nosso Sol e um quinto do seu tamanho."
O exoplaneta Ross 128b, por sua vez, foi descoberto no final de 2017 e verificou-se que ele possui uma massa mínima 1,3 vezes a da Terra e é rochoso. "Também descobrimos que ele está zona habitável, tem uma temperatura média de 21ºC e que recebe uma radiação da sua estrela mãe muito similar a que a Terra ganha do Sol", diz Souto.
O estudo foi desenvolvido em conjunto com o projeto Sloan Digital Sky Survey (SDSS), um ambicioso levantamento de dados para estudar e compreender a formação e evolução da nossa galáxia, a Via Láctea.
A equipe, que publicou sua pesquisa no Astrophysical Journal Letters, usou dados colhidos pelo telescópio do Apache Point Observatory, no Novo México, acoplado a espectógrafos.
De acordo com Souto, a ideia principal do trabalho foi realizar o estudo químico detalhado da Ross 128 e, partindo do princípio que estrela e exoplanetas foram formados a partir dos mesmos compostos, pode-se inferir as propriedades do Ross 128b, que não pode ser observado diretamente com tecnologias atuais. A partir do espectro da anã vermelha, foi possível estudar a abundância de oito elementos químicos: carbono, oxigênio, magnésio, alumínio, potássio, cálcio, titânio e ferro.

Espectroscopia

O pesquisador explica que o estudo do padrão químico de estrelas com planetas possibilita a caracterização geofísica deles. "Sabemos que o núcleo e o manto dos exoplanetas rochosos (como a Terra) são formados basicamente por ferro, magnésio e silício", diz. "Assim, nós utilizamos a química do sistema para estudar o tamanho e densidade do núcleo e manto deles."
A técnica utilizada na caracterização química da estrela é a espectroscopia, que é uma ferramenta já empregada na astronomia há anos, mas majoritariamente no estudo de exoplanetas gigantes ou superterras. "A novidade do nosso trabalho é que ela está sendo aplicada em um exoplaneta de massa similar à Terra e localizado muito próximo do nosso sistema", diz Souto.
A grande maioria dos exoplanetas de massa e tamanho similares aos da Terra descobertos até o momento orbitam estrelas anãs vermelhas. Segundo Souto, isso é uma consequência observacional, porque é mais fácil detectar corpos pequenos orbitando estrelas de baixa massa utilizando os métodos de detecção mais comuns.
Até o ano passado, não se sabia estudar a composição química de estrelas anãs vermelhas, porque elas têm seu espectro eletromagnético na região do visível coberta por misturas moleculares, que dificultam muito sua observação. "Por sugestão de minha orientadora, pensamos ser possível desenvolver este estudo a partir de espectros na região do infravermelho", conta Souto.
Em sua tese de doutorado, defendida no Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, ele mostrou que isso era possível. "Provamos que fazendo o estudo destes objetos na região do infravermelho é possível extrair muito mais informação sobre este tipo de estrela, podendo detectar até 14 elementos químicos e, assim, conhecê-la melhor", explica. "Se ela tem um exoplaneta, podemos também estudá-lo. Antes deste trabalho só era possível estudar a quantidade de ferro em anãs vermelhas."
A técnica também já foi usada em outro estudo parecido, mas com menos detalhes, sobre o sistema Kepler 186. Ele ficou conhecido por ter o primeiro exoplaneta de tamanho similar à Terra descoberto e que está na zona habitável da estrela. "Nesse trabalho verificamos que o sistema de Kepler 186f é muito rico em silício e isso faz com que o exoplaneta possua uma crosta muito dura e rígida", explica Souto. "Isso diminui consideravelmente as chances dele ter placas tectônicas, o que é importante na formação e na manutenção de uma possível atmosfera planetária."
Souto diz que a técnica que ele e seus colegas desenvolveram será de grande importância no futuro, porque as principais missões de procura por exoplanetas focará na busca daqueles similares à Terra, orbitando estrelas anãs vermelhas. "No nosso trabalho mostramos que podemos conhecer muito sobre eles, baseando-se apenas na informação obtida da sua estrela mãe", diz.

Falta de apoio

O desenvolvimento da nova técnica e as descobertas que ela proporcionou se devem mais ao esforço pessoal dos pesquisadores brasileiros do que ao apoio financeiro das instituições de fomento ou do governo. "Em geral é bem difícil fazer ciência no Brasil, seja pelas instalações deficientes, pela falta de apoio à produção científica em si ou pela redução dos recursos destinados à pesquisa", diz Souto.
De acordo com ele, a motivação científica começa de forma simples, geralmente nos cursos de graduação, quase sempre pela curiosidade de entender melhor o funcionamento de algo. "Muitas vezes, esse processo é interrompido pelo sucateamento e falta de materiais básicos nas instituições e de motivação de professores ou pela hierarquia acadêmica, que pode se transformar em situações de assédio moral - sem contar aquelas vezes em que o interesse pela ciência não é nem despertado", critica o pesquisador.
Na astronomia especificamente não é diferente. A área ainda é pouco difundida no Brasil, embora haja pesquisadores de renome internacional e muito dedicados em realizar ciência de ponta. "Mas pesquisa em astronomia é muito dependente da observação de corpos celestes, sejam os planetas do nosso sistema solar ou estrelas e galáxias, entre outros", diz Souto. "Para observar tais objetos precisamos de telescópios potentes, mas o país investe muito pouco nisso."
Ele cita o Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), que fica no Observatório do Pico do Dias, em Minas Gerais, que possui o maior telescópio do país, mas que não consegue atender a demanda científica de todos os pesquisadores. "Muitos projetos são desenvolvidos em outros telescópios parceiros do país no exterior, como o Gemini e o SOAR", conta. "Uma pauta muito relevante para a sociedade que foi deixada de lado pelo atual governo foi o firmamento do contrato com o Observatório Europeu do Sul (ESO), pelo qual teríamos acesso aos maiores telescópios do mundo. Infelizmente ele não foi assinado."

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Cinco coisas importantes que aconteceram no Brasil enquanto a bola rolava na Copa

Às vésperas da definição das partidas das oitavas de final, a Copa do Mundo da Rússia dominou o noticiário nos últimos seis dias.
Enquanto as atenções se voltavam para as atividades da Seleção Brasileira em São Petersburgo e em Moscou, no entanto, muita coisa aconteceu no Brasil e no mundo.
O STF suspendeu o julgamento de Lula - e depois decidiu retomá-lo - e soltou o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, enquanto o Congresso deu sequência à tramitação do PL (projeto de lei) dos Agrotóxicos.
A BBC News Brasil explica cinco notícias fora da Copa do Mundo que surgiram entre a vitória da canarinho sobre a Costa Rica e o 2 a 0 contra a Sérvia de quarta-feira, caso você tenha perdido.

Supremo, Lula, Dirceu e 'máfia da merenda'

Na noite de sexta-feira, depois de o Brasil bater a Costa Rica, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin arquivou o pedido de liberdade feito pela defesa do ex-presidente Lula e que seria julgado pela Segunda Turma da corte na terça-feira.
A defesa recorreu e, já na segunda-feira, o magistrado recolocou o pedido da pauta - mas o enviou ao Plenário do STF. Como foi dado prazo de 15 dias para a Procuradoria Geral da República (PGR) se manifestar e o Supremo entra em recesso em julho, o julgamento deve acontecer apenas em agosto.
A mudança foi vista como desfavorável para o petista, preso em Curitiba desde 7 de abril, já que a Segunda Turma - composta pelos juízes Ricardo Lewandowski, Edson Fachin, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello - hoje tem viés mais "garantista", pois tende a dar mais peso em suas decisões aos direitos dos acusados no processo.
Já o plenário, formado pelos onze ministros, tem se mostrado bastante dividido quando discute direitos fundamentais dos réus.
Na terça-feira, em uma sessão com direito a prorrogação no segundo tempo - que se estendeu das 9 h até o fim da tarde -, a Segunda Turma concedeu liberdade ao ex-ministro José Dirceu, preso havia um mês, e suspendeu a tramitação de ação penal contra o tucano Fernando Capez (SP), acusado por envolvimento na "máfia da merenda".
No caso do ex-ministro da Casa Civil de Lula, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski entenderam que há chances reais da pena de Dirceu, condenado em segunda instância por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, ser modificada em instâncias superiores - o que, se confirmado, significaria que sua detenção não seria correta.
Nos dois casos, o placar foi de 3 a 1 - Fachin votou contra e Celso de Mello estava ausente na sessão.

Projeto que libera agrotóxicos avança

Na segunda-feira, a comissão especial da Câmara aprovou o Projeto de Lei dos Agrotóxicos (PL 6299/2002), que segue para o Plenário da Casa.
O texto, que tem dividido ruralistas e ambientalistas, passou após oito tentativas de votação nos últimos meses (uma das sessões, em 20 de junho, foi interrompida porque um "artefato suspeito", semelhante a uma bomba, foi encontrado na sala de votação).
Quem critica o projeto alega que ele aumentaria a disponibilidade de agrotóxicos no país, indo na contramão da Europa e dos EUA, que têm aprovado leis mais restritivas. A nova medida, dizem, favoreceria apenas os fabricantes dos químicos, facilitando a entrada de produtos possivelmente danosos à saúde e ao ambiente.
Os produtores, por sua vez, reclamam da demora na liberação dos agrotóxicos e dizem que, quando o governo autoriza a aplicação, os produtos já estão obsoletos. Os que defendem o projeto afirmam ainda que ele é mais eficiente e condizente com as normas internacionais de uso das substâncias.
Uma das principais controvérsias é a ideia de que agrotóxicos só serão proibidos no país caso apresentem "risco inaceitável", um conceito mais amplo que o estabelecido pela lei 7.802, de 1989, que proíbe substâncias que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas.
Outro ponto polêmico é a redução das competências de controle e fiscalização de órgãos como Anvisa e Ibama - que já se posicionaram publicamente contra o PL -, que perderiam parte das atribuições para o Ministério da Agricultura.
Os agrotóxicos não seriam mais avaliados e classificados por aqueles órgãos, que apenas homologariam a avaliação realizada pelas empresas registrantes de produtos agrotóxicos.
Até o nome que o Brasil dá a esses produtos entrou em discussão. Inicialmente, o PL sugeria que "agrotóxicos" fosse substituído por "produtos fitossanitários". Em resposta à reclamação de opositores, o relator do projeto, deputado Luiz Nishimori (PR-PR), decidiu pelo termo "pesticidas".

Inquérito contra Richa sai das mãos de Moro

Também na segunda, o juiz Sergio Moro encaminhou para a Justiça Eleitoral inquérito contra o pré-candidato ao Senado Beto Richa (PSDB).
Desde que renunciou ao mandato para concorrer e perdeu o foro privilegiado, em abril deste ano, o ex-governador do Paraná vinha sendo investigado na primeira instância por suposto caixa dois nas eleições de 2008, 2010 e 2014 exposto em delações da Odebrecht.
A defesa de Richa, entretanto, recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu que o inquérito deveria ser analisado pela Justiça Eleitoral.
No despacho, porém, Moro afirma que a competência é da Justiça Federal, já que os casos investigados não se tratariam "de mero caixa dois" e teriam indício de corrupção, e pede que os autos sejam devolvidos à 13ª Vara Federal para a continuação da análise dos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e fraude em licitação.
Em abril, dias depois de perder o foro privilegiado, o ex-governador de São Paulo e pré-candidato do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin, também escapou da primeira instância. No caso do tucano, o STJ enviou o inquérito diretamente para a Justiça Eleitoral do Estado, apesar do pedido da PGR para que fosse encaminhado pela Justiça Federal.
O ex-governador também é investigado por suspeita de ter recebido doações da Odebrecht que não teriam sido declaradas.

Vice-presidente americano visita o Brasil

Na véspera da partida entre Brasil e Sérvia, o vice-presidente americano, Mike Pence, desembarcou no Brasil. A Venezuela foi o principal tema da reunião com o presidente Temer, mas a situação das 49 crianças brasileiras que estão atualmente em abrigos nos EUA - resultado da política migratória do país, que está sob intenso debate - também foi discutida pelos dois.
O vice-presidente americano aproveitou para passar um recado aos brasileiros que eventualmente cogitem imigrar ilegalmente para o país: "Não arrisquem as suas vidas ou a de seus filhos tentando entrar nos Estados Unidos via contrabandistas e traficantes de pessoas. Se não têm condições de entrar legalmente, não venham."

Adolescente morre baleado a caminho da escola no Rio

Dois dias antes de o Brasil jogar contra a Costa Rica, na quarta-feira, o adolescente Marcos Vinicius da Silva, de 14 anos, foi ferido em um tiroteio no complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, durante uma ação da polícia contra o tráfico de drogas. Ele foi encaminhado para o hospital, mas morreu no dia seguinte.
O jovem foi atingido na barriga por uma bala perdida, enquanto caminhava para a escola, acompanhado da mãe.
Moradores de comunidades do Complexo da Maré, na zona norte da cidade, fizeram protestos após a morte do garoto e bloquearam trechos da avenida Brasil e das linhas Vermelha e Amarela.
A ONU chegou a se pronunciar sobre o caso e, em comunicado divulgado nesta terça, lamentou a morte violenta do estudante, que alimenta a vergonhosa estatística de 31 homicídios de crianças e adolescentes por dia no Brasil.
O órgão destacou que adolescentes negros estão três vezes mais vulneráveis a mortes violentas do que brancos da mesma faixa etária.