Há certos meses em que Carlos e
Odilene deixam de comprar sabonete. Moradores de uma ocupação, eles
trocam o conforto da higiene por um pedaço de carne a mais no prato.
Reginaldo e Rafaela não têm previsão para trocar o telhado quebrado do
barraco em que vivem, na favela de Paraisópolis. Melhor aguentar as
goteiras a deixar de alimentar seus três filhos. Renata enfrenta uma
maratona diária: percorre quilômetros em busca de feiras e sacolões que
vendam alimentos mais baratos para a produção de marmitex. É na
diferença de centavos na batata ou no tomate que ela encontra o lucro
para sustentar sozinha a família, composta por mais sete crianças, em um
cortiço na região da cracolândia.
Essas são as escolhas diárias
feitas por famílias que vivem com um salário mínimo, R$ 937, na cidade
de São Paulo. Chefes de família contaram à BBC Brasil como se desdobram
para esticar por 30 dias os rendimentos - e evitar ter que morar na rua.
Uma
pesquisa divulgada em julho deste ano pelo Departamento Intersindical
de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que o salário
mínimo para sustentar uma família de quatro pessoas deveria ser de R$
3.810,36. O montante é quatro vezes maior do que o valor atual do mínimo
brasileiro.
O levantamento considera os custos das necessidades básicas de
uma família, como moradia, alimentação, educação, saúde e lazer. Para o
Dieese, R$ 937 seria o valor mínimo para viver com dignidade em novembro
de 1999. Logo, as três famílias ouvidas pela reportagem sofrem com uma
defasagem de quase 20 anos no orçamento.
Em uma condição financeira como essa, elas admitem que, por diversas vezes, não tiveram comida suficiente para todos na casa.
Moradia
Na
favela de Paraisópolis, na zona sul, o barro engole o par de tênis do
auxiliar de limpeza Reginaldo dos Santos Santana, de 28 anos, em seu
trajeto até o ponto de ônibus. Um forte cheiro de esgoto preenche os
becos da área.
Em um barraco de dois andares feito com portas
velhas, madeirites e restos de tábuas moram Reginaldo, a mulher,
Rafaela, e os três filhos do casal, de 8, 5 e 2 anos. O imóvel é alugado
por R$ 250, valor que abocanha mais de um quarto do salário de
Reginaldo. Em dia de chuva na segunda maior favela de São Paulo, eles
não dormem. O risco é o barraco desabar.
"Quando chove um pouco forte, fica parecendo um chuveiro. Molha logo a
cama. Mas não tem jeito. É morar aqui ou na rua", diz Reginaldo.
A
falta de estrutura da casa não se limita aos problemas no telhado e nas
paredes. Um grito agudo de Raianny, a filha de 5 anos do casal, anuncia
que o banho começou no cômodo abaixo. O banheiro do barraco não tem
chuveiro. Uma torneira acoplada na ponta de um cano à meia altura faz as
vezes de uma ducha.
A água gelada faz tremer o corpo magro da
menina. "É só no primeiro minuto, logo ela se acostuma", diz Rafaela,
enquanto ensaboa a criança.
Em uma ocupação a poucos quilômetros
dali, o pedreiro Carlos Augusto Silva, de 43 anos, conta que ajudou a
erguer 12 prédios de 23 andares, há três anos, em Interlagos, na zona
sul. Depois de prontas, ele jamais entrou nas torres de alto padrão.
"A gente entra com a mão de obra, mas não vale a pena para a gente. É
como diz a música: 'Está vendo aquele prédio? Eu ajudei a fazer, mas
hoje não posso passar nem perto'", diz Carlos.
Cansado de viver no limite do orçamento, ele decidiu erguer um barraco com teto de lona, colocar um colchão dentro e morar.
A
ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em um terreno
na zona sul de São Paulo abriga 300 famílias. O objetivo de quem vive
ali é aliviar o custo do aluguel e mostrar ao poder público que há
espaços valiosos e ociosos na cidade. Em sua visão, ali seria um local
ideal para a construção de moradias populares.
A família, no
entanto, não pode ficar reunida sob o teto de lona. O filho mais velho
de Carlos e Odilene sofre de epilepsia e atraso mental, condição que
forçou a mulher a largar sua ocupação como empregada doméstica para se
dedicar aos cuidados dele.
Por causa da doença, ele precisa de um
ambiente mais adequado para viver, razão pela qual a família paga R$
400 pelo aluguel de uma casa de dois cômodos na região, onde vivem a mãe
e os dois filhos. Já Carlos passa a maior parte das noites no barraco
da ocupação, algumas na companhia da mulher.
O problema de saúde do filho garante uma pensão mensal no valor de um
salário mínimo - a única renda segura com que a família pode contar.
Como
complemento, o pedreiro faz bicos em troca de R$ 100 por dia. Mas, em
tempos de crise, ele chega a passar semanas em branco.
A cerca de
22 quilômetros dali, no centro de São Paulo, a mão direita de Renata
Moura Soares, de 34 anos, segura a mão do filho menor enquanto a
esquerda mistura os temperos na panela para fazer uma macarronada.
Sozinha, ela sustenta seus sete filhos - o mais velho de 20 anos, o mais
novo de 1 - vendendo marmitex na região da cracolândia.
"(Meus clientes) são os usuários e quem trabalha lá dentro. Eu
trabalho com vagabundo, com todo tipo de gente. Eu não escolho cliente.
Eu não quero saber quem é. Não quero saber o que eles estão fazendo lá
dentro. Eu quero saber que eu tenho que vender a minha comida e
receber", conta.
Hoje, a família vive em um cortiço na região
central da capital. A casa antiga, com fiação aparente, foi dividida em
vários cômodos, dois deles ocupados pelos Soares. O banheiro, no
entanto, é compartilhado com mais três famílias. Renata não reclama das
condições do imóvel: é melhor do que dormir com as crianças na rua, como
já aconteceu.
Ela conhece a dona do imóvel e consegue alguma
flexibilidade na cobrança do aluguel - que normalmente custaria R$ 400
mensais. O preço é acertado a depender do desempenho de venda de suas
quentinhas - em um dia bom, ela chega a vender até 50 marmitex por R$ 15
cada.
Mãe solteira, ela sempre teme não dar conta de chegar ao fim do mês abrigada.
"Quem é mãe não merece pagar aluguel a vida inteira", diz.
Alimentação
Quem
vive com o orçamento contado tem uma preocupação urgente: garantir
comida no prato por 30 dias. Para isso, as famílias desenvolvem
estratégias.
Reginaldo faz uma maratona semanal pelos
supermercados da região de Paraisópolis, aproveitando as diferentes
promoções de cada estabelecimento. Se a tarefa é bem sucedida, ele
consegue manter os potes de arroz e feijão abastecidos. Se não, vai
faltar.
"Aí, eu peço (dinheiro) emprestado para uma vizinha. Se acaba de
novo, eu pego com outra pessoa no mês seguinte para pagar a anterior e
assim vai", conta.
Mas a fome teima em aparecer.
Rafaela,
a mulher de Reginaldo, vai à feira todos os sábados para "fazer a
xepa", como é conhecida a prática de recolher e reaproveitar os
alimentos descartados pelos feirantes.
Ela espera as barracas
serem desmontadas para selecionar, em meio a restos de caixotes e pilhas
de frutas, verduras e legumes parcialmente estragados, o que servirá no
almoço de sua família. "Dá vergonha, é muito ruim. Mas tem que fazer",
diz a dona de casa.
O casal conta que fica abalado em datas
comemorativas, como o Dia da Criança e Natal, quando seus filhos pedem
presentes. Mas a noção de prioridade é vital na gestão financeira da
família. "Em dia de festa, a gente compra ovo, salsicha e dá um
pedacinho para cada um. Às vezes, eles comem até puro. Não ligam."
Se o feijão está escasso, Rafaela aumenta a quantidade de pão que a família come.
Odilene,
na ocupação, enfrenta racionamento semelhante. "A gente só compra o
essencial: arroz e feijão. Mistura só de vez em quando", conta,
referindo-se a carnes, ovos ou legumes.
A economista e supervisora
de preços do Dieese Patrícia Lino Costa diz que a dificuldade que as
famílias sentem no estômago se confirma nos números: São Paulo tem a
segunda cesta básica mais cara do Brasil entre as capitais, perdendo
apenas para Porto Alegre.
"Com metade de um salário mínimo, hoje
essas famílias compram uma cesta básica. Com a metade restante, tem que
dar conta de todas as outras despesas", diz Costa.
O pedreiro Carlos define sua vida em uma ocupação na zona sul como um jogo de escolhas.
"Você compra remédio ou comida. Às vezes, você deixa de cortar o
cabelo para comer, deixa de comprar um sabonete para comer. Você deixa
de tirar barba. Você sempre precisa cortar uma coisa para fazer a
outra", conta ele.
A precariedade da ocupação é compensada pela
certeza de que não passarão fome. Graças às doações recebidas, eles
garantem três refeições diárias. "Aqui não acontece de ficar sem comida,
mas em casa acontece. E não é raro", diz Carlos.
Renata faz um
esforço ainda maior para enxugar gastos com alimentos - já que a
produção de marmitas depende disso. O bairro de Campos Elíseos, onde ela
vive com os sete filhos, tem um alto custo de vida.
"Você tem
que pesquisar, ir mais longe mesmo. Já chegou a faltar leite e açúcar em
casa. Semana passada, eu passei aperto porque não tinha dinheiro para
comprar leite e fralda para o meu filho. Hoje, fui com R$ 200 fazer
compras perto de casa e não consegui trazer quase nada", contou.
Descontando
o dinheiro que usa para reabastecer seu estoque de mercadorias e
embalagens para produzir marmitas, Renata conta que sobra menos de um
salário mínimo.
"Com esse dinheiro, ninguém consegue ter nada. A
renda que você tem é o que você vai comendo. Não consigo comprar roupa,
material escolar, remédios e ainda cortaram o Bolsa Família que eu
recebia. Essa semana, meu bebê estava sem um sapatinho para usar e eu
tive que tirar do dinheiro das mercadorias para comprar", diz.
Futuro
Os
pais de família que vivem com um salário mínimo costumam ter alguns
elementos em comum: a baixa escolaridade, a infância marcada por
privações e pela necessidade de trabalhar. Um enredo que tentam, com
diferentes níveis de sucesso, evitar repetir com seus filhos.
Desde
que se mudou de Ilhéus, na Bahia, para São Paulo, há dois anos e meio, a
família de Paraisópolis nunca teve uma renda mensal superior a um
salário mínimo. Rafaela, que estudou até a 5ª série e já trabalhou como
auxiliar de limpeza, diz que sonha que o marido consiga um emprego bom e
que o casal compre uma casa.
Ela ainda espera que os filhos
estudem e obtenham sucesso profissional. Aos 8 anos, no entanto, o mais
velho ainda não começou a 1ª série.
Reginaldo gosta de sonhar no
trajeto de cerca de uma hora e meia de ônibus até o trabalho. É no tempo
no transporte coletivo que ele se imagina em outra vida: "É um pouco
difícil de realizar. Pelo que eu ganho não tem como... Mas meu sonho é
ter uma casa própria e um carrinho na garagem para eu dar para a minha
família", conta.
Para ele, o ideal seria ganhar ao menos dois salários mínimos "para
me levantar um pouco". Mas ao ser questionado sobre suas expectativas
disso acontecer, Reginaldo fica em silêncio.
A família chegou a
receber Bolsa Família, mas não conseguiu renovar o benefício porque a
certidão de nascimento do filho acabou danificada e os pais não
conseguiram fazer o cadastro.
O casal que vive na ocupação também
parou os estudos no ensino fundamental, mas tem a esperança de que seu
filho de 18 anos trace uma história diferente. "Ele ganhou uma bolsa de
estudos muito boa e está tendo uma formação mais digna", disse.
Os
olhos de Carlos se enchem de lágrimas ao lembrar de um pedido feito
pelo caçula. "Nunca pude dar um videogame para o meu filho. Até hoje ele
fala disso. Meu filho, seu pai ainda vai conseguir lhe dar o melhor
videogame do mundo. Isso fica na minha cabeça, até choro", afirmou.
Para
a economista do Dieese Patrícia Costa, a política atual perpetua a
pobreza porque as famílias não conseguem ter gastos além de alimentação e
moradia.
"Essa realidade impede a mudança de classe porque as crianças
precisam ir trabalhar. Da forma que estamos hoje, a tendência é piorar a
situação dessas famílias. O que deve haver é uma política de
valorização do salário mínimo, investimento em saúde e, principalmente,
em educação básica e profissionalizante", diz.
A comerciante que
vive na cracolândia conta que se incomoda por seus filhos crescerem em
um ambiente de degradação e violência. Embora acorde às 6h para dar
conta de preparar e vender almoço e jantar nas ruas da cracolândia, ela
não conseguiu evitar que os filhos mais velhos tivessem que deixar a
escola para ajudá-la no trabalho. A história repete sua própria
juventude:
"Ver que meu filho não pode dar continuidade na
escola, da mesma forma que eu, é triste. Eu estudei até a terceira série
e hoje convivo com essa falta", afirma, antes de completar:
"Futuramente, a gente não sabe o que pode acontecer. Medo qualquer mãe
tem. Dá medo de amanhã ou depois ele querer partir para o lado errado
porque a preocupação dele ao ver a minha dificuldade para conseguir
alguma coisa é grande".