Teori Zavascki, o juiz da Operação Lava Jato
em Brasília, estava muito preocupado ao ver o filho Francisco pela
última vez, em Porto Alegre, na véspera de encontrar a morte em um
desastre aéreo rumo a Paraty, no litoral fluminense.
Examinava há alguns dias o roteiro das
delações de mais de 70 executivos da construtora Odebrecht, papelada que
caberia a ele validar ou anular. E ficara impressionado, a se perguntar
se o País aguentaria o tranco. “Acho que 2017 vai ser muito mais
complicado que 2016”, comentou com o filho, autor de relatos sobre a
conversa. Por quê? “Pelo envolvimento de pessoas realmente poderosas.”
A incerteza sobre o comando da Lava Jato
aberta com sua morte prova que o magistrado acertou na mosca. Às
vésperas do fim do recesso parlamentar e forense, Brasília foi tomada
por articulações de bastidores sobre o destino dos processos, conversas a
mobilizar o Palácio do Planalto, políticos, togados da mais alta Corte,
o chefe do Ministério Público.
Uma semana depois do falecimento de Zavascki,
dia da conclusão desta reportagem, não se sabia quem assumiria a
condução do caso no Supremo Tribunal Federal, único a julgar figurões da
República como ministros, senadores e deputados, nem como se daria a
escolha do novo relator.
No emaranhado de interesses, dois grupos se
destacaram. De um lado, uma turma doida para deter o avanço da Lava Jato
em sua direção, casos de Michel Temer, PMDB e PSDB e os ameaçados em geral pela delação dos executivos da Odebrecht. Do outro, o Ministério Público e a presidente do STF, Cármen Lúcia.
Depois da deposição de Dilma Rousseff,
Mendes mudou da água para o vinho. Virou crítico feroz da Lava Jato.
Para ele, a relatoria dos processos deveria ficar com o substituto de
Zavascki indicado por Temer para o Supremo. Discretamente, insinuou que Cármen Lúcia não deveria tomar decisões solitárias.
Desde que assumiu o cargo, a midiática
Cármen deu indícios de não estar disposta a facilitar a vida dos
políticos. Não surpreende figurar agora na trincheira oposta à de
Mendes, um político nato. Seus assessores contaram à mídia que ela
queria para a Lava Jato alguém do perfil de Zavascki. Se um colega de
Corte assim topasse, ela buscaria um jeito de viabilizar-lhe a
designação.
Em seu plano, a ministra teve o apoio do procurador-geral da República, Rodrigo Janot,
ansioso por sacramentar as delações da Odebrecht, sua principal aposta
investigatória em 2017. Graças a um pedido de urgência enviado ao STF
por Janot um dia após ele conversar com Cármen, ela ganhou respaldo para
tomar decisões unilaterais durante o recesso do Judiciário. Foi graças a
essa costura que a ministra validou as delações da Odebrecht nesta
segunda-feira 30.
As consultas aos demais
ministros do STF não deixaram Cármen à vontade para agir por conta
própria, no entanto, em relação à escolha de um substituto para Zavascki
no comando dos processos da Lava Jato. Qualquer coisa pode acontecer
nos próximos dias. Desde o novo relator ser definido por sorteio entre
os atuais ministros até o caso ir para as mãos do indicado ao STF de
Temer, por ora no aguardo de uma definição dentro da Corte sobre o
desenrolar dos acontecimentos.
Certo é que, em Brasília e no tocante à
turma do foro privilegiado, a Lava Jato tende a desacelerar por um
tempo. Motivo de alívio do Planalto, a julgar por um aperitivo oferecido
à praça sobre as delações da Odebrecht, o roteiro do ex-lobista da
empreiteira Claudio Melo Filho, tornado público em dezembro.
Citado por Melo Filho como acompanhante
de Temer em um suspeito jantar de arrecadação de fundos junto à cúpula
da construtora, Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil, comentou, assim
como quem não quer nada, que a morte de Zavascki atrasaria a validação
das delações. Idem Gilmar Mendes, para quem só o falecido, entre os
ministros do STF, dominava o assunto.
O relator cumpre realmente papel
determinante na velocidade e nos alvos dos processos. Se por um lado
cabe ao Ministério Público definir uma linha de investigação e em quem
vai mirar, é o juiz quem autoriza ou rejeita pedidos de abertura de inquéritos, quebras de sigilo, prisões e operações de busca e apreensão.
A depender de seu humor, talvez de suas preferências
político-partidárias (secretas ou nem tanto), o magistrado pode se
tornar um obstáculo. Um bom exemplo disso ocorreu em maio do ano passado
e teve como estrelas Mendes e o senador mineiro Aécio Neves, presidente do PSDB.
Janot pediu duas vezes à Corte para
investigar o senador. Por incrível coincidência, os casos caíram com
Mendes. O primeiro era uma suspeita de Aécio participar de um esquema de
propinas na estatal Furnas. Mendes autorizou o inquérito. A coleta de
provas pela Polícia Federal durou um dia, o senador mineiro foi ouvido
no seguinte, Gilmar, finalmente, revogou suas decisões da véspera e
mandou o processo de volta a Janot, com a pergunta: precisa apurar
mesmo?
O segundo caso diz respeito à suspeita de
que Aécio, quando governador de Minas, tenha enviado dados fajutos a
uma CPI no Congresso. Mendes devolveu de cara a Janot. O
procurador-geral insistiu e o ministro, por fim, cedeu e autorizou o
andamento dos dois processos, o de Furnas e o dos dados falsos.
A relação entre o relator e
o procurador-geral também pesa no rumo de processos, outra incógnita na
Lava Jato. Janot e Zavascki estavam em sintonia e conversavam sempre. O
que não significa que o chefe do Ministério Público não tirasse o
magistrado do sério às vezes. Quando o roteiro da delação do senador
cassado Delcídio do Amaral,
ex-PT, vazou dez dias antes de um domingo de protestos pela deposição
de Dilma em março de 2016, Zavascki mandou Janot investigar. Em tese, só
quem sabia do teor eram as equipes do ministro e do procurador.
O afastamento de Eduardo Cunha do comando
da Câmara foi solicitado por Janot a Zavascki na véspera do recesso
forense de dezembro de 2015, motivo de irritação do magistrado, para
quem tal interferência de um poder em outro não poderia dar-se de
supetão.
Para ajudá-lo na Lava Jato, Zavascki
montara uma equipe de três juízes auxiliares, Marcio Schiefler, Paulo
Marcos de Farias e Hugo Sinvaldo Silva da Gama Filho. O trio é hoje a
memória viva da Operação no STF, domina detalhes e personagens. Com
sinal verde de Cármen Lúcia, eles cumpriram nos últimos dias uma etapa
importante na delação da Odebrecht. Ouviram executivos da empreiteira
para conferir se eles selaram o acordo de delação por vontade própria ou
se foram coagidos. Uma checagem necessária à homologação de qualquer
delação.
- Em embate com Mendes por causa de Aécio, Janot perdeu um round, mas levou o segundo (Foto: Marcelo Camargo/ABr)
O velório foi uma oportunidade para
Cármen Lúcia dar mais um indício de sua má vontade em relação a
políticos. Em sua posse, em setembro, no comando do STF, não
mencionara autoridades presentes, como Temer e o presidente do Senado,
Renan Calheiros, dois encrencados. No mês seguinte, recusou-se a
reunir-se com Calheiros após uma operação da Polícia Federal no Senado.
Em novembro, comentou ser uma tentativa de calar juízes a
aprovação pelos deputados de uma lei a criar crime de responsabilidade
para magistrados e procuradores. Agora no velório, um repórter notou que
a ministra estava ao lado da família do falecido, retirou-se na hora em
que comitiva presidencial estava para chegar e voltou justamente quando
Temer e sua trupe partiram.
Essa comitiva do peemedebista é digna de
registros. Um dos integrantes era o chanceler José Serra, ministro de
uma pasta que nada tem a ver com tribunais. Ele era, aliás, um dos três
ministros ao lado de Temer na declaração presidencial à imprensa no dia
da morte de Zavascki.
Um rosto conhecido da Lava Jato. Serra é
suspeito de receber 23 milhões de reais na Suíça em caixa 2 da Odebrecht
na eleição presidencial de 2010. Seu colega de PSDB Geraldo Alckmin era
outro na comitiva. O governador paulista pegou carona no avião da FAB
rumo a Porto Alegre a convite de Temer, segundo a assessoria de imprensa
do tucano.
Alguns dias depois da carona, aconteceu
algo curioso. Nomeado pelo governador para o cargo, o procurador-geral
de Justiça de São Paulo, Gianpaolo Smanio, disse ao Valor estar
pronto para criar uma força-tarefa que investigue fatos apontados em
delações da Odebrecht ocorridos em terras bandeirantes.
Há obras celebradas pelo governo paulista
com a Odebrecht que provavelmente foram citadas. Uma linha do metrô,
outra de monotrilho, por exemplo. Se a apuração de negociatas nessas
obras ficar com promotores de São Paulo, Alckmin dará vivas. Uma
pesquisa divulgada em dezembro pela ONG Conectas garante: o Ministério
Público paulista sofre influência do governo local.
Smanio não é o único personagem ligado a
Alckmin a surgir no meio da Lava Jato. Secretário do tucano duas vezes
em São Paulo, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, trocou na
quinta-feira 26 a chefia do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional, notícia antecipada no site de CartaCapital no dia 13.
Pelo DRCI, passam todos os casos de
colaboração com outros países. A ajuda externa é uma das marcas da Lava
Jato, vide o acordo de leniência da Odebrecht nos Estados Unidos. Quem
comanda o órgão sabe de onde virá chumbo e contra quem.
O diretor demitido, Ricardo Saadi, estava
no cargo desde 2010. Tinha independência para atuar, não devia gratidão
a Moraes, nem se sentia obrigado a deixá-lo a par das coisas. Consta
que o ministro queria exatamente isso, conhecer tudo do Departamento,
daí ter lá colocado alguém de sua confiança.
No domingo 22, o Estado de S. Paulo
noticiou que o acordo está travado por culpa do Ministério da Justiça. A
pasta tentaria, entre outras coisas, conhecer de antemão os nomes de
quem será investigado, exigência que seria rechaçada pela Suíça.
Cooperações à parte, Gilmar Mendes era
outro caronista na comitiva de Temer rumo a Porto Alegre. Parece não
haver limites para a proximidade entre réu e julgador: como se sabe, o
peemedebista corre risco de cassação
no Tribunal Superior Eleitoral, comandado por Mendes, em uma ação de
cassação da chapa presidencial eleita em 2014. E nem foi a primeira
carona em 2017.
Mendes acompanhou Temer a Lisboa no
início do mês para o funeral do ex-presidente de Portugal Mário Soares.
Uma história esquisita. O magistrado estava de férias em Portugal.
Ficaria até 25 de janeiro. Por alegadas “razões pessoais”, voltou antes.
Logo embarcou de novo para Lisboa, com
Temer. Não foi ao funeral de Soares, por causa de uma alegada
labirintite, nem voltou com o presidente ao Brasil. Seguiu em Portugal a
desfrutar das férias antes interrompidas. Só regressou de vez ao saber
da morte de Zavascki, por quem chorou sinceramente.
As causas do desastre aéreo ainda são
desconhecidas. O Ministério Público Federal abriu um inquérito civil
para apurar o caso, investigação a correr em sigilo por ordem judicial.
Análises iniciais da Aeronáutica sobre a última meia hora de conversa
dentro da cabine do piloto e deste com a torre de controle do aeroporto
de Paraty não identificaram problemas mecânicos no jatinho. O piloto
Osmar Rodrigues fez duas tentativas de pousar, ambas malsucedidas por
causa do mau tempo, e talvez tenha ficado desorientado depois disso, sem
enxergar o que era mar e o que era pista.
Além dele e de Zavascki, morreram mais
três passageiros. Um era o dono do jatinho, o empresário Carlos Alberto
Filgueiras, amigo do magistrado. A amizade teria surgido de
solidariedade em 2012, quando Zavascki, que ainda não era do STF,
acompanhava a esposa em sessões de tratamento de um câncer em São Paulo e
às vezes hospedava-se em um hotel do empresário.
Nesse início de 2017, era Filgueiras
quem cuidava da saúde. Para tratar o nervo ciático, levava a bordo a
massoterapeuta Maíra Panas, de 23 anos. A mãe dela, Maria Hilda Panas,
de 55, morava longe, em Mato Grosso, e a visitava em São Paulo quando os
serviços da filha foram requisitados, razão para ter embarcado junto.
As duas também morreram.
Diante do CV de Filgueiras, sua
proximidade com Zavascki chama a atenção. Ele era sócio indireto do
banqueiro André Esteves em uma empresa de empreendimentos imobiliários.
Dono do BTG Pactual, Esteves foi encarcerado, em novembro de 2015, por
ordem de Zavascki, juntamente com Delcídio do Amaral, em um dos inúmeros
capítulos da Lava Jato.
Passou à prisão domiciliar dias depois e,
em abril de 2016, foi solto, ambas decisões de Zavascki. Os fatos por
trás da detenção levaram o Ministério Público a denunciar Esteves à
Justiça, em julho de 2016, ao lado de Delcídio e do ex-presidente Lula,
por tentativa de obstruir investigações.
Esteves tinha, ao que parece,
interesse em encontrar canais de comunicação com o Judiciário. Cinco
dias após ser denunciado, seu BTG anunciou a entrada do advogado Nelson
Jobim como sócio e membro do Conselho de Administração. Ex-ministro da
Justiça, da Defesa e do STF, Jobim tem boas relações com petistas e
tucanos, além de crachá do PMDB.
- O ministro Moraes assume o controle das relações da Lava Jato com o exterior (Foto: Marcelo Camargo/ABr)
Era amigo de Zavascki, um sujeito “fechado”, um
“burocrata”, “parece que não tem ninguém” ligado a ele capaz de
abordá-lo para falar da Lava Jato, conforme uma conversa do enrolado
senador Romero Jucá, do PMDB, e o ex-presidente da Transpetro Sérgio
Machado, delator, gravada no início de 2016.
O hotel de Filgueiras em São Paulo, o
Emiliano, já despontou na Lava Jato. Em depoimento, Ricardo Pessoa, da
empreiteira UTC, contou ter jantado ali, em 2014, com Renan Calheiros,
para discutir doações à vitoriosa campanha do filho do senador ao
governo de Alagoas na eleição daquele ano.
Calheiros, relatou Pessoa, teria deixado a
impressão de o donativo ser uma contrapartida às obras, tocadas entre
outras pela UTC, da usina nuclear de Angra 3, localizada por
coincidência nas proximidades de onde caiu a aeronave com Zavascki.
O destino final dos passageiros do voo
era a Ilha das Almas, um paraíso em Paraty responsável por Filgueiras
ser processado por crime ambiental, a pedido do MP. Algumas de suas
propriedades na região situam-se em área de proteção e, por isso, só
admitiam construções para fins de pesquisas.
Nada de hotéis, bares, restaurantes e
pousadas, alguns dos quais erguidos pelo empresário entre 2008 e 2011,
acusa o MP. Condenado em várias instâncias, ele recorreu em novembro ao
STF, onde teve seu pedido de trancar a ação penal negado pelo relator
Luiz Edson Fachin, em 13 de dezembro.
Os mortos não se preocupam mais. Já os muito vivos...