domingo, 25 de março de 2018

Área de conservação da Caatinga revela maior concentração de sítios arqueológicos do Brasil

A proposta de criação de um mosaico de unidades de conservação dos últimos remanescentes em área contínua do bioma Caatinga no Brasil, do tamanho de 850 mil campos de futebol, no sertão da Bahia, abriu as portas para a descoberta do que pesquisadores chamam de a maior concentração de sítios arqueológicos do país.
São cerca de 3 mil sítios em rochas de boqueirões e grotas, onde pinturas rupestres revelam, segundo arqueólogos, um homem pré-histórico de "mente aberta" e "avesso a rótulos", que teria vivido há 16 mil anos e era coletor, caçador, pescador e agricultor.
Chamado de "índio Tapuia" (etnia usada para denominar todo índio que não era Tupi Guarani), esse homem, que é uma mistura de várias etnias e raças, foi a base para a formação do povo sertanejo. Ele chegou à América do Sul pelo oceano Pacífico, vindo de locais ainda incertos para a arqueologia.
Entre seus habitats estava o Vale do São Francisco, com concentração no território do município baiano de Sento Sé. O "índio" foi miscigenado com outras raças após a colonização portuguesa, há pouco mais de 500 anos, indicam arqueólogos.
Os pesquisadores também encontraram na região ossos de animais pré-históricos, como a preguiça-gigante, de 6 metros de altura, e do tatu-gigante, do tamanho de um Fusca.
A descoberta dos sítios têm empolgado não só pesquisadores, mas também o setor turístico, que vê a riqueza arqueológica local com forte potencial para atrair turistas, a exemplo do que ocorre no Parque Nacional da Serra da Capivara (Piauí) - onde mais de 1,3 mil sítios arqueológicos já foram descobertos em mais de 40 anos de pesquisa.
No sertão da Bahia, os sítios estão numa região conhecida como Boqueirão da Onça, que há décadas também chama a atenção de pesquisadores pela fauna e flora do bioma Caatinga. Recentemente, após 16 anos de estudos, o Ministério do Meio Ambiente concluiu uma proposta para a criação das unidades de conservação na região.
A proposta é um parque nacional de 345,3 mil hectares para proteção integral do bioma e uma APA (área de proteção ambiental) de 505,6 mil hectares, onde será possível o uso sustentável dos recursos naturais. A área total abrange os municípios baianos de Sento Sé, Campo Formoso, Sobradinho, Juazeiro e Umburanas.
A finalização da proposta, com o envio à Casa Civil da Presidência de documentos pendentes, ocorreu nesta terça-feira (13). Não há prazo para ela ser analisada pela pasta, mas isso "deve ser realizado em tempo curto", informou a Casa Civil. Depois, a criação do parque nacional e da APA devem virar decreto presidencial.
Como dentro do parque nacional não há comunidades ou empreendimentos, não será necessário gasto público com indenizações. Dentro da APA, porém, vivem cerca de 250 famílias em 27 comunidades de fundos de pasto e quilombolas. Há ainda empreendimentos de energia eólica que ocupam cerca de 30% do território da área de proteção a ser criada.

'Homem metafórico'

Os sítios arqueológicos estão dentro da área onde será o parque nacional. Eles começaram a ser estudados na década de 1970, durante a construção da barragem de Sobradinho. Na época, o arqueólogo espanhol Valentim Calderón coordenou o Projeto Sobradinho de Salvamento Arqueológico numa área de 4.214 km².
O trabalho de Calderón nos territórios de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado (à margem esquerda do rio São Francisco) e de Juazeiro, Sento Sé e Xique-xique (margem direita) identificou os primeiros sítios rupestres da região.
As pinturas foram definidas por ele como arte parietal (de homens que viveram na Idade das Renas, entre 15000 a.C. e 9000 a.C), divididas em pictografias (representação de ideias por meio de desenhos) e petroglifos (escultura bruta em pedra).
Após o Projeto de Salvamento Arqueológico, as pesquisas só voltaram a ocorrer na região na década de 1990, com o arqueólogo Celito Kestering, discípulo de Calderón e hoje doutor em Arqueologia na área de pinturas rupestres.
O arqueólogo é professor aposentado da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco), em Petrolina (PE), e pesquisa os sítios arqueológicos de Sento Sé desde 1993. Ele os classifica como "metafóricos", enquanto que os da Serra da Capivara, onde também realizou estudos, seriam "metonímicos".
Para ele, "o metafórico tem o conceito de bem sem precisar ter a representação da imagem de um Deus macho, pai, castigador, como tem o metonímico, que incorpora um conceito cujo horizonte não vai além da figura rupestre."
"Os que moravam na beira do Rio São Francisco eram coletores, caçadores, pescadores e agricultores. Os metonímicos se orientam só pelo espaço, não têm a dimensão do tempo. Os metafóricos se orientam muito mais pelo tempo do que pelo espaço", diz Kestering.

Potencial turístico

Mesmo que ainda não esteja regularizada, a visitação turística já vem ocorrendo na região de Sento Sé por causa dos sítios arqueológicos, tendo sido esse, inclusive, um dos motivos de o município ser elevado de categoria no novo Mapa do Turismo, divulgado há cerca de um mês pelo Ministério do Turismo.
O mapa elevou Sento Sé da categoria E para a D, numa escala que vai de E até A. Assim, a cidade passou a ter direito a pedir ao ministério R$ 150 mil por ano para realização de um único evento turístico. A Secretaria Municipal de Turismo de Sento Sé informou que busca recursos com governos para poder criar meios de organizar as visitas aos sítios e divulgá-los.
"Temos um potencial grande para isso e queremos aproveitar, mas com cuidado", comenta Mariluze Amaral, chefe do Departamento de Turismo. A ideia é promover o ecoturismo em trilhas nos circuitos arqueológicos, com passagens por caminhos percorridos pelo sertanista e explorador de ouro Romão Gramacho, o cangaceiro Lampião e a Coluna de Carlos Prestes.
Por se tratar de algo ainda não regulamentado, a Prefeitura de Sento Sé diz não dispor de informações sobre a quantidade de turistas que tem ido aos sítios, mas diz que tem buscado conversar com guias locais para fazerem um trabalho mais qualificado.
Um dos que atuam com turismo na região é o empresário Bruno Kestering, filho do arqueólogo Celito. As visitas aos sítios, segundo ele, "são realizadas mais por escolas da região, que costumam ir em grupo de 50 pessoas".
Devido à proximidade com as principais cidades da região do Vale do São Francisco - a baiana Juazeiro e pernambucana Petrolina, separadas pelo rio -, os sítios mais frequentados são os de Sobradinho, onde foram realizados os estudos iniciais pelo arqueólogo espanhol Valentin Calderón.
Alvandyr Dantas Bezerra, pesquisador do Instituto Habilis e do Grupo de Pesquisa Bahia Arqueológica, realizou em 2017 levantamento de sítios arqueológicos na região de Sento Sé com vistas à criação de um circuito de turismo, a pedido da prefeitura local.
"O potencial turístico lá é enorme. O que deu para perceber, de início, é que muitos (sítios) terão de ficar disponíveis para visitação, e outros para pesquisa científica", contou. Na Serra da Capivara, por exemplo, a visitação é aberta em 173 sítios.
Bezerra estima que, saindo o decreto presidencial que criará o Parque Nacional do Boqueirão da Onça, o projeto de visitação inicial dos sítios pode ficar pronto em dois anos - com o tempo mais locais podem ser liberados para visitas. Mas isso depende ainda da elaboração do plano de manejo pelo Ministério do Meio Ambiente.
"Com o decreto, vamos dar início à elaboração desse plano e liberar locais onde possa ocorrer a visitação turística. Em vez de fazer um plano de manejo completo, que contemple tudo, vamos fazer aos poucos para que as visitas possam ocorrer, tanto nos sítios arqueológicos quanto na área da Caatinga", diz Moara Menta Giasson, diretora de áreas protegidas da Secretaria de Biodiversidade do ministério.

Onça em extinção

Os sítios arqueológicos de Sento Sé fazem parte de um bioma ainda desprotegido pelo poder público. E não só eles estão nesta situação, como também cerca de 30 onças pintadas e 120 pardas, dentre outros mamíferos, aves e plantas diversas que habitam exclusivamente o bioma Caatinga.
Entre outros representantes da fauna em extinção no Boqueirão da Onça estão o tamanduá bandeira, o tatu-bola, o gato mourisco e o gato-do-mato. Entre as aves em risco estão a arara-azul-de-lear e o jacu estalo.
Répteis, anfíbios e insetos ainda a serem estudados completam o quadro da fauna selvagem do Boqueirão, onde está também a maior caverna do Brasil, a Toca da Boa Vista, com 93,7 km de extensão - e alvo de pesquisas científicas.
A flora nativa apresenta grande diversidade - recentemente, 97 novas espécies foram catalogadas. O Boqueirão da Onça é "a última grande área selvagem de todas as caatingas do Nordeste brasileiro", destaca o pesquisador José Alves Siqueira, doutor em biologia vegetal pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e autor do livro Flora das Caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação.
"Pesquisas iniciadas em 2006 apresentam uma flora rica, com mais de 900 espécies de plantas reunidas em 120 famílias botânicas, com espécies endêmicas da Caatinga, ameaçadas de extinção e até novas espécies que serão apresentadas brevemente à comunidade científica e que já se encontram no limiar da extinção", informa.
As discussões sobre a proteção da área com a criação de um parque nacional começaram em 2001. A ideia inicial era proteger um território de cerca de 900 mil hectares, mas interesses econômicos de mineradoras que buscavam as pedras de ametistas da região e empresas de energia eólica provocaram o atraso na definição de como seria o parque.
Em 2017, o Boqueirão da Onça ganhou destaque com a descoberta de uma jazida de ametista que provocou uma corrida com cerca de 20 mil garimpeiros de todo o Brasil. As comunidades locais reclamam de abusos e violência, além da extração de madeira, caça de animais silvestres e furto dos rebanhos.
A definição só veio em 2017, quando se decidiu criar um parque nacional numa parte do bioma e a APA na outra. A diferença crucial entre as duas é que, diferente do parque nacional, na APA pode haver atividades econômicas, desde que respeite as regras do decreto que cria a área de proteção ambiental. A área do garimpo, contudo, ficou de fora das duas áreas.
"Assim, as atividades de energia eólica vão poder continuar sem problemas, e ela também é incentivada por nós por ser uma fonte de energia limpa. A região do Vale do Boqueirão da Onça é uma das que tem mais potencial para a geração desse tipo de energia", diz André Luís Luma, coordenador-geral de Políticas para Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente.
Maior felino das Américas, a onça pintada tem na região um dos principais refúgios em área natural. A espécie já perdeu 55% da área de sua distribuição original e, atualmente, a maior parte de suas subpopulações está ameaçada de extinção. No Brasil, a onça pintada está criticamente ameaçada na Caatinga e na Mata Atlântica.
Projetos também estão sendo desenvolvidos com vistas à proteção animal, com foco nas onças, vítimas criadores de animais da região, sobretudo ovinos e caprinos, fonte de alimento das onças, ao lado de outros mamíferos, como as capivaras.
"Estamos incentivando os produtores a construir currais para guardar os animais à noite, pois os deixam soltos e aí as onças atacam. É difícil elas virem até os currais e atacar durante o dia", diz Rogério Cunha de Paula, coordenador substituto do Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros), ligado ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade).
O Boqueirão também tem papel-chave na segurança hídrica na região. Importantes nascentes localizadas nos planos mais altos irrigam o solo seco do sertão, garantindo condições de vida para comunidades urbanas e rurais.
Algumas dessas nascentes foram incluídas nos limites do futuro parque nacional, cuja criação é esperada também por entidades internacionais de proteção ambiental, como a WWF.
"Hoje, dos 11% restantes da vegetação original da Caatinga, apenas 2% é legalmente protegida. Então, qualquer iniciativa de conservação na Caatinga é bem-vinda", diz Jaime Gesisky, especialista em Políticas Públicas da ONG WWF-Brasil.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Marielle era uma das 32 mulheres negras entre 811 vereadores eleitos em capitais brasileiras

Marielle Franco foi uma das 32 mulheres negras eleitas vereadoras nas capitais brasileiras em 2016. Trinta e duas, ou 3,9%, de um total de 811 vereadores eleitos nas capitais.
Agora são 31. Marielle, quinta vereadora mais votada da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, pelo PSOL, foi assassinada na noite desta quarta, 14.
Marielle foi também a única mulher declarada preta a ser eleita como vereadora do Rio de Janeiro, a quinta mais votada da Câmara Municipal da cidade. Uma mulher autodeclarada parda, Tânia Bastos (PRB), também foi eleita. Eram duas mulheres em um total de 51 vereadores. As classificações "preta" e "parda" são adotadas pelo IBGE, que não utiliza a categoria "negra".
Para especialistas, o assassinato de Marielle representa um revés no combate à subrepresentatividade racial e de gênero na política brasileira e, portanto, dizem, também à democracia.
"Somos menos democráticos quando temos uma representação racial homogênea na política", diz Rosane Borges, pós-doutora em Ciência da Comunicação e professora do Celac (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) da USP, observando que é preciso inserir nos espaços de poder "a pluralidade que é intrínseca à democracia" - e à sociedade brasileira.
As mulheres negras no Brasil correspondem a cerca de um quarto do total da população, segundo dados do IBGE. Mesmo assim, em todas os municípios brasileiros, foram eleitas para câmaras municipais 2.874 mulheres negras -elas não chegam a 5% do total de vereadores, 57,8 mil. Os dados sobre sexo e cor dos vereadores eleitos foram retirados do site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e consideram a cor autodeclarada pelo candidato, informada no pedido de registro à Justiça Eleitoral.
Para Bruna Cristina Jaquetto Pereira, doutora em sociologia pela Universidade de Brasília que estuda a violência contra a mulher negra, "a maior parte dos movimentos de base no Brasil são compostos por mulheres negras". "Tem-se a falsa ideia de que as mulheres negras não participam da política, mas elas são as que lidam diretamente com os problemas estruturais da sociedade brasileira. Elas se mobilizam no nível mais básico, fazendo a política do cotidiano, desde a participação em associações de bairro até a mobilização em grupos contra a violência de jovens negros assassinados, seus filhos."
Mas o problema, aponta, é que, embora façam a política de cotidiano, as mulheres negras não são reconhecidas como parte da política e, por isso, não são alçadas para o lugar de representantes.
Na opinião de Cristiano Rodrigues, professor do departamento de Ciência Política da UFMG que estuda a participação política de negros no Brasil, "Marielle e Áurea Carolina [vereadora do PSOL mais votada para a Câmara de Belo Horizonte], entre outras poucas, são infelizmente a exceção da exceção da exceção".

Importância

Existem duas principais correntes que discutem a representação na política, explica Rodrigues. A primeira fala em "representação substantiva", em que os políticos não necessariamente se "autorepresentam", podendo apresentar ideias que interessam a grupos distintos aos seus.
A segunda corrente, com a qual concorda, diz ele, é a de "representação adscritiva", "de que, na ausência de mulheres ou minorias nas legislaturas, os temas que são importantes para eles acabam sendo votados por um viés não condizente com seus interesses".
O pesquisador cita como exemplo o debate sobre o aborto na Câmara dos Deputados. No fim do ano passado, 18 deputados votaram a favor de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que restringiria o aborto em casos já permitidos pela legislação brasileira. A única mulher presente na comissão, a deputada Erika Kokay (PT-DF), votou contra.
"Mulheres negras na política democratizam seus próprios partidos, apresentando pautas que não foram pensadas anteriormente, que foram invisibilizadas, porque elas não estavam lá. E influenciam na ação política como um todo", afirma Rodrigues.

Causa

Para Rosane Borges, da USP, a incongruência da representatividade feminina negra em relação à demografia brasileira "se explica pelo machismo e pelo preconceito racial".
"Desde as dificuldades que as mulheres têm de financiamento, de apoio da própria legenda - e muitas vezes as mulheres trazem pautas incômodas até para os próprios partidos - até o imaginário que existe sobre quem deve nos representar", diz Borges, dando como exemplo um pensamento recorrente: "'Eu delego o poder a quem eu acho que tem o poder.' E normalmente essa pessoa é o homem branco, rico e hetero."
"Infelizmente, ainda pensamos a representatividade a partir do lugar de poder, de quem pode, em tese, nos ajudar. E uma mulher negra é vista como uma pessoa 'faltante'. Pensa-se: 'O que ela pode fazer por mim, se ela é alguém a quem tudo falta?'"
Rodrigues, da UFMG, diz que há dois elementos que alçam uma candidatura: a capacidade de mobilização financeira e a insersão de atores políticos em famílias políticas. Considerando isso, as mulheres negras enfrentam múltiplos problemas: "Estando na base da população brasileira, recebendo menos que o homem negro, menos que a mulher branca e, por fim, menos que o homem branco, têm dificuldade de mobilização de recursos", diz. Além disso, "os partidos tendem a valorizar e investir mais financeiramente nas candidaturas masculinas." E, ainda, mulheres negras não pertencem a famílias políticas - pelo contrário, representam uma renovação na política.

'Nossa voz incomoda'

"Não é só chegar lá, mas ter condições de permanecer", diz Gabriela Vallim, jovem negra de 23 anos. "Nossa voz incomoda."
Aos 21 anos, Vallim foi coordenadora de Políticas para Juventude da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, durante a gestão Fernando Haddad (PT). Criada em Itaquera, bairro periférico da zona leste de São Paulo, e filha de professora da rede pública que completou o ensino superior depois dos 40 anos, conta que sempre ouviu da mãe: "As coisas sempre vão ser mais difíceis para você porque você é uma mulher negra".
Vallim diz que o sentimento geral entre ela e várias jovens lideranças que conhece, depois que souberam do assassinato de Marielle Franco, é de desesperança. "A luta pela representatividade e inserção nos espaços de poder é muito grande. Fazemos parte de uma população que ficou muito tempo afastada desses ambientes", observa. "Quando começamos a ocupar esses espaços, muitas vezes nos falta preparo técnico - não íamos visitar as empresas dos nossos pais depois da escola, por exemplo. Também nos falta dinheiro."
"Normalmente, não temos opção de voto em gente que se parece com a gente. E é um super trabalho chegar lá. E aí, quando chegarmos lá, podemos morrer?", questiona ela.
Vallim liderou a área de políticas para juventude de São Paulo depois de anos engajada em temas relacionados à educação e segurança de jovens da periferia. Aos 21, representou o Brasil na Conferência Geral da ONU sobre os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável. Quando voltou, foi nomeada para o cargo da prefeitura.
Mas um acontecimento inesperado fez com que ela desistisse de ocupar cargos públicos.
"Eu era uma das únicas da secretaria que moravam na periferia. Fiz um acordo para que pudesse voltar para casa de carro oficial depois de comparecer a eventos e debates que terminassem tarde da noite. Uma noite, disseram que eu não poderia voltar de carro oficial. Chegando em casa, a pé, fui assaltada. Foi traumático. Pensei: 'preciso conseguir cuidar da minha vida para cuidar da vida das outras pessoas'."
Hoje, ela trabalha na iniciativa privada.

Soluções

Para aumentar o número de mulheres negras representantes na democracia brasileira, especialistas sugerem algumas medidas.
Hoje, as coligações são obrigadas a reservar 30% de suas candidaturas a mulheres. Mas isso nem sempre ocorre - e, para cumprir a cota, há casos de "candidatos fantasmas", que não recebem votos nem deles mesmos. Segundo Rodrigues, da UFMG, "90% desses candidatos fantasmas são mulheres".
Uma das propostas discutidas além da cota para candidaturas é a reserva de assentos para mulheres eleitas, não só candidatas. Rodrigues aponta que há regras assim em alguns países da América Latina, como a Bolívia e a Argentina.
Outra é a divisão do financiamento de cada partido de maneira igualitária para todos os candidatos.
Uma terceira via é o voto em lista fechada (proposta em que o eleitor vota na legenda e o total de votos é distribuído aos candidatos na ordem da lista) que tenha alternância de gênero. Assim, explica Rodrigues, "se um partido consegue coeficiente eleitoral que lhe permita eleger quatro candidatos, dois serão homens e duas serão mulheres". Para contemplar mulheres e homens negros, essa ideia também propõe que o número de candidatos negros seja proporcional à população negra da localidade.
Apesar da baixa representatividade das mulheres negras nos espaços de poder no Brasil, Rosane Borges, da USP, defende que o país tem melhorado no quesito, embora sempre com tensões. "Temos muitas conquistas e avanços. Mas esses avanços são acompanhados por retrocessos, confisco de direitos. Não é um caminho linear, evolutivo, progressivo", diz.
Para Bruna Pereira, da UNB, "ter representação de minorias aumenta a qualidade da democracia". "As pessoas negras não querem mais ser representadas pelos brancos. Queremos nós mesmos representar."

segunda-feira, 5 de março de 2018

Único inscrito, Alckmin vira pré-candidato à presidência

O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, foi o único inscrito nas prévias que definiriam o candidato do PSDB à Presidência da República e, dessa forma, a consulta interna não será realizada e o governador torna-se oficialmente o pré-candidato tucano ao Palácio do Planalto na eleição de outubro.
Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, em evento do Partido da Social Democracia do Brasil (PSDB) em Brasília, Brasil
09/12/2017
 REUTERS/Adriano Machado
Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, em evento do Partido da Social Democracia do Brasil (PSDB) em Brasília, Brasil 09/12/2017 REUTERS/Adriano Machado
Foto: Reuters
De acordo com o presidente da comissão responsável pelas prévias do partido, deputado Marcus Pestana (MG), Alckmin, que também ocupa o cargo de presidente nacional do PSDB, se inscreveu com o apoio de 40 dos 46 deputados tucanos e de 10 dos 11 senadores da legenda. O apoio exigido para participação no processo interno era de 20 por cento das bancadas de deputados e senadores.
Publicidade
"Agora então nós vamos operacionalizar, queimada esta etapa. Vamos reunir a Executiva no dia 13 para já traçar um plano de trabalho e uma estratégia para a pré-candidatura", disse Pestana, que também é secretário-geral do PSDB, à Reuters por telefone.
"Durante março, ele (Alckmin) ainda estará focado em ser o melhor governador possível, consolidando o balanço de suas realizações, fazendo inaugurações. A partir de abril, aí sim, é começar a viajar os Estados", acrescentou, se referindo ao prazo de desincompatibilização para poder disputar a eleição, no início de abril.
A oficialização de Alckmin como candidato do partido terá que esperar, no entanto, até pelo menos 20 de julho, quando começa o período previsto na legislação para as convenções que definiram os nomes que disputarão o Planalto.
Além de Alckmin, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, havia anunciado intenção de disputar as prévias tucanas, mas no último dia 23 anunciou que não participaria, por discordar do formato das prévias, especialmente da previsão de apenas um debate entre os postulantes à candidatura.
Ao anunciar que não participaria das prévias, Virgílio classificou o processo interno de "fraude" e disparou contra Alckmin, afirmando não respeitar mais o governador e dizendo sentir incompatibilidade com a ideia de votar no correligionário na eleição de outubro. Alckmin respondeu afirmando que o prefeito havia sido injusto com ele e com a legenda.
Alckmin, de 65 anos, está no quarto mandato como governador de São Paulo, deverá disputar a Presidência da República pela segunda vez. Em 2006 chegou ao segundo turno, mas foi derrotado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Além do governo do Estado, Alckmin, que é um dos fundadores do PSDB, foi vereador e prefeito de Pindamonhangaba, sua cidade natal. Foi também deputado estadual e federal por São Paulo antes de ser eleito vice-governador na chapa encabeçada por Mario Covas, em 1994 e 1998. Assumiu o governo paulista em 2001 com a morte de Covas e foi reconduzido ao cargo na eleição de 2002.
Após a derrota eleitoral de 2006, perdeu a disputa pela prefeitura de São Paulo dois anos depois, antes de se eleger governador mais duas vezes, em 2010 e 2014.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Intervenção no Rio: Procuradoria diz que mandado coletivo pressupõe que moradores de bairros pobres são 'naturalmente perigosos'

Na última segunda-feira, o decreto da intervenção federal na segurança pública do Rio rendeu uma vitória política muito importante ao Palácio do Planalto. Foram 340 votos favoráveis na Câmara dos Deputados - até deputados de partidos de oposição, como PDT, PSB e Rede, apoiaram a proposta. E na noite desta terça, o Senado aprovou definitivamente a medida.
Mas há um lugar a poucos metros do Congresso no qual a iniciativa de Michel Temer (MDB) não foi tão bem recebida: a Procuradoria-Geral da República (PGR).
No começo da noite desta terça-feira, a procuradora Deborah Duprat distribuiu aos colegas um texto no qual faz críticas duras ao decreto, anunciado pelo governo na última sexta-feira. Ela é a chefe da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
A peça é uma "nota técnica conjunta", assinada por Duprat e mais três procuradores, incluindo a coordenadora da 2ª Câmara do Ministério Público Federal (que trata da área criminal), Luiza Cristina Fonseca Frischeisen.
Quatro pontos chamaram a atenção dos procuradores, mas as críticas mais duras foram ao ministro da Defesa, Raul Jungmann. No começo da semana, ele defendeu o uso de mandados de busca e apreensão "genéricos", isto é, destinados a várias casas em uma mesma rua, bairro ou favela.
"Na realidade urbanística do Rio de Janeiro, você muitas vezes sai com uma busca e apreensão numa casa, numa comunidade, e o bandido se desloca. Então, você precisa ter algo que é exatamente o mandado de busca e apreensão e captura coletiva, que já foi feito em outras ocasiões. Ele precisa voltar para uma melhor eficácia do trabalho a ser desenvolvido tanto pelos militares como pelas polícias", disse.
Para a chefe da Procuradoria dos Direitos do Cidadão, porém, o procedimento é "ilegal".
"Mandados em branco, conferindo salvo conduto para prender, apreender e ingressar em domicílios, atentam contra inúmeras garantias individuais, tais como a proibição de violação da intimidade, do domicílio", diz o texto.
Segundo os procuradores signatários da nota, os mandados contra os moradores de bairros e comunidades seriam uma medida discriminatória. A ideia de um mandado de busca coletivo, diz eles, "faz supor que há uma categoria de sujeitos 'naturalmente' perigosos e/ou suspeitos, em razão de sua condição econômica e do lugar onde moram".
Além disso, algumas autoridades teriam defendido violações aos direitos humanos em entrevistas à imprensa, dizem os procuradores. Acesse a íntegra da nota aqui.
"Os signatários desta nota técnica não a podem concluir sem manifestar sua perplexidade com as declarações atribuídas ao Comandante do Exército (general Eduardo Villas Bôas), no sentido de que aos militares deveria ser dada 'garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade', e ao ministro da Justiça (Torquato Jardim), o qual, em entrevista ao jornal Correio Braziliense, fez uso da expressão 'guerra'", diz o texto.
"Guerra se declara ao inimigo externo. No âmbito interno, o Estado não tem amigos ou inimigos. Combate o crime dentro dos marcos constitucionais e legais que lhe são impostos", conclui.
O decreto de intervenção federal está em vigor desde que foi assinado, na sexta-feira passada. A medida significa que o controle da segurança pública no Rio passa a ser do general do Exército Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste.
A intervenção federal está prevista para durar até o dia 31 de dezembro deste ano. Polícia Militar, Civil, Bombeiros e administração dos presídios estão sob controle de Netto.

Suavização

Nesta terça, o ministro Torquato Jardim (Justiça) suavizou as declarações de Raul Jungmann sobre a necessidade de mandados de busca coletivos.
Segundo ele, pode ser que algumas operações precisem de buscas em vários locais, mas não de forma indiscriminada.
"Não há mandado coletivo. Há mandado de busca e apreensão, que conforme a operação, se dedicará a um número maior de pessoas", disse Jardim.
"O mandado de busca não pode ser genérico, isso a Constituição não permite (...). Portanto, esses mandados de busca e apreensão conterão um número maior ou menor de pessoas em razão do objetivo do inquérito que estará sendo realizado", disse ele.
A reportagem da BBC Brasil falou com a assessoria de imprensa de Raul Jungmann na noite desta terça-feira, mas não foi possível obter comentários do ministro.
O titular da Defesa deve abordar o assunto novamente nesta quarta-feira, após um evento marcado para as 14h30, em Brasília.

Outras preocupações

Além dos mandados genéricos, há outros três pontos da intervenção que são apontados como motivo de preocupação pelos procuradores signatários da nota técnica:
- O decreto não especifica quais ações serão tomadas, e fixa um prazo longo demais. A Constituição, dizem os procuradores, manda que intervenções deste tipo sejam feitas com "amplitude, prazo e condições" já definidas no decreto. A peça feita pelo Planalto "não cumpre com essa exigência". A proposta trataria de "competências genéricas" do general Braga Netto, sem detalhar "as providências específicas que serão adotadas".
- O texto aprovado no Congresso diz que Braga Netto "não está sujeito" às leis estaduais do Rio que entrarem em conflito com o cumprimento dos objetivos da intervenção. Para Duprat e seus colegas, Braga Netto precisa cumprir também as leis locais, integralmente, de modo a respeitar o Poder Legislativo do Rio e a separação de Poderes. A "imunidade" às leis estaduais "violenta um dos pilares do regime democrático e abre grave precedente", dizem os procuradores.
- Para os procuradores, o general Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste, atuará como um interventor civil, e seus atos devem ser julgados (se for o caso) pela Justiça comum, não pela Justiça Militar. A própria intervenção deve ser considerada civil, e não militar. "Qualquer interpretação que tente vincular o exercício da função de interventor com o desempenho de função estritamente militar será inconstitucional", diz a nota técnica.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão é o braço do Ministério Público que existe para representar os cidadãos frente aos órgãos públicos, protegendo direitos individuais e também aqueles chamados de "direitos coletivos" e "difusos", isto é, que dizem respeito a grande número de pessoas.
Deborah Duprat foi nomeada para a chefia do órgão por Rodrigo Janot, antecessor de Raquel Dodge no comando do Ministério Público Federal. Ela foi também vice-procuradora-geral na gestão de Roberto Gurgel (2009-2013).
A reportagem da BBC procurou Duprat por meio da assessoria de imprensa na noite desta terça-feira, mas não conseguiu contato com ela.

Tiroteio

A peça assinada por Duprat é a primeira manifestação oficial do Ministério Público Federal sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro. Mas desde que o tema começou a ser discutido, vários procuradores já fizeram críticas à iniciativa do Palácio do Planalto nas redes sociais.
"Se essa autorização (dos mandados de busca) for dada, será bom usá-la também em buscas coletivas nas avenidas Paulista e Luís Carlos Berrini, em SP, na avenida Vieira Souto, no Rio, e no Lago Sul, em Brasília. Afinal, a lei é para todos", escreveu o procurador Wellington Saraiva no Twitter, citando endereços nobres de Rio, São Paulo e Brasília.
"Imaginem um mandado de busca e apreensão genérico no setor de mansões em Brasília para combater a corrupção. Não dura duas horas antes do STF (Supremo Tribunal Federal) cassar. Se não vale para os ricos, não vale para os pobres", argumentou um procurador da Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima, no Facebook.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Governo britânico exige explicações da Oxfam sobre escândalo sexual no Haiti

Funcionários da ONG teriam contratado prostitutas no Haiti em 2011, durante uma missão humanitária.O governo britânico se reunirá nesta segunda-feira com autoridades da Oxfam, após acusações de que funcionários da ONG contrataram prostitutas no Haiti em 2011, durante uma missão humanitária após o terremoto que assolou aquele país em 2010.
A secretária britânica de Estado de Desenvolvimento Internacional, Penny Mordaunt, anunciou que irá se encontrar amanhã com representantes da ONG. "Se não transmitirem todas as informações sobre o caso, não trabalharei mais com eles", advertiu neste domingo, em entrevista à rede BBC.
Segundo seu presidente, a Oxfam recebe "menos de 10% de seu financiamento total" da agência britânica.
Para Mordaunt, a Oxfam, "definitivamente, tomou a má decisão" de omitir os detalhes sobre a natureza destas acusações das autoridades e da Comissão de Caridade, instituição que controla as ONGs. 
A Oxfam, uma confederação de organizações humanitárias com sede na Grã-Bretanha, emprega cerca de 5 mil trabalhadores e conta com mais de 23 mil voluntários, e afirma ter investigado o caso logo após as primeiras denúncias, em 2011. Quatro funcionários foram expulsos e outros três pediram demissão antes do fim da investigação, informou a ONG, condenando o comportamento dos funcionários envolvidos.
Orgia
A Comissão de Caridade vai se reunir esta semana com Mordaunt e solicitou à Oxfam que lhe entregue urgentemente novas informações sobre o escândalo do Haiti.
A comissão indicou ter recebido um relatório da Oxfam, em agosto de 2011, mencionando "comportamentos sexuais inadequados, intimidações, assédio", mas sem falar em "abusos contra beneficiários" da ONG, nem em "crimes em potencial envolvendo menores".
O jornal britânico "The Times" informou que um diretor da Oxfam contratou prostitutas durante uma missão de ajuda humanitária após o terremoto que devastou o Haiti em 2010 e deixou 300 mil mortos.
Os fatos revelados pelo Times são "realmente chocantes", segundo Downing Street (residência da chefe de governo do Reino Unido), que demanda "uma investigação completa e urgente sobre estas acusações, tão graves".
Segundo as últimas revelações publicadas pelo "Sunday Times", mais de 120 funcionários de importantes ONGs britânicas foram acusados de abuso sexual no último ano. No Haiti, grupos de prostitutas eram convidadas a casas e hotéis pagos pela Oxfam. Uma fonte citada pelo jornal afirma ter assistido a um vídeo que mostrava uma orgia com prostitutas que vestiam camisetas da Oxfam.
'Temos vergonha'
Em um comunicado divulgado neste domingo, a nova presidente do Conselho Administrativo da Oxfam, Caroline Thomson, anunciou uma série de medidas para reforçar a prevenção e a gestão dos casos de abusos sexuais.
"Temos vergonha do que aconteceu. Pedimos desculpas", declarou Thomson, assegurando que a organização fez "importantes progressos" desde 2011.
O presidente da Oxfam, Mark Goldring, disse no sábado à BBC Rádio 4 que, vendo agora, "preferiria que tivéssemos citado o mau comportamento de natureza sexual, mas acho que ninguém se interessou em descrever os detalhes deste comportamento, porque chamaria muita atenção para o assunto", indicou.
Segundo a investigação do The Times, a Oxfam também é suspeita de não ter alertado outras ONGs sobre o comportamento dos envolvidos no escândalo, o que permitiu que estes funcionários se transferissem para outras missões a cargo de pessoas vulneráveis em diferentes áreas de desastre.
Desta maneira, o diretor da Oxfam no Haiti, Roland van Hauwermeiren, renunciou sem nenhuma ação disciplinar, apesar de ter admitido que contratou prostitutas. Depois, tornou-se chefe da missão da ONG francesa Ação Contra a Fome (ACF) em Bangladesh entre 2012 e 2014.
A ACF contatou a Oxfam antes de empregar Roland van Hauwermeiren, mas a ONG não lhe indicou as razões de sua renúncia, declarou à AFP Mathieu Fortoul, porta-voz da organização. "Além disso, recebemos referências positivas de ex-colegas da Oxfam - a título pessoal - que trabalharam com ele, acrescentou.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Biólogo brasileiro aposta em medicamento contra hepatite C para curar o Zika vírus

Enquanto cientistas e empresas farmacêuticas corriam contra o tempo para criar, do zero, uma vacina contra o Zika vírus, o biólogo Alysson Muotri estava olhando para o outro lado.
A hipótese dele era de que remédios que já estão no mercado e são usados contra outras doenças poderiam também ser efetivos contra o Zika vírus, que causou alterações neurológicas em mais de 3 mil crianças no Brasil entre 2015 e 2017.
As evidências científicas apontam para a possibilidade de Muotri ter acertado em sua aposta. Em estudo publicado em janeiro na revista Scientific Reports, do prestigioso grupo Nature, a equipe de Muotri diz que o remédio Sofosbuvir, usado no tratamento de hepatite C, pode curar a infecção por Zika e impedir também a transmissão do vírus da mãe para o bebê durante a gravidez.
A pesquisa se dividiu entre a Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, onde Muotri coordena o Programa de Células-tronco, e o Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Em ambos os laboratórios, os pesquisadores testaram o medicamento primeiro em minicérebros - estruturas obtidas a partir de células-tronco que emulam o funcionamento do cérebro - e, em seguida, em camundongos. Em ambos os casos, a taxa de sucesso foi de 100%, segundo o biólogo.
"Os minicérebros infectados com Zika responderam imediatamente ao Sofosbuvir. Nas primeiras 24 horas, as células pararam de morrer e voltaram a crescer novamente", disse Muotri à BBC Brasil.
"Nos camundongos, a doença mata. Mas conseguimos que eles se recuperassem do estado terminal. E nas fêmeas, impedimos que o vírus chegasse até os fetos. Agora, estamos preparando os testes em humanos."
Nos próximos três meses, a equipe deve testar o medicamento em pacientes de Zika no Equador, que enfrenta um surto da doença.
De acordo com o Ministério da Saúde brasileiro, desde outubro de 2015 até dezembro de 2017 foram confirmados 3.037 casos suspeitos de bebês com alterações no crescimento e desenvolvimento possivelmente relacionadas à infecção pelo Zika. Outros 2.903 continuam sob investigação.
A pasta afirmou que foram registrados 17.452 casos prováveis de zika em todo país em 2017 - uma queda de 92% em relação a 2016.
Mas especialistas ainda temem que um novo surto do vírus possa ocorrer, após a descoberta de que o vírus ataca cerca de 49% de uma população no primeiro contato - inicialmente se pensava que a taxa era de 80%.
Na prática, isso significa que ao menos metade da população brasileira ainda não foi exposta ao vírus e, portanto, não está imune.
O Levantamento Rápido de Índices de Infestação pelo mosquito Aedes aegypti divulgado pelo Ministério da Saúde em novembro de 2017 indicou que 409 municípios brasileiros estão em situação de risco de surto de dengue, zika e chikungunya.
No mundo, mais de 70 países registraram a doença e pelo menos 26 apresentaram casos de Síndrome congênita do Zika em crianças.
  • De obesidade a AVC, os problemas de saúde relacionados a noites mal dormidas

    Cérebros em laboratório

    A tecnologia dos minicérebros foi desenvolvida em 2013 por cientistas do Instituto de Biotecnologia Molecular da Academia de Ciências Austríaca, e tem sido usada desde 2015 para estudar os efeitos do Zika no desenvolvimento do cérebro dos bebês afetados.
    Os cientistas usaram células-tronco embrionárias para reproduzir, em laboratório, tecidos que se desenvolvem como o cérebro humano em um embrião.
    As estruturas criadas, que são do tamanho de ervilhas, chegam a alcançar o mesmo nível de desenvolvimento de um feto de nove meses, mas são incapazes de pensar e realizar outras funções do órgão.
    "A tecnologia avançou bastante, mas ainda é um modelo simplificado, cultivado in vitro. Conseguimos ver como as células se desenvolvem e se organizam", explica Muotri.
    Em 2016, pesquisadores do Instituto D'Or, no Rio de Janeiro, demonstraram que o Zika vírus devasta as células-tronco cerebrais e causa uma redução drástica no crescimento do córtex, a camada externa do cérebro.
    Para conferir a possibilidade de utilizar, em caráter urgente, drogas já existentes contra o Zika, a equipe de Muotri analisou em computador o genoma do Zika comparado ao de outros vírus mais conhecidos, para buscar semelhanças.
    "Percebemos semelhanças com o vírus da Hepatite C e, por isso, começamos a olhar para esses medicamentos. Encontramos o Sufosbuvir, que atua na RNA polimerase - a enzima que o vírus usa para se replicar", diz.
    "Então a droga impede que o vírus se espalhe no organismo. A partir daí, começamos os testes nos minicérebros."

    Bebês camundongos a salvo

    O passo seguinte foi testar o medicamento em camundongos infectados pelo vírus - com especial atenção às fêmeas grávidas.
    "Quando você testa a droga nos minicérebros, vê o efeito do vírus diretamente no tecido cerebral de um feto. Mas quando ele está no ambiente intrauterino, quem toma o medicamento é a mãe. A substância tem que passar pelo metabolismo da mãe e ser processada para chegar até o feto. Por isso esses testes são cruciais", explica Muotri.
    Os pequenos camundongos, segundo ele, foram monitorados do nascimento até a fase adulta - período de cerca de quatro semanas - com uma tecnologia sensível, "que detectaria até mesmo uma partícula do vírus em suas células".
    Mas nada foi encontrado.
    Diferentemente de um medicamento completamente novo, que ainda precisaria passar por um modelo de testes com primatas antes de chegar aos testes com humanos, o Sofosbuvir pode passar diretamente para a última fase - o que aceleraria a chegada dele aos pacientes com Zika vírus. Isso porque o medicamento já é aprovado para o uso contra a hepatite C.

    Quebra de patente

    No Brasil, o tratamento com Sofosbuvir é oferecido no SUS e custa, por paciente, cerca de R$ 13 mil ao Ministério da Saúde, segundo a empresa americana Gilead Sciences, a fabricante do medicamento.
    Em março de 2017, no entanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se posicionou contra o pedido de patente do medicamento feito pela empresa.
    A decisão final sobre a patente do medicamento ainda tem que ser tomada pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Mas caso a empresa não receba a propriedade intelectual da fórmula, a produção de genéricos estará liberada.
    Nesse caso, o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) poderia produzir o medicamento nacionalmente.
    "Acabamos de concluir o estudo de bioequivalência, que é necessário para comprovar que um medicamento genérico tem o mesmo perfil de ação e eficácia do que o medicamento da empresa. Fizemos esses estudos em pacientes internados e tivemos resultados positivos", disse à BBC Brasil o presidente do Instituto, Jorge Mendonça.
    "Agora, vamos esperar a decisão do INPI para entrar com o processo de registro do genérico junto à Anvisa."
    A fabricação do Sofosbuvir no Brasil pode fazer com que o preço do tratamento para o Ministério da Saúde caia pelo menos 50%, segundo Mendonça. A expectativa é que no segundo semestre, o genérico possa ser distribuído pelo SUS.
    Pesquisadores da Fiocruz também investigavam o possível uso do medicamento contra o Zika vírus e, em agosto de 2017, publicaram na mesma Science Reports um estudo sobre o sucesso do Sofosbuvir em tratar camundongos infectados.
    O estudo de Alysson Muotri, no entanto, vai além e comprova, de acordo com ele, o bloqueio da transmissão da mãe para o feto.
    Mas mesmo com a possível produção de um genérico brasileiro do Sofosbuvir, Jorge Mendonça esclarece que ainda é necessária a comprovação de que a substância é eficiente contra o Zika em humanos antes de conseguir distribuir a droga para esse fim. Inicialmente, ela continuaria sendo fornecida apenas para tratar a Hepatite C.
    Para ele, no entanto, a possibilidade é animadora. "Em termos de saúde pública, seria uma revolução", afirma.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Rio: ação da polícia deixa 3 mortos na favela do Jacarezinho

Uma ação da Polícia Civil deixou três mortos na comunidade do Jacarezinho, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, na manhã de hoje (30). Segundo a assessoria de imprensa da Polícia Civil, eles foram baleados em confronto com os agentes e chegaram a ser levados para o hospital, mas não resistiram aos ferimentos.
Polícia civil realiza uma grande operação na comunidade do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro.
Polícia civil realiza uma grande operação na comunidade do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro.
Foto: José Lucena/Futura Press
Cerca de 300 agentes de várias delegacias fazem nesta terça-feira uma ação no Jacarezinho, com o objetivo de cumprir mandados de prisão contra integrantes da quadrilha que controla a venda de drogas na comunidade, inclusive os suspeitos de matar o delegado Fábio Monteiro e o agente Bruno Guimarães Buhler.
Até o início da tarde de hoje, 12 pessoas tinham sido presas na ação. O delegado Fábio Monteiro foi assassinado na comunidade em 12 de janeiro deste ano, enquanto o agente Bruno Buhler morreu durante uma ação policial em agosto do ano passado.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

PF e Ministério Público fazem operação contra fraudes em obras no Rio

A Operação Mãos à Obra é um desdobramento da Rio 40 Graus, que revelou esquema de propina na Secretaria Municipal de Obras.
Policiais federais (PF) e integrantes do Ministério Público Federal (MPF) cumprem nesta terça-feira(23) seis mandados de prisão e 18 de busca e apreensão contra suspeitos de fraudes em obras no Rio de Janeiro. A Justiça decretou a prisão preventiva do ex-secretário municipal de Obras Alexandre Pinto, do ex-subsecretário Vagner de Castro Pereira e do doleiro Juan Luis Bertran Bitllonch.
Os outros três mandados de prisão são temporários. Os agentes também cumprem seis intimações para depoimento na delegacia.
A Operação Mãos à Obra é um desdobramento da Rio 40 Graus, que revelou esquema de propina na Secretaria Municipal de Obras em outubro do ano passado.
A Mãos à Obra identificou a cobrança de propina em seis obras municipais: na restauração da linha Vermelha; no programa Asfalto Liso; entorno do Maracanã; BRT Transoeste; BRT na Transcarioca; e BRT Transbrasil.
Segundo o MPF, parte dos recursos obtidos por Alexandre Pinto foi remetida ao exterior por meio de empresas offshore operadas por terceiros e com recursos à disposição do ex-secretário. Juan Bertran teria sido o responsável por realizar as operações de dólar que abasteceram a conta da Centovali, offshore que concentrava os recursos de Alexandre.
Vagner de Castro Pereira também teve importante papel no esquema, de acordo com o MPF. Os pagamentos do Consórcio Dynatest-TCDI, responsável pelas atividades de monitoramento dos contratos de obras e serviços relacionados à implantação do Transbrasil, corredor exclusivo de BRT que liga o centro da cidade do Rio de Janeiro ao bairro de Deodoro, eram feitos diretamente ao subsecretário.
“As investigações revelaram que o consórcio foi formado por indicação de Alexandre Pinto, que solicitou a inclusão da TCDI, de propriedade de Wanderley Tavares da Silva, que por sua vez auxiliava na liberação de recursos do Ministério das Cidades para o município do Rio de Janeiro. Com isso, a Dynatest tinha participação de 80% no contrato e a TCDI de 20%”, diz nota do MPF.
Ainda de acordo com o Ministério Público, o esquema contava com a participação dos fiscais que supervisionavam, que cobravam cerca de 3% do valor total. Com isso, estima-se que apenas na prestação de serviço de monitoramento das obras do Transbrasil tenham sido pagos R$ 1,8 milhão, sendo R$ 1 milhão recebidos por Vagner de Castro em nome de Alexandre Pinto e R$ 392,5 mil pelos fiscais.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

'Não coloco Lula e Bolsonaro no mesmo patamar', diz cientista político da Fundação FHC

Em entrevista à BBC Brasil, Sérgio Fausto reconhece que desgaste trazido pelo Lava Jato está afetando desempenho do PSDB nas pesquisas de voto para o Planalto.

O cientista político Sérgio Fausto, superintendente-executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, disse à BBC Brasil que não coloca o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o deputado federal Jair Bolsonaro no mesmo patamar.
Em artigo, Sérgio Fausto argumentou que Lula e Bolsonaro apresentam 'falsas narrativas' como estratégia eleitoral | Fotos: AFP/Reuters
Em artigo, Sérgio Fausto argumentou que Lula e Bolsonaro apresentam 'falsas narrativas' como estratégia eleitoral | Fotos: AFP/Reuters
Foto: BBCBrasil.com
Algumas lideranças do PSDB têm situado Lula e Bolsonaro no mesmo nível de radicalismo. Empurrar os adversários para os polos poderia ser uma estratégia eleitoral eficiente para colocar o candidato tucano como opção de centro na disputa presidencial de 2018 - o provável candidato do partido é o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
"Posso te dizer por mim: eu não coloco Lula e Bolsonaro no mesmo patamar. O Bolsonaro é um sujeito que ultrapassa todos os limites da convivência democrática equilibrada", afirmou.
A vítima de febre amarela que foi diagnosticada com sinusite, infecção urinária e enxaqueca
À BBC Brasil, Fausto disse ainda que as acusações contra Lula "são muito robustas", e que não há motivo para se "insurgir contra a decisão do Judiciário" se ele for condenado em segunda instância e ficar impedido de concorrer pela Lei da Ficha Limpa. O julgamento de Lula no caso tríplex do Guarujá está marcado para dia 24. "São as regras do jogo às quais todos os brasileiros estão submetidos", argumentou.
Fausto e Fernando Henrique (no segundo plano da foto) têm defendido união do centro como alternativa a discursos políticos extremados | Foto: Divulgação/Fundação FHC
Fausto e Fernando Henrique (no segundo plano da foto) têm defendido união do centro como alternativa a discursos políticos extremados | Foto: Divulgação/Fundação FHC
Foto: BBCBrasil.com
Já no caso do senador Aécio Neves, gravado pedindo R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista, Fausto defendeu seu direito de se candidatar pelo PSDB, já que não há condenação contra ele. Por ter foro privilegiado, o caso de Neves está no Supremo. "Cabe ao eleitor de Minas fazer o seu julgamento eleitoral", disse.
O superintendente da Fundação FHC também afirmou ver "todas as qualidades" para que Alckmin se fortaleça e seja um candidato de centro competitivo.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - O PSDB perdeu as últimas quatro eleições presidenciais e chega em 2018 atrás nas pesquisas. Por que o partido não empolga o eleitorado?
Sérgio Fausto - Acho que o PSDB terminou a eleição de 2014 derrotado eleitoralmente, mas politicamente vitorioso. Perdeu por pouco e saiu da eleição com um capital político grande. O partido perdeu grande parte desse capital político ao longo desses anos.
A primeira razão, acho que acima de tudo, está o fato de que a Lava Jato atingiu alguns quadros importantes do partido. Dado que o PSDB fazia do tema da corrupção uma marca distintiva em relação ao PT, na medida em que o PSDB se vê atingido pela Lava Jato, ainda que numa extensão e numa profundidade menores do que o PT, isso tem um impacto muito importante sobre o partido.
Agravado pelo fato de que, no caso mais recente do senador Aécio Neves, o partido não soube responder a esse problema segundo as expectativas dos seus próprios eleitores. Isso de alguma maneira prejudicou a imagem que contrastava com o PT no plano da ética. Acho que isso é o fator principal.
Um outro fator importante é que o partido tem mostrado uma oscilação muito grande, uma dificuldade de votar em bloco em questões que chamam a atenção da opinião pública. O partido muitas vezes se dividiu e incorreu em contradições com medidas adotadas pelo governo do presidente Fernando Henrique. Então, existe uma certa incongruência entre o que o partido diz e o que o partido faz.
Esse conjunto de fatores: o fato de ter sido atingido pela Lava Jato e o fato de ter se dividido em relação à agenda de reformas, às acusações do presidente (Michel) Temer, isso custou ao PSDB uma parte muito importante do capital político que o partido conseguiu amealhar no processo eleitoral de 2014.
BBC Brasil - Fala-se que Aécio Neves estaria decidindo entre concorrer à reeleição como senador ou se lançar para deputado federal. O PSDB permitir sua candidatura não expressaria tolerância com a conduta que ele adotou?
Sérgio Fausto - Acho que não. Minha opinião estritamente pessoal: acho que o partido errou ao não destituí-lo da presidência do partido, cargo de direção. Tardou ao (inicialmente) afastá-lo apenas.
Agora, impedi-lo de concorrer sem que a Justiça tenha se pronunciado, não há sequer condenação em primeira instância, acho que seria um excesso. Cabe ao eleitor de Minas fazer o seu julgamento eleitoral.
BBC Brasil - Ele tem o foro privilegiado, então não tem como ter uma decisão de primeira instância.
Sérgio Fausto - É verdade, bem lembrado.
Para Fausto, eleitor de Minas deverá fazer seu próprio 'julgamento eleitoral' diante de uma eventual candidatura de Aécio Neves em 2018
Para Fausto, eleitor de Minas deverá fazer seu próprio 'julgamento eleitoral' diante de uma eventual candidatura de Aécio Neves em 2018
Foto: Reuters / BBCBrasil.com
BBC Brasil - Voltando à discussão sobre por que o PSDB não está empolgando o eleitorado. A bancada de deputados federais, por exemplo, tem poucas mulheres e nenhum negro. Fica uma imagem de partido de elite?
Sérgio Fausto - Eu acho que falta ao PSDB refletir a diversidade da população brasileira. Embora exista dentro do partido o movimento de mulheres, o movimento negro, na parte mais visível do partido, que é sua representação parlamentar, chama atenção o fato de que predominam homens brancos.
Isto faz com que a pecha de elitista grude mais facilmente no partido. É bom lembrar que é uma pecha que o PT utilizou para estigmatizar o partido, não foi uma pecha que caiu do céu. Agora, de fato, o partido é vulnerável a esse estigma.
BBC Brasil - Alckmin tem uma base forte em São Paulo, maior colégio eleitoral do país, mas para alguns analistas sua falta de carisma dificulta que cresça no Nordeste, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Concorda?
Sérgio Fausto - Carisma é uma coisa difícil de ser medida. Quem você pode dizer que é um líder carismático hoje na política brasileira? Só tem um, é o Lula. Nós não sabemos se ele disputará a eleição ou não.
Não acho que esse seja um fator decisivo num processo eleitoral. Alckmin tem condições de criar uma conexão com o eleitorado brasileiro porque ele responde bem algumas demandas que são do eleitorado do Brasil no seu conjunto. Há uma demanda primeiro por simplicidade, por líderes que tenham uma vida de não ostentação. Ele responde a essa demanda.
Outra demanda é que tenham uma gestão à frente do governo. Ele está no governo há muitíssimos anos. Você pode discordar disso ou daquilo, mas é uma gestão, contrastada com a média brasileira, extraordinariamente responsável do ponto de vista financeiro.
Em um momento de grande polarização do Brasil, há uma demanda por uma liderança tranquila. É um sujeito sereno, não é sectário, consegue ter diálogo da esquerda à direita. Eu acho que ele reúne uma série de qualidade que falta ao Brasil hoje.
BBC Brasil - Se Alckmin não se mostrar um competidor forte, talvez seja melhor o PSDB apoiar outro candidato, como sugeriu o ex-presidente Fernando Henrique?
Sérgio Fausto - Eu acho que é importante o centro político ter um candidato competitivo. O PSDB não oficializou, mas tem um candidato. Eu vejo todas as qualidades, as possibilidades, para que o governador de São Paulo se fortaleça, ocupe esse espaço.
Política é também compromisso com aquilo que um certo conjunto de forças definiu. Então, não acho que deve fazer parte do horizonte de quem respalda a candidatura do Alckmin cogitar outras opções e nem cobrar da candidatura que em três meses ela esteja com força nas pesquisas, porque esse período pré-eleitoral é um período que para todos os candidatos será difícil se movimentar com força nas pesquisas.
Para cientista político, PSDB foi derrotado eleitoralmente em 2014, mas saiu politicamente vitorioso | Foto: Divulgação/Fundação FHC
Para cientista político, PSDB foi derrotado eleitoralmente em 2014, mas saiu politicamente vitorioso | Foto: Divulgação/Fundação FHC
Foto: BBCBrasil.com
BBC Brasil - Em artigo recente, Fernando Henrique fala em unir Alckmin, Marina Silva, Henrique Meirelles, Joaquim Barbosa. Acha isso viável? Como se daria essa união?
Sérgio Fausto - Primeiro, eu não quero me colocar aqui na posição de intérprete do presidente. Ele fala por si próprio.
Eu acho que essa declaração que ele faz se dirige mais aos eleitores desses (possíveis) candidatos. O processo eleitoral vai filtrar de alguma maneira essa oferta. Não vamos entrar em agosto com muitos candidatos ocupando a posição de centro. Acho que o eleitor tenderá a convergir em torno do candidato de centro que avaliar que melhor responde as suas expectativas e que tem melhores chances de passar ao segundo turno e vencer a eleição.
Diante de um quadro desse, se o eleitor não produzir essa convergência nítida, acho que as lideranças dos partidos de centro devem ter a maturidade de evitar a situação que por exemplo se produziu no Rio de Janeiro em 2016: três candidatos de centro se canibalizaram e passaram ao segundo turno o candidato da direita e o candidato da esquerda. Acho que repetir esse erro seria trágico.
BBC Brasil - É melhor para a democracia que Lula possa concorrer?
Sérgio Fausto - Em tese, eu acho que seria melhor para o país que Lula disputasse e perdesse. Agora, nós vivemos num Estado democrático de Direito. Existem leis, existe o sistema Judiciário, existem processos. Se o Lula for condenado, me parece inteiramente descabido dizer que existe um complô judiciário para inviabilizar sua participação na eleição.
As acusações contra ele são muito robustas, muito graves. Não é apenas uma. É um conjunto de acusações. Elas têm tramitado segundo o devido processo legal. Portanto, se ele for condenado, se houver infração da lei que o tornaria inelegível, segundo a lei de inelegibilidade modificada por uma emenda popular que foi a lei da Ficha Limpa, eu não vejo nenhuma razão para se insurgir contra essa decisão do Judiciário. Essas são as regras do jogo às quais todos os brasileiros estão submetidos.
BBC Brasil - Se ele não concorrer, haverá o risco de parte da população, que deseja votar nele, ficar descrente da legitimidade da eleição?
Sérgio Fausto - Esse risco existe, mas, de novo, é o primado da lei. A lei se sobrepõe às preferências do eleitorado. Em uma democracia, o princípio da maioria não se sobrepõe ao princípio da legalidade. E não é uma legalidade criada autoritariamente, por um regime arbitrário, são as regras definidas pela democracia brasileira.
BBC Brasil - Se Lula ficar fora da disputa, aumentam as chances de outsiders se animarem a concorrer, como o apresentador Luciano Huck e Joaquim Barbosa?
Sérgio Fausto - Esse raciocínio faz sentido. Haverá uma grande massa de votos que estará livre no mercado. Aumenta o estímulo para outras candidaturas.
BBC Brasil - Mais espaço para outras candidaturas não pode ser um cenário pior para o Alckmin?
Sérgio Fausto - Se o Lula concorrer, só tem uma vaga no segundo turno. Então, haverá menos candidatos, mas o funil estreita. No outro caso, haverá mais candidatos, mas você tem duas vagas em disputa.
Acho que o que vale à pena ressaltar em relação aos outsiders é que, por maior que seja a rejeição hoje à política tradicional, candidatos que não dispuserem de tempo suficiente na TV, mínimo de estrutura, um acesso significativo aos recursos do fundo eleitoral, terão uma enorme dificuldade de se viabilizar. Então, outsiders podem aparecer, mas, se não encontrarem abrigo em coalizões partidárias relativamente amplas, terão pouca chance na disputa eleitoral.
'Carisma é uma coisa difícil de ser medida', diz Fausto sobre críticas de que Alckmin teria pouca simpatia para o eleitorado
'Carisma é uma coisa difícil de ser medida', diz Fausto sobre críticas de que Alckmin teria pouca simpatia para o eleitorado
Foto: Reuters / BBCBrasil.com
BBC Brasil - Por esses fatores, Bolsonaro tende a perder força ao longo da campanha?
Sérgio Fausto - Sim. E o que se vem revelando a respeito do Bolsonaro e sua família destrói um dos principais ativos que ele procurou mobilizar: a ideia de que ele é diferente da média dos políticos. Reportagem recente da Folha de S.Paulo mostra uma evolução patrimonial da família que dificilmente se explica em função dos rendimentos recebidos pelo clã Bolsonaro como representantes do povo carioca.
Por hora, a campanha tem se dado exclusivamente na internet, e ele montou uma operação competente nas mídias sociais, conseguiu capitalizar o lado mais bruto dos brasileiros, que têm uma tremenda bronca com relação (aos políticos), às vezes por bons motivos. Mas acho que esse fenômeno, na hora que outros fatores mais institucionais entrarem no jogo, tempo de televisão, recursos para campanha, etc, é um fenômeno que tende a perder força.
BBC Brasil - Você, assim como Fernando Henrique, tem se referido a Lula como populista. O que o faz populista?
Sérgio Fausto - Eu acho que o Lula não é um populista clássico, no sentido de que à frente do governo, na área econômica, ele não adotou o receituário clássico do populismo latino-americano. Agora, na forma pela qual se dirige à população brasileira, ele se vale de uma retórica típica do populismo, qual seja, de opor povo e elite e dizer 'eu encarno os interesses do povo contra os interesses da elite'. Isso é tipicamente populista, e é uma narrativa falsa.
As políticas do governo Lula são políticas que atenderam em alguma medida o que se convencionou chamar de andar de baixo, mas foram também extraordinariamente favoráveis ao andar de cima. E não apenas alguns setores do andar de cima, mas, de maneira mais grave, um punhado de empresas favorecidas por contratos com o Estado e que, não por casualidade, se tornaram os grandes financiadores da coalização de governo dominada pelo PT.
BBC Brasil - Em artigo recente, você diz que Lula e Bolsonaro adotaram narrativas falsas como estratégias eleitorais. No caso do petista, essa narrativa seria se colocar como vítima de uma conspiração das elites para impedi-lo de concorrer. No caso do deputado, seria se colocar como candidato liberal. Também não é uma estratégia eleitoral, do PSDB e de outras legendas no momento, colocar Lula e Bolsonaro no mesmo nível de radicalismo e se apresentar como opção de centro?
Sérgio Fausto - Posso te dizer por mim, eu não coloco Lula e Bolsonaro no mesmo patamar, por maiores as críticas que eu tenho ao Lula e ao PT, o PT e o Lula não representam aquilo que representa o Bolsonaro. O Bolsonaro é um sujeito que ultrapassa todos os limites da convivência democrática equilibrada. Eu não estabeleço equivalência entre o Lula e o Bolsonaro.
BBC Brasil - Mas não é uma estratégia eleitoral criar esse espaço de centro entre Lula e Bolsonaro, em que está sendo colocado o candidato do PSDB e outros nomes?
Sérgio Fausto - Eu acho que isso como estratégia eleitoral é muito insuficiente. O centro não pode ser uma espécie de ponto equidistante vazio entre Lula e Bolsonaro. Essa geometria é uma geometria primária. O centro tem que se afirmar como centro substantivamente, com base nas suas propostas. E é a partir desse centro que os extremos se definem. É o inverso.
'As políticas do governo Lula são políticas que atenderam em alguma medida o que se convencionou chamar de andar de baixo, mas foram também extraordinariamente favoráveis ao andar de cima', diz Fausto
'As políticas do governo Lula são políticas que atenderam em alguma medida o que se convencionou chamar de andar de baixo, mas foram também extraordinariamente favoráveis ao andar de cima', diz Fausto
Foto: AFP / BBCBrasil.com
BBC Brasil - Não está clara ainda qual é essa proposta de centro?
Sérgio Fausto - Tem linhas gerais, falta detalhá-las. O que um pensamento de centro acredita necessário em relação ao papel do Estado na economia? Certamente não é uma visão falsamente ultraliberal, abraçada pelo Bolsonaro oportunisticamente. Mas certamente é uma posição crítica em relação às políticas que o PT adotou, sobretudo no governo Dilma, mas que já vinham do governo Lula, que é um ressurgimento do velho nacional estatismo.
São políticas incompatíveis como uma economia moderna e que desviam recursos que deveriam ser dirigidos a serviços públicos essenciais que, aí sim, beneficiam os mais pobres. Acho que aí é uma visão de centro progressista em relação ao papel do Estado.
O Brasil precisa reduzir desigualdade ou aumentar produtividade? A gente precisa fazer as duas coisas ao mesmo tempo. E elas não são incompatíveis. Te dou um exemplo concreto: saneamento básico. No Brasil 50% dos domicílios não têm esgotamento sanitário. Ampliar esse acesso é fundamental para reduzir desigualdade social e também para melhor a eficiência da economia, porque saneamento ruim é saúde ruim, isso tem efeitos sobre a produtividade da mão de obra.
Há uma série de áreas em que é possível mostrar de modo bem concreto que uma atuação correta do Estado permite atingir ao mesmo tempo esses dois objetivos que não são incompatíveis.
BBC Brasil - Para alguns analistas, o PSDB nasceu como centro-esquerda e, desde o governo FHC, caminhou para direita, ao adotar políticas econômicas liberais. Além disso, o partido flertou com o conservadorismo ao filiar nos últimos anos políticos como o Coronel Telhada (deputado estadual em São Paulo). Há uma tentativa com a candidatura Alckmin de voltar um pouco para a esquerda?
Sérgio Fausto - Eu discordo frontalmente de que o partido se moveu para a direita no governo Fernando Henrique. A ideia de que fazer privatizações significava adotar políticas de direita mostra como a esquerda perdeu a noção de qual é o interesse público e de como o interesse público se movimenta ao longo da história.
Pega o caso da Telebrás. A Telebrás que foi privatizada era composta de 28 empresas estatais que era uma espécie de terreno de caça privado das oligarquias locais, onde se fazia politicagem. A privatização permitiu uma enorme democratização do acesso à telefonia celular e à internet.
Ao mesmo tempo em que o Fernando Henrique adotou política de privatizações com esse sentido, de universalizar acesso a bens públicos, adotou programas de transferência de renda, tirou do papel e botou na prática o Sistema Único de Saúde.
Depois do governo Fernando Henrique, houve dificuldade de o PSDB entender essa herança. O PSDB acabou caindo na ladainha petista de que havia ali uma herança maldita contaminada por uma adesão ao neoliberalismo. Aí o partido se esvazia programaticamente, perde capacidade de liderar a discussão político-ideológica.
No período mais recente, como a sociedade brasileira, em reação ao PT em boa medida, se tornou mais conservadora, isso se refletiu dentro do PSDB. Como você mencionou, alguns representantes (tucanos) são claramente ligados a pautas bastante conservadoras na área de segurança pública, em alguns casos na área dos costumes. Eu acho que a candidatura do governador recria um certo equilíbrio dentro do partido mais ao centro. O governador é um homem muito menos conservador do que a média dos seus críticos acredita que ele seja.

sábado, 13 de janeiro de 2018

Cidade da Polícia, onde trabalhava delegado assassinado, é cercada por favelas

O delegado Fábio Monteiro, de 38 anos, foi assassinado a poucos metros da entrada da Cidade da Polícia, complexo que reúne várias delegacias especializadas da Polícia Civil fluminense. O policial saiu para almoçar na tarde desta sexta-feira (12), e seu corpo encontrado no porta-malas de um carro, na favela do Jacarezinho, poucas horas depois.
A Cidade da Polícia reúne 13 delegacias especializadas, além da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), e fica exatamente entre duas grandes favelas que estão há anos dominadas por quadrilhas armadas.
Nos fundos do complexo, está o conjunto de favelas de Manguinhos. À frente, está a comunidade do Jacarezinho, onde o delegado foi morto.
A chamada Cidpol foi inaugurada em setembro de 2013, com a proposta não só de reunir várias unidades especializadas em um único espaço, mais moderno e amplo. Mas fazia também parte de uma estratégia do governo fluminense de aproximar unidades policiais de comunidades dominadas por quadrilhas armadas.
Também fizeram parte dessa estratégia a implantação de um complexo da Polícia Militar, na comunidade da Maré, para abrigar a Coordenadoria de Operações Especiais.
Tanto o complexo da Polícia Civil quanto o da Polícia Militar foram implantados em uma época em que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) prometiam acabar com o controle territorial armado em várias favelas do Rio de Janeiro.
A instalação de duas UPPs, uma no Jacarezinho e outra em Manguinhos, prometiam garantir um cinturão de segurança para que os agentes, delegados e peritos conseguissem entrar e sair da Cidade da Polícia sem arriscar suas próprias vidas.
Mas quatro anos depois, a UPP mostrou-se incapaz de garantir o controle efetivo do Estado nas duas favelas e acabar com o controle territorial por quadrilhas armadas. Tanto em Manguinhos quanto no Jacarezinho, as UPPs ainda existem, mas a polícia hoje exerce pouquíssimo controle sobre tais territórios.
O secretário estadual de Segurança do Rio de Janeiro, Roberto Sá, não confirmou se Fábio Monteiro foi assassinado por ser policial. No entanto, a morte de mais de 130 policiais militares no ano passado, muitos deles vítimas de assalto, mostra que ser policial é uma profissão de risco, mesmo quando o agente está de folga.
Durante o enterro do delegado hoje, no Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, o secretário disse que vai estudar medidas para garantir a proteção dos policiais que chegam e saem do trabalho na Cidade da Polícia e que precisam passar em frente às duas comunidades.
“Vamos fazer uma reunião na segunda-feira (15) para fazer um diagnóstico do entorno da Cidade da Polícia, nessas áreas conflagradas e no seu entorno, para a gente verificar, com o que a gente tem, como é possível tentar evitar que isso ocorra de novo, melhorando a ostensividade, chamando a prefeitura para fazer o ordenamento urbano”, disse.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Ex-funcionária diz que recebia mesmo após saída de Cristiane de secretaria

A informação é da própria funcionária, que deve processar Cristiane por ter lhe demitido enquanto estava licenciada.Mesmo após a nova ministra do Trabalho, Cristiane Brasil (PTB-RJ), ter saído da Secretaria Especial do Envelhecimento Saudável do Rio, a funcionária Aline Lucia de Pinho continuou prestando serviços particulares para a ex-deputada, nomeada e recebendo pela pasta.

A informação é da própria funcionária, que deve processar Cristiane por ter lhe demitido enquanto estava licenciada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), por acidente de trabalho - ocorrido, segundo ela, quando prestava serviços particulares para Cristiane.
Cristiane deixou a secretaria, onde foi nomeada em 2015 pelo ex-prefeito do Rio Eduardo Paes, para assumir o mandato como deputada federal. Por indicação sua, quem ocupou a sua vaga na secretaria foi Carolina Chaves de Azevedo, filha de Vera Lúcia Gorgulho Chaves de Azevedo, secretária parlamentar de seu gabinete quando deputada federal.
Em uma edição do Diário Oficial do Município de abril de 2016, consta o nome de Aline no cargo de assessora III na pasta já liderada por Carolina. Segundo Aline, que era motorista particular e também prestava serviços particulares para Cristiane, ela recebia cerca de R$ 3 mil como comissionada na secretaria, apesar de nunca ter trabalhado no local.Carolina também foi indicada por Cristiane em novembro passado para assumir a vaga de diretora-geral do Arquivo Nacional, cargo ligado ao Ministério da Justiça, onde está até hoje.
A mãe de Carolina, Vera Lúcia Gorgulho Chaves de Azevedo, também é apontada como a pessoa que fazia os repasses de uma indenização trabalhista contra Cristiane por um motorista. Vera colaborou com uma doação de R$ 5 mil em cheque para a campanha de Cristiane para vereadora em 2008.
A assessoria da nova ministra ainda não respondeu à reportagem sobre o caso. Carolina foi procurada pela reportagem por meio da assessoria de imprensa do Arquivo Nacional, mas ainda não respondeu.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Cármen Lúcia suspende parcialmente indulto assinado por Temer

Alegando violação de vários princípios da Constituição, Raquel Dodge já havia afirmado que o decreto coloca em risco a Operação Lava Jato.A ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu nesta quinta-feira, 28, parcialmente o decreto de indulto assinado pelo presidente Michel Temer na semana passada. A decisão é uma resposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
"Defiro a medida cautelar (art. 10 da Lei n. 9.868/1999), para suspender os efeitos do inc. I do art. 1º; do inc. I do § 1º do art. 2º, e dos arts. 8º, 10 e 11 do Decreto n. 9.246, de 21.12.2017, até o competente exame a ser levado a efeito pelo Relator, Ministro Roberto Barroso ou pelo Plenário deste Supremo Tribunal, na forma da legislação vigente", diz Cármen na decisão.
Alegando violação de vários princípios da Constituição, Raquel afirmou que o decreto coloca em risco a Operação Lava Jato, "materializa o comportamento de que o crime compensa" e "extrapolou os limites da política criminal a que se destina para favorecer, claramente, a impunidade".
Raquel também havia solicitado que a presidente da Corte concedesse "com a maior brevidade possível, em decisão monocrática e sem intimação dos interessados, medida cautelar para suspender a eficácia das normas impugnadas, em razão da urgência do caso’."O indulto remonta ao período do absolutismo monárquico, em que não havia separação dos poderes ou mesmo o sistema de freios e contrapesos adotado na Constituição brasileira, a partir da teoria de Montesquieu. O direito penal era aplicado de forma arbitrária e violenta e, assim, o instituto representava um ato de clemência do monarca, que concentrava funções legislativas, judiciais e executivas", afirmou a procuradora.
O indulto, publicado na sexta-feira, 22, consiste em um perdão de pena e costuma ser concedido todos os anos próximo ao Natal. No do ano passado, foram beneficiadas pessoas condenadas a no máximo 12 anos e que tivessem cumprido um quarto da pena, desde que não fossem reincidentes. No indulto deste ano, não foi estabelecido um período máximo de condenação e o tempo de cumprimento da pena foi reduzido de um quarto para um quinto no caso dos não reincidentes.
No pedido ajuizado no Supremo, Raquel alegava que o decreto - apesar de ser uma prerrogativa do presidente -, da forma como foi feito, invade a competência do Congresso de legislar sobre o direito penal e esvazia a função da Justiça.
Segundo a procuradora, a determinação "sem razão específica" ampliou os benefícios desproporcionalmente e "criou um cenário de impunidade no País: reduziu o tempo de cumprimento de pena que ignora a pena aplicada; extinguiu as multas aplicadas; extinguiu o dever de reparar o dano; extinguiu penas restritivas de direito, sem razões humanitárias que justifiquem tais medidas e tamanha extinção da punibilidade".
Raquel destacou ainda que o decreto veio no contexto do avanço da Lava Jato, "após a punição dos infratores, corruptos e corruptores, por sentença criminal".
Ao criticar a redução do tempo mínimo de um quarto para um quinto da pena - no caso de não reincidentes nos crimes sem violação, como os casos de corrupção - a procuradora citou, como exemplo, que uma pessoa condenada a 8 anos e 1 mês de prisão não ficaria nem sequer um ano preso.
'Generoso'
Raquel diz na ação que o que se extrai da determinação, classificada "como "indulto mais generoso", em uma escala ascendente de generosidade que marca os decretos de indulto nas duas últimas décadas - é que será causa única e precípua de impunidade de crimes graves, como aqueles apurados no âmbito da Operação Lava Jato e de outras operações contra a corrupção sistêmica".
O decreto ignorou solicitação da força-tarefa e recomendação das câmaras criminais do MPF que pediam, entre outros pontos, que os condenados por crimes contra a administração pública - como corrupção - não fossem agraciados pelo indulto. Na ação, Raquel relembra essa manifestação.
A procuradora-geral salientou que presidentes da República não têm poder ilimitado de conceder indulto. "Na República, nenhum poder é ilimitado. Se o tivesse, aniquilaria as condenações criminais, subordinaria o Poder Judiciário, restabeleceria o arbítrio e extinguiria os mais basilares princípios que constituem a República constitucional brasileira."O decreto foi criticado por procuradores e representantes da Lava Jato. Em novembro, os integrantes da força-tarefa em Curitiba estimaram que ao menos 37 condenados pelo juiz federal Sérgio Moro poderiam ser beneficiados pelo indulto.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

'Indulto humanitário' ou 'pacto por impunidade'? Por que perdão a Fujimori no Peru é polêmico

Indulto concedido a ex-presidente condenado por corrupção e crimes contra a humanidade, poucos dias após voto de seu filho ter ajudado a livrar atual presidente do impeachment, gera suspeitas de 'acordo político' nos bastidores.

O presidente peruano Pedro Pablo Kuczynski concedeu indulto "por razões humanitárias" a Alberto Fujimori, ex-presidente do país condenado por corrupção e violações dos direitos humanos.
Kenji Fujimori (à esquerda) foi ao hospital em que o pai está internado dar a notícia do perdão presidencial | Foto: Kenji Fujimori
Kenji Fujimori (à esquerda) foi ao hospital em que o pai está internado dar a notícia do perdão presidencial | Foto: Kenji Fujimori
Foto: BBCBrasil.com
A decisão foi alvo de protestos e causou intenso debate no país, que já estava no centro de uma tempestade política desde as acusações contra vários políticos - entre eles, o próprio Kuczynski, que escapou de um processo de impeachment na semana passada - de terem recebido propina de empreiteiras brasileiras.
Publicidade
A Presidência da República informou em um comunicado no Natal que o perdão presidencial fora concedido a Fujimori após uma avaliação feita por uma junta médica sobre o estado de saúde de Fujimori - que sofre de uma "doença progressiva, degenerativa e incurável" - recomendando que ele fosse colocado em liberdade.
Para muitos, Kuczynski teria concedido o perdão como parte de um acordo político firmado na semana passada para evitar seu impeachment no Congresso. O presidente foi acusado de ter ocultado pagamentos da Odebrecht a empresas vinculadas a ele entre 2004 e 2013.
Seu afastamento fora pedido pelo partido Força Popular, que tem à frente a filha do ex-presidente, Keiko Fujimori, e o acusa de corrupção em um caso envolvendo a construtora brasileira Odebrecht. O voto do irmão de Keiko, Kenji, e de outros nove deputados de seu grupo político foram, no entanto, decisivos para impedir o processo de impeachment contra o atual presidente. No último minuto, eles optaram por se abster da votação, permitindo assim que Kuczynski se mantivesse no cargo.

Internações

O ex-presidente tem 79 anos e estava preso desde 2007. Ele foi transferido várias vezes para o hospital neste ano - a última delas no sábado.
Segundo informações do médico que o acompanha, Fujimori ficou internado na Unidade de Cuidados Intensivos de uma clínica de Lima, capital do Peru, após sofrer uma queda de pressão arterial e do nível de glicose no sangue.
O ex-presidente sofre de outras doenças que lhe obrigaram a passar por várias cirurgias.
Seu filho, Kenji, postou um vídeo no Twitter em que dá a notícia do perdão presidencial ao pai, desejando-lhe Feliz Natal. Fujimori aparece na cama do hospital.

Perdão gera protestos e divide população

O anúncio do indulto provocou reações imediatas no país e ameaça inflamar ainda mais a crise política no país.
Após saber da decisão sobre o indulto, dois deputados do partido Peruanos pela Mudança - o partido de Kuczynski - anunciaram no Twitter que discordavam da medida e que deixariam a bancada do partido.
Enquanto os simpatizantes do ex-presidente comemoraram o indulto, manifestantes contrários à medida entraram em confronto com a polícia no centro de Lima.
O timing do indulto - poucos dias após a votação do impeachment - ajudou a fomentar alegações de um possível acordo entre o atual presidente e os Fujimori.
Kuzcynski foi acusado de ter recebido propina da construtora brasileira Odebrecht quando era ministro do ex-presidente Alejandro Toledo (2001-2006).
Analistas políticos peruanos já haviam cogitado na semana passada que Fujimori poderia ser perdoado após o voto de Kenji Fujimori no Congresso, decisivo para salvar o mandato de Kuzcynski.
No domingo, a congressista do partido Novo Peru Marisa Glave, afirmou no Twitter que "fazer dessa maneira e fazer hoje só confirma um pacto de impunidade".
Milagros Salazar, porta-voz do Força Popular, afirmou que "é lamentável para o país que Pedro Pablo Kuczynski tenha trocado a permanência no cargo por um indulto".
O advogado que defendeu o presidente no processo parlamentar, Alberto Borea, também protestou: "Como todos vocês, fui surpreendido com o indulto a Alberto Fujimori. Sempre lutei e continuarei lutando contra a ditadura e repudio firmemente o indulto", postou ele no Facebook.
A presidência do Peru insiste que as razões são humanitárias e se apoia na avaliação da junta médica que examinou o ex-presidente e considerou que "as condições carcerárias significam um grave risco à vida, saúde e integridade" do preso.
Fujimori: Em 2009, ele foi condenado por crimes contra a humanidade e também por apropriação de recursos públicos e outros crimes de corrupção
Fujimori: Em 2009, ele foi condenado por crimes contra a humanidade e também por apropriação de recursos públicos e outros crimes de corrupção
Foto: Reuters / BBCBrasil.com

Os dois lados de Fujimori

Fujimori gera uma divisão profunda no Peru.
Seus simpatizantes dizem que seu governo (1990-2000) recuperou a economia nacional e derrotou a guerrilha maoísta Sendero Luminoso e o grupo armado Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA).
Já seus críticos alegam que durante os anos em que dirigiu o país ocorreram violações sistemáticas de direitos humanos e casos graves de corrupção.
O mandato presidencial de Fujimori terminou abruptamente em 2000, quando decidiu não retornar de uma viagem internacional.
Pouco antes, vieram a público vídeos em que, aparentemente, seu principal assessor, o então chefe dos serviços de inteligência, Vladimiro Montesinos, oferecia suborno a congressistas peruanos.
Fujimori se exilou no Japão e só regressou ao país em 2007, ao ser extraditado do Chile.
Fujimori foi condenado em 2009 a 25 anos de prisão por crimes contra a humanidade - por seu papel nos massacres de La Cantuta e Barrios Altos, nos quais dezenas de pessoas, entre elas estudantes universitários e uma criança, foram sequestrados e assassinados por membros do Exército peruano.
Poucos meses depois, o ex-presidente foi condenado novamente, desta vez por apropriação de recursos públicos e outros crimes de corrupção.
Desde sua prisão, sua sombra voltou a pesar sobre a política peruana, onde ainda têm aliados - e onde seus filhos desempenham papéis de liderança.
Keiko Fujimori avaliou o perdão ao pai como "um grande dia para a família" dela e para o fujimorismo
Keiko Fujimori avaliou o perdão ao pai como "um grande dia para a família" dela e para o fujimorismo
Foto: Reuters / BBCBrasil.com
Sua filha, Keiko, foi adversária de Kuczynski nas últimas eleições e encabeça a oposição ao presidente.
Mas, ao contrário de Kenji, Keiko votou a favor da destituição de Kuczynski.
Ela comemorou a libertação do pai, dizendo, no Twitter, que o dia do anúncio de sua libertação era "um grande dia a minha família e para o fujimorismo. Finalmente meu pai está livre. Este será um Natal de esperança e alegria".
A possibilidade de indulto a Fujimori já havia sido levantada em ocasiões anteriores e sido foco de polarização na política e na sociedade peruanas.
O governo do esquerdista Ollanta Humala rechaçou, em 2013, um requerimento semelhante ao que agora foi recebido e aprovado por Kuczysnki.