Os pesquisadores de jornalismo dedicados, décadas a fio, a tentar
identificar critérios de noticiabilidade – e há mesmo quem proponha
fórmulas para isso –, os professores empenhados em discutir
obstinadamente esses critérios com seus alunos, semestre após semestre,
todos esses precisam saber que seus melhores esforços sempre esbarrarão
num elemento imponderável: pois, não importa a circunstância, é
impossível imaginar o que se passa na cabeça de um editor.
O exemplo mais recente dessa variável imprevisível foi dado pela edição de domingo (24/2) do Estado de S.Paulo,
que teve a brilhante ideia de assinalar a passagem de um mês da
tragédia de Santa Maria com um número impactante e resolveu anunciar que
a morte das 239 pessoas no incêndio daquela boate representa uma perda
total de 12.412 anos de um futuro projetado e abruptamente interrompido.
No site, o chamariz é o link para um gráfico interativoque
“mostra” a trajetória potencial de todas aquelas vidas desperdiçadas.
No jornal, duas páginas internas no caderno “Metrópole” detalham os
cálculos.
Como um videogame
O gráfico começa riscando lentamente o arco da expectativa de vida da primeira vítima, que cai
com 18 anos e “poderia viver até os 75”; a segunda, morta aos 19,
poderia viver até os 83; e assim por diante, numa velocidade crescente,
até completar o total de vítimas e de anos potencialmente perdidos. É
até bonito, e pode ser divertido – como num videogame – ver aqueles fios
que começam coloridinhos, alaranjados e avermelhados, e as bolinhas
caindo no eixo horizontal marcando a morte – a queda – das pessoas, e os fios prosseguindo brancos até a suposta idade do hipotético limite para a vida de cada um.
Logo abaixo, dois outros gráficos, um para as 107 mulheres – “em média,
cada uma perdeu 57 anos de vida” – e outro para os 125 homens mortos –
“ao todo eles poderiam viver 6,2 mil anos a mais” – completam o quadro
em que se enuncia “o que esses dados revelam”.
Números inúteis
Os números, mesmo tratados por critérios completamente distintos,
evidentemente não revelam absolutamente nada, inclusive porque seria o
caso de indagar o motivo pelo qual a primeira vítima morta aos 18
poderia viver até os 75 e a outra, morta aos 19, teria uma expectativa
de vida bem maior. Sem contar a imprevisibilidade do acaso, e nesse
episódio mesmo os jornais todos noticiaram, com alguma ênfase – porque
isso sempre mexe com a imaginação do público sobre aquilo que
supostamente seria uma fatalidade, aquilo que estaria “escrito” no
destino de cada um –, que uma jovem escapou da tragédia e morreu na
semana seguinte num desastre de carro, ou a história do rapaz que
desistiu de ir à boate naquele dia e por isso se salvou.
No jornal em papel, a reportagem detalha como aqueles números foram
calculados e apresenta até o prejuízo que essas perdas causaram para a
economia nacional, a partir de uma observação de um especialista – pois
há especialistas para tudo: “Apenas em renda do trabalho, os 40 anos
que, na média, cada uma das 239 vítimas teria de vida produtiva
renderiam ‘algo em torno de R$ 600 milhões’”, diz o professor
consultado. O “impacto econômico”, de acordo com a mesma fonte, poderia
ultrapassar R$ 1 bilhão.
É claro que nunca ninguém se dispôs a calcular o “impacto econômico” da
alta incidência de morte de jovens entre os 15 e os 24 anos, porque
esses, meninos e rapazes pobres e em geral pretos, sucumbem em tiroteios
decorrentes da disputa por pontos de tráfico de drogas ou outras
atividades ilegais, quando não são simplesmente atingidos no meio desse
fogo cruzado: essa gente não tem mesmo futuro, por que se preocupar? Por
isso a reportagem pode dar o exemplo de um casal de namorados de 18
anos, que faleceu no incêndio, e explicar, didaticamente, que “os homens
têm uma esperança de vida ao nascer sete anos menor do que as mulheres
no Brasil, mas essa diferença diminui com a idade”. E com a condição
social, faltou dizer.
O jornal investiu nessa notável reportagem domingueira o tempo e o
trabalho de pelo menos seis profissionais – como consta nos créditos –,
um deles um conhecido especialista em RAC, “reportagem com auxílio de
computador”.
Não há dúvida de que o computador é nosso amigo e de que é preciso
saber montar e consultar bancos de dados. Mas antes de mais nada é
preciso clareza para definir critérios que justifiquem utilizá-los. Do
contrário, o precioso trabalho dos jornalistas se desvirtua na
elaboração de gráficos e na divulgação de números, estatísticas e
cálculos a serviço da mais pura mistificação.
isso tem que ser evitada!
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