Quase três décadas após o fim da ditadura
(1964-1985), o Brasil continua regido por uma série de leis, práticas e
códigos criados pelos militares. São daquela época, por exemplo, as
atuais estruturas tributária, administrativa e financeira do país. E
mesmo após a Constituição de 1988 definir como pilares do Estado
brasileiro a democracia e o respeito aos direitos humanos, seguem em
vigor normas e práticas que, segundo especialistas, contrariam esses
valores.
É o caso, dizem eles, do Estatuto do
Estrangeiro, que nega direitos políticos a estrangeiros que residam no
país. Ou de um mecanismo que permite a tribunais anular decisões
judiciais favoráveis a comunidades afetadas por grandes obras se as
cortes avaliarem que as medidas põem em risco a economia nacional.
Gilberto Bercovici, professor de direito
econômico e economia política da Universidade de São Paulo (USP), diz
que, em busca de refundar o país e valendo-se de medidas autoritárias,
os militares redefiniram as regras de várias das principais áreas da
administração pública.
As ações, segundo ele, anularam os
esforços da Presidência de João Goulart (1961-1964) para ampliar a
participação popular na gestão do país.
- Até hoje isso (maior participação
popular) não foi recuperado. Parece que temos na nossa democracia certos
limites que não podem ser ultrapassados – diz.
Bercovici cita a reforma agrária, que,
mesmo prevista na Constituição de 1988, gera grande resistência e jamais
foi plenamente realizada.
O professor atribui a manutenção de regras da ditadura
em parte à instabilidade e à crise econômica que o país vivia durante a
redemocratização. “Havia um entendimento de que havia coisas mais
urgentes a se pensar”.
Segundo Bercovici, outro estímulo à
permanência das normas é a dificuldade na democracia para se chegar a
consensos sobre mudanças.
Para o secretário Nacional de Justiça,
Paulo Abrão, a manutenção da Lei de Anistia (1979), que perdoou crimes
políticos cometidos por militantes e agentes de Estado durante a
ditadura, é um “escudo para que não se coloque o dedo na ferida em
todas as demais pendências institucionais de fundamento autoritário” dos
tempos da ditadura.
A agência britânica de notícias BBC listou algumas das heranças institucionais do regime de exceção que permanecem em vigor.
Política migratória
O atual Estatuto do Estrangeiro, que
orienta a regularização de estrangeiros no Brasil, data de 1980 e foi
inspirado pela lógica de segurança nacional.
Os estrangeiros residentes no Brasil são
proibidos, por exemplo, de exercer qualquer atividade política
(inclusive votar) ou de “se imiscuir, direta ou indiretamente, nos
negócios públicos” do país. O documento veda também a regularização de
imigrantes não documentados.
Paulo Abrão, secretário Nacional de
Justiça, diz que a legislação é incompatível com o discurso oficial da
política externa brasileira. Ele afirma que a proposta de um novo
estatuto será entregue ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na
semana que vem e encaminhada ao Congresso em seguida.
Impostos, administração pública e finanças
Aprovado em 1966, o Código Tributário
Nacional jamais foi alterado em sua essência. É ele quem define os
impostos que municípios, Estados e União podem cobrar e os critérios
gerais para a distribuição das receitas entre os entes federativos.
O atual Sistema Financeiro Nacional (SFN)
também foi criado pelos militares na década de 1960. Uma das principais
novidades do SFN foi a fundação do Banco Central, que tomou do Banco do
Brasil as funções de organizar o sistema monetário. A lei que
disciplina bolsas de valores no país também é daquela época.
Os militares criaram ainda o atual
sistema de administração pública, que aprofundou a divisão entre a
administração direta (exercida por órgãos subordinados a ministérios) e a
indireta (autarquias, fundações e empresas públicas).
Práticas policiais
Ainda que a Polícia Militar (PM) tenha
sido criada antes do Golpe de 1964, organizações que militam pelos
direitos humanos dizem que, durante a ditadura, foram incentivadas
práticas que violam esses valores e que seguem em vigor.
O advogado Eduardo Baker, da ONG Justiça
Global, cita entre esses mecanismos o crime de desacato, “usado pela
polícia como forma de intimidação em sua atividade cotidiana”. “A
existência dele permite que um policial leve qualquer um para a
delegacia, colocando o policial acima do cidadão.”
Outra prática criticada é o registro de
mortes provocadas pela polícia como “autos de resistência”. Segundo a
Justiça Global, o mecanismo visa proteger policiais infratores e impedir
a investigação de execuções sumárias.
A Secretaria Nacional de Segurança
Pública não se pronunciou sobre as críticas. Tramita no Congresso um
projeto de lei que prevê a investigação de mortes e lesões corporais
cometidas por policiais durante o trabalho, mas não há prazo para a sua
votação.
Exportação de armas
Desde os anos finais da ditadura, as
vendas de armas brasileiras ao exterior são regidas por um documento
secreto e jamais divulgado, a Política Nacional de Exportação de
Material de Emprego Militar (Pnemem).
Segundo Daniel Mack, analista sênior do
Instituto Sou da Paz, não há clareza sobre os critérios do Brasil para
decidir sobre a exportação de armamentos. Mack diz esperar que, tão logo
o Congresso ratifique o Tratado de Comércio de Armas, assinado pelo
Brasil no ano passado, as operações se tornem mais transparentes.
O Ministério da Defesa disse à BBC que geralmente os contratos para a venda de armas têm, a pedido dos
países compradores, cláusulas de sigilo, o que impede a divulgação das
informações. O Itamaraty não respondeu os questionamentos sobre o tema.
Código Penal Militar
Aprovado em 1970, o Código Penal Militar
dá margem para que civis sejam investigados por cortes militares.
Organizações dizem que essa possibilidade, inexistente em vários países
democráticos, contraria a Constituição de 1988. Elas defendem a extinção
do código.
Críticas à manutenção da legislação
ganharam força em 2008, quando o economista Roberto de Oliveira Monte se
tornou réu na Justiça Militar acusado de “incitar à desobediência, à
indisciplina ou à prática de crime militar” e “ofender a dignidade ou
abalar o crédito das Forças Armadas”.
A acusação se embasou em palestra feita
por Monte em 2005, quando ele criticou as humilhações sofridas por
militares por seus superiores e defendeu que os praças pudessem se
sindicalizar. Já a Procuradoria de Justiça Militar diz que Monte fez
“apologia à insubordinação” e empregou termos ofensivos ao Exército.
Políticas para a Amazônia
Críticos às políticas do governo na
Amazônia dizem que, mesmo após a redemocratização, continua em vigor o
modelo de desenvolvimento para a região preconizado pelos militares.
“Ainda que a legislação atual preveja discussões e o licenciamento das
obras, o objetivo maior do governo continua a ser exportar os recursos
da Amazônia por meio de grandes projetos de mineração e energia,
desprezando posições contrárias da sociedade”, diz o jornalista e
sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto, autor de 12 livros sobre a
região.
Ele afirma que, ao empregar a Força
Nacional de Segurança em canteiros de grandes obras na Amazônia, o
governo federal visa impor sua vontade pela força, assim como faziam os
militares. Para o advogado Raul do Valle, do Instituto Socioambiental
(ISA), outro mecanismo da ditadura que, segundo ele, continua a
legitimar políticas autoritárias na Amazônia é a Suspensão de Segurança.
Criada em 1964, ela permite a tribunais
anular decisões judiciais favoráveis a comunidades afetadas por grandes
obras se as cortes avaliarem que essas decisões põem em risco a ordem, a
saúde, a segurança ou a economia públicas. O mecanismo tem sido usado
para derrubar decisões que ordenaram a paralisação das obras da
hidrelétrica de Belo Monte e de uma estrada de ferro que escoará
minérios na região dos Carajás, ambas no Pará.
O Ministério de Minas e Energia e o
Ministério da Justiça (responsável pela Força Nacional de Segurança) não
se pronunciaram sobre as críticas.
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