sexta-feira, 19 de julho de 2019

Os dados que contradizem afirmação de Bolsonaro de que não há fome no Brasil

O presidente Jair Bolsonaro disse nesta sexta-feira (19/7) que "falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira". A declaração foi dada durante um encontro com jornalistas, no Palácio do Planalto, em Brasília.
"Passa-se mal, não se come bem, aí eu concordo. Agora passar fome, não. Você não vê gente, mesmo pobre, pela ruas com o físico esquelético como se vê em outros países pelo mundo", disse o presidente.
Criticado pela declaração, Bolsonaro reviu sua opinião horas depois, em outro evento, ao reconhecer que "uma pequena parte (dos brasileiros) passa fome". Ele se irritou ao ser questionado por jornalistas se havia recuado da declaração inicial: "Se for para entrar em detalhe, em filigranas, eu vou embora. Não estou vendo nenhum magro aqui. Temos problemas alimentares no Brasil? Temos. Não é culpa minha, vem de trás."
De fato, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indicam que a fome ainda não foi erradicada do Brasil.
Segundo a última pesquisa do órgão sobre o tema, de 2013, 3,6% dos brasileiros têm insegurança alimentar grave. O índice correspondia a 7,2 milhões de pessoas no ano da pesquisa. Na definição do IBGE, em domicílios com insegurança alimentar grave, pode-se "passar pela privação de alimentos, podendo chegar à sua expressão mais grave, a fome".
O IBGE não colheu dados sobre a fome no Brasil desde então. Porém, é provável que o índice tenha aumentado nos últimos anos, acompanhando o crescimento da pobreza verificado a partir de 2016.
Naquele ano, 52,8 milhões de pessoas (ou 25,7% dos brasileiros) eram consideradas pobres, número que passou para 54,8 milhões (26,5%) em 2017. Não houve medições da pobreza desde então.
Não é a primeira vez que o governo Bolsonaro causa polêmica ao se referir à fome no Brasil.
Em abril, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM), afirmou que "nós não passamos muita fome porque temos manga nas nossas cidades, nós temos um clima tropical".

Ranking da fome no mundo

Em seu último relatório "O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo", de 2018, a FAO (agência da ONU para agricultura e segurança alimentar) põe o Brasil na categoria dos países com o menor índice de fome no planeta. Nessas nações, o índice de pessoas com subalimentação entre 2015 e 2017 foi "menor que 2,5%", segundo a organização.
A FAO não cita números detalhados para os países com índices inferiores a 2,5% por considerar que as cifras não são precisas, mas sim estimativas calculadas a partir de diversos indicadores com margem de erro.
Na América do Sul, só Brasil e Uruguai alcançam essa categoria - que também abarca países altamente desenvolvidos como Austrália, Canadá, Suécia e Finlândia.
No encontro com jornalistas nesta manhã, Bolsonaro fez outra declaração contestável sobre a questão alimentar.
Ao tratar de agricultura, o presidente afirmou que "estamos (no Brasil) nos últimos lugares no tocante ao uso de agrotóxicos".
Segundo a FAO, porém, o Brasil ocupa a 47ª posição entre 198 nações em um ranking sobre o consumo agrotóxicos por área plantada.
Quando se analisa o total de agrotóxicos consumidos por cada país, o Brasil disputa as primeiras posições da lista. Em 2013, segundo um levantamento feito pela consultoria Phillips McDougall para a FAO, o Brasil consumiu o equivalente a US$ 10 bilhões em agrotóxicos.
O resultado deixou o país na primeira posição do ranking, à frente dos Estados Unidos (US$ 7,4 bilhões), China (US$ 4,8 bilhões) e Japão (US$ 3,4 bilhões).

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Governo federal financia entidades para dependentes químicos denunciadas por maus-tratos e irregularidades

O governo federal financia cinco comunidades terapêuticas denunciadas por praticar uma série de irregularidades, como maus-tratos a dependentes químicos, violação de correspondências e alta mediante conversão religiosa.
Os problemas nessas cinco instituições religiosas sem fins lucrativos foram identificados em 2018 por membros do Ministério Público Federal, dos Conselhos Federal e Regional de Psicologia e do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão federal dissolvido pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) na semana passada.
Por meio de depoimentos de pacientes e funcionários, os membros da comissão também constataram problemas como tratamento baseado majoritariamente em espiritualidade, isolamento da família, prisões de internos em quartos, trabalhos forçados e punições por faltas a cultos religiosos.
As irregularidades foram constatadas nas comunidades Jovem Maanaim, Esquadrão da Vida, Jovem Ebenezer, Caverna de Adulão, Salve a Si.
Procuradas pela BBC News Brasil, as comunidades terapêuticas negaram os problemas apontados, e parte afirmou ter havido uma "análise ideológica" por parte dos órgãos fiscalizadores.
Já o governo federal não explicou os motivos da manutenção dos contratos, mas disse que exige das comunidades a contratação de profissionais graduados em ciências humanas e saúde, além de liberdade religiosa para os internos - também diz que estão previstas vistorias a cada 12 meses de contrato.
Os contratos foram assinados sem licitação, meses após a divulgação do documento que apontava os problemas. Ao todo, as cinco instituições devem receber aproximadamente R$ 2 milhões dos cofres federais neste ano.
A participação das comunidades terapêuticas (CTs) na Política Nacional sobre Drogas vem se tornando o principal mecanismo de combate à dependência química da gestão Bolsonaro. Mas a política foi iniciada por Dilma Rousseff, do PT. Segundo dados do governo federal, foram repassados cerca de R$ 234 milhões para 384 entidades deste tipo de 2015 a 2018, em valores nominais.
Em março, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, aumentou em 78% o número de entidades do tipo contratadas (de 280 para 497), também sem licitação. Neste ano, serão repassados R$ 149 milhões para custear 10,8 mil vagas.
Esse movimento vem na esteira da nova Política Nacional de Drogas, projeto de lei aprovado pelo Senado em maio. O texto facilita internações involuntárias em unidades de saúde e fortalece as comunidades terapêuticas.
Essas entidades agora podem receber dinheiro de isenção fiscal - pessoas e empresas podem deduzir no Imposto de Renda doações feitas às comunidades.
Existem três tipos de internações previstas na lei: a voluntária, a involuntária (quando o dependente é levado pela família ou por um agente de saúde) e a compulsória - quando há determinação da Justiça.

Liberdade religiosa

As comunidades terapêuticas são um dos vários modelos de atenção a dependentes oferecidos pela saúde pública. Em geral, são residências coletivas que promovem o modo de vida em abstinência.
Os leitos, oferecidos gratuitamente, são financiados pelo governo e cada um custa R$ 1.172 por mês. Os internos têm o direito de abandonar o tratamento a qualquer momento, mas nem sempre é o que ocorre na prática.
Uma das principais críticas feitas por especialistas e procuradores ao modelo passa pela relação entre o tratamento de dependentes químicos e proselitismo religioso.
Das quase 2.000 comunidades terapêuticas no país, segundo estudo do Ipea (instituto de pesquisa vinculado ao Ministério da Economia), 82% disseram ter ligação com igrejas e organizações religiosas - 40% pentecostais e 27% católicas.
A leitura da Bíblia é uma atividade diária em 89% delas, e a participação em cultos e cerimônias religiosas é obrigatória em 55%.
Segundo as vistorias feitas pelo CFP e o MPF, grande parte das 28 instituições não oferecia liberdade religiosa - ou seja, internos eram punidos ou expulsos caso não participassem dos cultos.
Uma das denunciadas foi a Jovem Maanaim, ligada a uma igreja evangélica da cidade mineira de Itamonte, a 385 km de Belo Horizonte. A instituição firmou um novo contrato com o governo federal em dezembro passado, durante a gestão Michel Temer, dois meses após a divulgação da vistoria.
Neste ano, a entidade já recebeu R$ 146,5 mil dos R$ 281 mil previstos no contrato. Desde 2014, a comunidade obteve R$ 911 mil do erário.
De acordo com o relatório, a Jovem Maanaim só concede alta terapêutica aos dependentes químicos se eles se converterem ao Evangelho.
"Como não há acompanhamento da evolução de cada caso, o único critério de alta é a conversão e adoção dos preceitos religiosos cuja demonstração pública e convencimento dos obreiros constituem a ideia de tratamento concluído. Há certo obscurantismo", afirma o documento.
Uma travesti relatou ter sido proibida de vestir roupas femininas, pois o pastor teria lhe dito que "aquele comportamento era possessão do espírito maligno ou 'pombagira'" - segundo o mapeamento do Ipea, os acolhidos não têm permissão para escolher a própria roupa em 38% das comunidades terapêuticas.
A unidade negou todas as irregularidades apontadas, afirmando que o relatório é enviesado. "A vistoria foi realizada por uma pessoa que não é qualificada para o trabalho, nada ali é fidedigno", disse Marcos Vinicius Vitorino, gestor administrativo da casa.
Ele também refuta acusações de maus-tratos e de falta de liberdade religiosa. "Há pessoas que inventam que foram abusadas para sair da comunidade. E aqui temos pessoas ateias e católicas", disse.

'Momentos devocionais'

A Esquadrão da Vida, de Montes Claros (MG), também foi acusada de proselitismo religioso - ela vai receber R$ 253 mil do governo.
"Não há liberdade religiosa, na medida em que todos são obrigados a participar dos momentos denominados 'devocionais'. A cada dia, um interno é responsável pelo devocional, que significa escolher uma parte da Bíblia para ser lida. O interno que não se apresentar para o momento da reza será disciplinado (punido)", diz o relatório.
A BBC News Brasil não conseguiu contato com os responsáveis pelo local.
Na comunidade Jovem Ebenezer, em Seropédica (RJ), os fiscais também relataram que cultos evangélicos diários são o ponto mais importante do tratamento. "Quando uns se mostram mais isolados, ou quando destoam do comportamento tido como desejável, eles são imediatamente interpelados por um dos monitores, que os chamam ao convívio, à fé, à crença, às normas desejáveis. A não adesão implica no afastamento."
A unidade vai receber R$ 422 mil dos cofres federais neste ano.
Responsável pela entidade, o pastor Aldemir Gomes de Paiva afirmou que "ninguém é obrigado a se converter ali, já que a presença de todos dos acolhidos é voluntária, e o trabalho espiritual serve mais como um alento para quem está nessa situação (de vício)".
Afirmou ainda que a instituição atua dentro da legislação e que os acolhidos são acompanhados individualmente por psicólogos e profissionais da rede pública de saúde.
Para Jardel Fischer Loeck, pós-doutorando em Saúde Coletiva na Unisinos, integrante da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas e autor de um dos estudos do volume do Ipea "Comunidade Terapêuticas - Temas para Reflexão", nem todas as entidades buscam necessariamente (ou unicamente) a conversão religiosa dos acolhidos, mas esse método se repete em muitos centros.
"Ao mesmo tempo, a busca pela transformação moral pode passar pela conversão religiosa. O mais importante é que se tratam, sim, de projetos de conversão (lida dessa maneira mais ampla) e que tendem a não comportar especificidades individuais. Pelo contrário, buscam homogeneizar as experiências individuais para que a retórica terapêutica sirva a todos, apesar das diferenças entre as pessoas", afirma Loeck.
Pablo Kurlander, gestor-geral da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, critica generalizações sobre o segmento. Segundo sua entidade, uma comunidade terapêutica precisa oferecer, entre outras coisas, acolhimento apenas voluntário, garantia de direitos básicos como liberdade religiosa e acesso ao mundo externo, acompanhamento individual, atendimento multidisciplinar, ligação com a rede pública de saúde e fiscalização frequente.

Isolamento e abstinência dos internos

Outra controvérsia se refere à abstinência mediante isolamento dos dependentes químicos, meta da nova política sobre drogas. Os pacientes chegam a ficar internados por meses e até anos, muitas vezes sem qualquer contato com o exterior.
Essa lógica, segundo o Conselho Federal de Psicologia, pode se assemelhar à dos manicômios, que perderam força no país desde a reforma psiquiátrica em 2001.
Quem é a favor dessa linha afirma que é preciso retirar o usuário do ambiente de consumo da droga e que só a interrupção do uso pode acabar com o vício.
Em geral, entidades de classe de psicólogos e de médicos costumam apoiar a chamada política de redução de danos - conjunto de práticas de saúde adotadas em diversos países com o objetivo de diminuir os efeitos causados pelo uso de drogas em pessoas que não conseguem ou não querem parar - e a abstinência pode ser uma das abordagens.
"A generalização do ideal de abstinência total como desejável para todos leva, em muitos casos, pessoas a alternarem entre estados de intoxicação total e abstinência total. Ou seja, é uma leitura totalizante do indivíduo que usa drogas, que não abre margem para arranjos diferentes, particulares, relacionados ao uso de drogas e ao cuidado em saúde", afirma Jardel Loeck.
Por outro lado, em sua tese de doutorado sobre comunidades terapêuticas, Pablo Kurlander aponta para "a abstinência como fator que aumenta a chance de melhores indicadores de qualidade de vida, podendo ser tanto causa quanto efeito, mas isso não significa que ninguém possa ter qualidade de vida boa se fizer uso não problemático de substâncias psicoativas".
O psicólogo Paulo Maldos, membro do Conselho Federal de Psicologia, participou das visitas às comunidades Salve a Si e Caverna de Adulão, ambas no Distrito Federal. As duas também foram contratadas pelo governo por R$ 844 mil e R$ 168 mil, respectivamente. No relatório, elas receberam diversas críticas.
"Ambas repetem o isolamento das pessoas, o corte de relações com os familiares até por meio de controle das correspondências, que são lidas por funcionários antes de chegarem aos internos", diz Maldos. "No nosso ponto de vista, essa não é a melhor forma de enfrentar o problema. Não há trabalho individualizado para cada paciente e não há qualquer projeto de vida para ele fora dali", diz.
Na comunidade Caverna de Adulão, os acolhidos chegam a ficar três meses sem qualquer contato com o exterior - a reportagem não conseguiu contato com os responsáveis. Já na Salve a Si, o tempo mínimo de internação é de seis meses.
Fundador da casa, Henrique França nega todas acusações contra a unidade, como violação de correspondências. "Esse relatório é alimentado por uma ideologia tendenciosa. Quem fez essa vistoria é anti-religião e anti-família", disse. Também afirmou que a unidade passa por vistorias mensais feitas pelo governo do Distrito Federal.
Entidades contratadas pelo governo são obrigadas a oferecer um Plano de Atendimento Singular (PAS), em que são registrados o histórico, os dados e o planejamento da saída do acolhido com a anuência voluntária do próprio ou de familiares. O acolhimento pode se estender por até 12 meses consecutivos ou intercalados, no intervalo de 24 meses.
Para Kurlander, da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, um dos principais trunfos do modelo é, ante a escassez de equipamentos públicos, ter uma capilaridade muito maior que a rede pública de saúde, principalmente em municípios menores e zonas rurais.
Já Rogério Giannini, presidente do Conselho Federal de Psicologia, afirma que as comunidades terapêuticas trabalham de forma intuitiva - ou seja, não há métodos científicos ou médicos. "A religiosidade é imposta às pessoas. Raramente existe tratamento individualizado ou projeto terapêutico para cada paciente", diz.
Ele também critica a falta de fiscalização e estudos sobre a efetividade dos tratamentos oferecidos. "Não há qualquer estudo do governo para medir o impacto e efetividade desses tratamentos. Não há nada que aponte quais comunidades produziram resultados. É uma política baseada em preceitos religiosos, intuição e ideologia."
Questionado, o Ministério da Cidadania não soube informar qual é a taxa média de recaída dos dependentes químicos em comunidades terapêuticas financiadas pelo governo federal.

Terapia do trabalho

Pesquisa do Ipea mostrou que 92,9% das comunidades terapêuticas do país usam a laborterapia como método do tratamento. O documento do MPF e do CFP também aponta que várias casas utilizam ex-internos na monitoria dos dependentes químicos - e parte delas não remunera esses funcionários.
Na comunidade Salve a Si, por exemplo, "houve relatos de uma carga de trabalho por um período de duas horas e meia diárias, no entanto, muitos trabalhavam além desse horário", segundo o relatório dos inspetores.
"Uma pessoa estava lá há dois anos com a justificativa de ter se tornado um voluntário trabalhador da casa, porém, sem receber salário e com direito somente a uma ajuda de custo". A entidade nega a acusação, dizendo que houve um engano por parte dos fiscais.
Já na Esquadrão da Vida, dois monitores sem formação em saúde são os responsáveis pelo local. "Eles trabalham por turnos de sete dias, alternando-se durante o mês. Cuidam de todos os detalhes do cotidiano: tocar o sino para demarcar os horários de despertar, rezar, trabalhar. Também decidem sobre a utilização dos espaços de oficina e acompanham as ligações realizadas pelos internos para seus familiares. Os monitores são os principais agentes de 'cuidado' da CT."
Mas a carga de trabalho chega a ser mais problemática e afetar a saúde dos internos em outros locais.
O relatório cita o caso da Casa de Resgate Emanuel, de Bandeira do Sul (MG). "Não são distribuídos equipamentos de proteção individual para os internos executarem tarefas. A equipe de visita recebeu sérios relatos de pessoas que tiveram sua visão afetada ('queimada') por trabalharem com solda sem a devida proteção."
Embora não faça parte dos novos contratos da gestão Bolsonaro, a Casa de Resgate Emanuel recebeu R$ 656 mil do governo federal de 2014 a dezembro do ano passado - mesmo após ter sido acusada maus-tratos, ela ainda foi beneficiada por três repasses de verbas.
Para Rogério Giannini, do Conselho Federal de Psicologia, esse tipo de terapia é "escandalosa". "Na prática, o que acontece é que as pessoas fazem trabalhos domésticos sem remuneração, como limpeza, manutenção, pintura e até segurança das unidades. São tarefas forçadas que não acrescentam em nada", diz.

Disciplina e punições

A disciplina passa por diversos aspectos da rotina, segundo pesquisa do Ipea. Metade proíbe faltas a cultos e cerimônias religiosas e um terço veta que essas pessoas escolham o próprio corte de cabelo. Mesmo a prática mais permitida, assistir à TV, não é indiscriminada - parte só exibe programas religiosos ou noticiários em determinados horários.
"O baixo percentual de CTs que permitem que os acolhidos mantenham relações sexuais com seus parceiros (6,3%) e com os demais residentes (0,8%) também é digno de destaque, revelando a quase unanimidade com que a sexualidade dos acolhidos é vista também como problemática e, de alguma forma, associada ao consumo de drogas", afirma o Ipea.
Conselheiro do CFP, o psicólogo Paulo Maldos presenciou esses aspectos em suas vistorias. "Relações afetivas e sexuais eram vistas como prejudiciais ao tratamento", relata.
"O trabalho terapêutico é focado na culpa e no remorso. Ou seja, a pessoa é constantemente lembrada dos males que causou à família, às pessoas, aos amigos. Não se fala sobre os pontos positivos da pessoa, mascarando as questões que as fazem mal", diz.
Na comunidade Jovem Maanaim, havia internos presos em quartos por até uma semana como punição por desvios disciplinares, segundo o documento.
"Dependendo do grau da infração, o adolescente, ou a moça interna, permanece dentro do quarto por uma semana, apenas em companhia da Bíblia", escreveram os fiscais com base em depoimentos de pacientes da casa. Outros dependentes, menores de idade, sequer eram liberados para frequentar a escola, aponta o documento.
"Também foi relatado por diversos internos que a disciplina é rígida, sendo aplicadas penas como lavar panelas e retirar o colchão do interno que, por exemplo, se recusa a participar de cultos. Um paciente psiquiátrico, de 62 anos, confirmou já ter sido punido com a retirada do colchão, o que o obrigava ficar deitado na cama de alvenaria - pelo fato de nem sempre conseguir participar dos cultos porque sentia muito sono, devido ao uso de remédios."
A unidade nega as denúncias.
Já na Casa de Resgate Emanuel, os fiscais ouviram relatos de que os internos precisam ficar nus durantes as revistas pessoais.
Em entrevista à BBC News Brasil, Sebastião Silveira, responsável pela comunidade, atribuiu os maus-tratos e desrespeitos à privacidade dos acolhidos, como retenção de documentos e violação de correspondência a uma psicóloga que atuava no local à época da vistoria. Segundo ele, a profissional defendia essas práticas para evitar recaídas e venda de drogas dentro da entidade.

terça-feira, 14 de maio de 2019

'Situação é de guerra e atingir civis é inevitável', diz procurador que defendeu soltar militares que fuzilaram carro

Autor do parecer que defende a soltura dos nove militares que fuzilaram um músico e um catador no Rio de Janeiro, o subprocurador-geral da Justiça militar Carlos Frederico de Oliveira Pereira diz que a morte de inocentes em operações no Rio de Janeiro é "inevitável" e que agentes de segurança deveriam ter "salvo-conduto" para não serem sequer processados por erros em missões.
"Você tem que ampliar mais essas garantias. Trazer para o Brasil mais o menos o que tem nos Estados Unidos, que é a imunidade qualificada, que já de início afasta qualquer processamento para a polícia quando ela atua mesmo em erro, mas na crença de que está agindo legalmente", disse em entrevista à BBC News Brasil.
Nos Estados Unidos, a chamada imunidade qualificada é uma doutrina jurídica, reconhecida pela Suprema Corte, que protege agentes do governo de serem responsabilizados pessoalmente por violações à Constituição e à lei em operações, a não ser que seja uma violação de direito que, no momento do ato, se mostrasse claramente evidente.
Na prática, isso significa que antes de um processo ser aberto contra um policial, por exemplo, é preciso convencer um juiz de que "qualquer agente" consideraria a atitude daquele policial inaceitável ou desarrazoada, consideradas as circunstâncias e a lei.nspirado nessa doutrina, Carlos Frederico de Oliveira Pereira quer que policiais e militares brasileiros tenham "garantias mais amplas" para agir em operações. Professor de Direito Penal da Universidade de Brasília, o subprocurador da Justiça militar é conhecido entre alunos por defender posições conservadoras.
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  • Questionado se o caso dos nove militares não seria um claro excesso no uso da força, pelo disparo de mais de 200 tiros contra o carro conduzido pelo músico Evaldo dos Santos Rosa, Pereira afirmou que o caso é "grave", mas que os militares agiram achando que se tratava de um "bandido".
    A orientação de Pereira pelo fim da prisão preventiva dos nove militares foi seguida até agora por quatro ministros do Superior Tribunal Militar (STM), em julgamento que começou no dia 8 de maio. O órgão tem 15 ministros. A sessão foi suspensa após um ministro pedir vista e pode ser retomado nesta semana.
    Este é o primeiro grande julgamento na Justiça militar de crime de homicídio cometido por militares contra civis desde que foi sancionada uma lei, em outubro de 2017, que retirou essa atribuição da justiça comum. Antes, cabia a um tribunal do júri julgar casos como o dos nove militares que mataram um músico e um catador no Rio de Janeiro.
    Por enquanto, só a ministra Maria Elizabeth Rocha, que é civil, votou por manter a prisão preventiva deles. Outros dez ministros do STM ainda vão votar.
    Elizabeth Rocha destacou, no julgamento, que dos mais de 200 disparos efetuados pelos militares, 83 tiros atingiram o carro conduzido pelo músico Evaldo dos Santos Rosa, que morreu baleado no local. Ela ainda leu um laudo que mostra que a segunda rajada de tiros foi dada quando o carro já estava parado, com portas abertas. Ou seja, não ocorreu em meio a um tiroteio.
    Para a ministra, a gravidade do ato foi tamanha que a prisão preventiva deve ser mantida, para garantir a ordem pública. "Verifica-se em tese uma ação completamente desmedida, irresponsável, desencadeada por um roubo ocorrido momentos antes e que não se encontrava mais em curso, inexistindo à prima face qualquer ameaça iminente, situação de risco para possíveis vítimas civis de roubo ou sequer pessoa armada", disse, no julgamento.
    Mas, na entrevista à BBC News Brasil, o subprocurador-geral militar disse que não vê nos nove militares uma "predisposição à violência" que justifique a prisão antes de serem julgados e eventualmente condenados.
    "Eles atiraram para matar, mas acreditando que o outro lado era bandido, porque tinham uma informação de roubo de veículo. A análise dos fatos não demonstra que sejam pessoas predispostas a matar os outros."
    Cinco pessoas que iam para um chá de bebê, no dia 7 de abril, estavam no carro alvejado, em Guadalupe, na Zona Norte do Rio. Evaldo do Santos Rosa foi atingido por nove tiros.
    O catador de materiais recicláveis Luciano Macedo, que passava pelo local e tentou ajudar a família também foi atingido e morreu dias depois. O sogro de Evaldo foi baleado, mas se recuperou. O filho de sete anos do músico, a esposa e uma amiga dela estavam no carro e presenciaram tudo, mas não se feriram.
    Na semana passada, a Justiça Militar aceitou denúncia contra os nove militares envolvidos na morte de Evaldo Rosa e de Luciano Macedo. Eles vão responder por homicídio qualificado, tentativa de homicídio qualificado e omissão de socorro.
    Caberá, agora, ao STM definir se esses militares devem responder ao processo em liberdade, como defende Carlos Frederico de Oliveira Pereira, ou continuar presos preventivamente.
    Leia os principais trechos da entrevista:
    BBC News Brasil - O senhor deu parecer para liberar da prisão preventiva os militares que deram 83 tiros contra um veículo no Rio e mataram dois civis. Se o STM seguir essa orientação, não passará a ideia de impunidade diante de uma operação que chocou o país?
    Carlos Frederico de Oliveira Pereira - Aquela foi uma prisão em flagrante convertida em prisão preventiva. O que estamos discutindo é a prisão preventiva e as pessoas estão confundidas com o mérito. Eu deixei claro, no parecer, de que é um duplo homicídio.
    Mas os pressupostos de prisão preventiva não estão presentes, na minha opinião. Não está presente que os agentes do crime vão se furtar à aplicação da lei penal. Uma coisa são os requisitos da preventiva e a outra prisão em razão de condenação.
    BBC News Brasil - É um caso que gerou muita comoção pela quantidade de tiros atingindo um carro de uma família com criança. Como responder à indignação da população e ao medo de que isso se repita?
    Pereira - Com relação à morte de civis, o que acontece? Você tem embates com os criminosos, os traficantes, que são armados fortemente. E a imprensa, a meu ver, esquece que em determinadas situações aquilo entra no conceito da convenção de Genebra de que ultrapassa um mero conflito interno. São criminosos organizados e extremamente armados.
    Quando você vai fazer operação de repressão ao crime, há tiroteio em meio a civis. Eles passam a atacar os militares com arma de guerra. O problema de atingir civis é inevitável, seja no caso das Forças Armadas seja com a PM. Como resolver isso: só se você conseguir pacificar aqueles locais e isso vai demorar muito tempo.
    BBC News Brasil - Realmente, há complexidades nos embates entre policiais e traficantes em áreas dominadas pelo tráfico. Mas, nesse caso específico, o que chocou a população foi o fato de terem sido disparados 200 tiros, com 83 atingido o carro, sem que estivesse havendo ali uma troca de tiros. Não são situações diferentes?
    Pereira - Existe o episódio, que é gravíssimo... Mas acho que foram oitenta disparos.
    BBC News Brasil - Foram 200 disparos e 83 atingiram o carro.
    Pereira - Pode ter sido mesmo. Mas você sabe como aconteceu? O episódio está sendo contado de maneira isolada. Eles (os militares) tiveram dois episódios anteriores de trocas de tiros com bandidos.
    Essa foi a terceira sequência da operação. Ninguém questiona que houve homicídio doloso. Teve duas pessoas mortas. Agora, outra coisa é justificar a prisão preventiva.
    Por que eles deram 200 tiros, vão dar mais 200 tiros se forem soltos? Em face de ter havido homicídio doloso, haverá mais homicídio doloso? Poderão acontecer mais homicídios dolosos, mas não por eles. Esses militares não vão mais ser deslocados para a rua. Vão dar a eles outras funções.
    Seria válido esse raciocínio se fosse um grupo de extermínio, milicianos. Eles atiraram para matar, mas eles atiraram acreditando que o outro lado era bandido, porque tinha uma informação de roubo de veículo. A análise dos fatos não demonstra que sejam pessoas predispostas a matar os outros. Não consigo vislumbrar requisito para a prisão.
    BBC News Brasil - Um argumento citado pela ministra Elizabeth Rocha, do STM, única a votar contra o habeas corpus até agora, é o de que os militares poderiam atrapalhar as investigações e a instrução processual, considerando que eles já mentiram algumas vezes nos interrogatórios. Qual a sua visão sobre isso?
    Pereira - Mentir todo réu mente. O réu pode mentir aqui no Brasil - diferentemente da legislação inglesa. As perícias foram feitas, os réus foram ouvidos. Se eles tentarem causar influência em alguma testemunha, aí sim você terá fundamento para a prisão.
    BBC News Brasil - O senhor vê fundamento para a denúncia por homicídio doloso?
    Pereira - Claro, mataram duas pessoas. Eu coloquei no parecer que foi duplo homicídio.
    BBC News Brasil - Esse caso, na sua opinião, deve levar a uma reflexão sobre a forma como operações policiais em áreas com civis são conduzidas?
    Pereira - Essas operações de garantia da lei e da ordem envolvem um risco imenso, tanto para a população civil quanto para as polícias.
    As operações que acontecem no Rio de Janeiro, por maior que seja o planejamento, dada a geografia urbana, e o fato de que há criminosos que dominam territórios e a população local, e que realizam as operações criminosas em meio à população civil, a repressão penal inevitavelmente assume uma gravidade absurda.
    São operações de guerra. O risco de morrer civil é total. Agora, quando se trata do Exército, eles têm treinamento, mas não a vivência diária. A PM enfrenta aquilo todos os dias. Não é a mesma situação.
    BBC News Brasil - O senhor é a favor do trecho do projeto de lei do ministro Sérgio Moro que permite ao juiz deixar de aplicar pena a policiais que matarem civis em situação de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção"?
    Pereira - Você tem é que ampliar mais essas garantias. Trazer para o Brasil mais o menos o que tem nos Estados Unidos, que é a imunidade qualificada, que já de início afasta qualquer processamento para a polícia quando ela atua mesmo em erro, mas na crença de que está agindo legalmente.
    O policial nos Estados Unidos trabalha na rua sabendo que vai ter enfrentamento e trabalha tranquilo sabendo que não vai ter um promotor que, em caso de embate, vai denunciá-lo por homicídio. Muito mais que isso que está sendo proposto lá (no Congresso), você tem nos Estados Unidos.
    Aqui no Brasil, mesmo se você se defender aqui matando alguém, a possibilidade de você ser denunciado é certa. Aqui não tem garantia. Quem é que vai querer trabalhar desse jeito?
    BBC News Brasil - O salvo-conduto que o senhor defende se aplicaria nesse caso dos nove militares que mataram o músico e o catador?
    Pereira - Veja só, em qualquer lugar do mundo, se vier um assaltante te matar e você meter um tiro na cara dele e matar ele, você cometeu um homicídio doloso. Agora, o que você vai alegar em sua defesa?
    BBC News Brasil - Nesse caso, legítima defesa...
    Pereira - Exato, isso não exclui o fato de você ter matado dolosamente...
    BBC News Brasil - Mas, no caso dos nove militares, eles atiraram contra uma família que não estava atirando de volta nem armada.
    Carlos Frederico de Oliveira Pereira - Mas eles acreditavam que estavam matando (civis)? O advogado vai fazer a defesa. O que interessa, para a gente (Ministério Público Militar) agora é que o fato é tipificado na lei como homicídio doloso. Agora, o que vai acontecer lá na frente, ele vai se defender. O advogado vai alegar o que entende ser matéria de defesa dele. Não me cabe me pronunciar sobre isso.
    BBC News Brasil - O senhor também é favorável ao uso de helicóptero em operações da polícia em áreas densamente povoadas, como a gente viu no início da semana passada na Favela da Maré? E ao uso de snipers para abater quem é visto com fuzil?
    Pereira - É óbvio, é claro. Isso não é criminoso comum. São pessoas com fuzis. E eles estão tendo acesso facílimo a esses armamentos.
    BBC News Brasil - Helicóptero atirando não amplia ainda mais a letalidade dessas operações, inclusive atingindo civis?
    Pereira - E vai fazer o que? Vai fazer o que? Ele (criminoso) escolhe a população civil para fazer de escudo. Isso inclusive é crime de guerra. Essa é a realidade do Brasil.
    BBC News Brasil - Críticos à ampliação das garantias para que policiais não sejam punidos por mortes de civis dizem que isso pode abrir caminho para mais erros graves, como o que a gente viu no Rio de Janeiro, com os 83 disparos contra o carro e a morte de duas pessoas...
    Pereira - Isso é uma realidade diária do Rio de Janeiro. Não é uma novidade. É o dia a dia. A novidade aí é o Exército entrar nisso. Isso está acontecendo agora em algum ponto do Rio de Janeiro.
    As operações necessitam de apoio aéreo. Isso é uma operação de guerra, querida. É isso aí. Você chega lá no morro e lá dentro são centenas de fuzis no morro.
    BBC News Brasil - O que o senhor diria para as famílias que perderam os parentes nessas operações?
    Pereira - É mais uma vítima de uma lista enorme. É uma tragédia. Qual a resposta que podemos dar às vítimas que morrem na Síria? É uma tragédia de país pobre. Tem que buscar reparar na Justiça.
    Se todo mundo parar de usar droga, o problema talvez acabe, embora eu não ache que eles vão abandonar o fuzil para montar uma banca na feira. Coitadas dessas famílias. Ninguém é insensível à dor delas. É uma tragédia horrorosa, mas infelizmente é nossa realidade. É o Rio de Janeiro, é isso aí.

    quinta-feira, 18 de abril de 2019

    A ascensão da Okaida, facção criminosa com 6 mil 'soldados' na Paraíba

    Era para ser uma espécie de clipe musical sobre o crime na Paraíba. Sete jovens estão com os rostos cobertos por panos brancos. Ao violão, um deles toca uma melodia roqueira. Três garotos, mais atrás, carregam facas e fazem movimentos de dança como se estivessem golpeando alguém. À frente, o vocalista nomeia a música: "Mago do Facão".
    A letra começa assim: "Pensamento eloquente me leva a mais um aviso / poder do crime fica cada vez mais infinito". O refrão, por sua vez, explica quem é o protagonista do som: "Nossa união é massa em várias quebradas / fechamento forte / facção Okaida".
    O vídeo, gravado em uma prisão e publicado no YouTube em maio de 2017, mostra duas características da facção que hoje praticamente domina o crime paraibano: juventude e autopromoção em redes sociais.
    Composta de jovens e adolescentes, a Okaida cresceu nos últimos anos: atualmente, domina vários municípios, expandiu seus braços para Pernambuco e conta com 6 mil membros "batizados" na Paraíba, segundo investigação do Ministério Público Estadual paraibano.
    Como comparação, o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior e mais poderosa facção do país, tinha pouco mais 30 mil "filiados" em 2017 - recentemente, o grupo fez uma campanha para aumentar seu "exército".
    Em outubro do ano passado, os "soldados" da Okaida deram outra demonstração pública de força: promoveram queimas de fogos de artifício para comemorar o aniversário da sigla em seis cidades da Paraíba, como João Pessoa, Campina Grande, Santa Rita e Guarabira. Vídeos da festa estão nas redes sociais e no YouTube.
    Em bairros mais pobres da capital paraibana, a Okaida dita até um código de conduta para seus integrantes e moradores. As proibições são pintadas nos muros: não pode usar drogas na frente de crianças, roubar na comunidade, escutar som alto tarde da noite e andar de moto em alta velocidade.

    A origem da Okaida

    Há histórias diferentes sobre a origem da facção. Okaida é uma forma abrasileirada do nome da rede terrorista que já foi comandada por Osama bin Laden, a Al-Qaeda. Mas a versão brasileira não tem nenhum aspecto religioso por trás.
    O certo é que a quadrilha cresceu em paralelo com seu maior rival, a facção Estados Unidos, criada em meados dos anos 2000.
    O conflito entre os dois grupos de criminosos já dura alguns anos nas ruas e nos presídios - e, ironicamente, emula a guerra empreendida pelos americanos contra o terrorismo.
    No início dessa década, enquanto a Okaida dominava bairros de João Pessoa como a Ilha do Bispo, São José e Alto do Mateus, os membros dos Estados Unidos estavam presentes nas regiões de Mandacaru, Bola da Rede e Novais.
    Os dois grupos também se diferenciam pelas tatuagens de seus integrantes, como registra uma dissertação de mestrado concluída em 2015 na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Feito pelo tenente-coronel Carlos Eduardo Santos, da Polícia Militar da Paraíba, o estudo mapeou os símbolos marcados na pele dos filiados às facções.
    Quem é da Okaida costuma marcar a pele com palhaços ou com o personagem Chucky, do filme Brinquedo Assassino. Já os membros da Estados Unidos tatuam a bandeira americana ou o desenho de um peixe.
    Nos últimos anos, porém, o crescimento da Okaida praticamente suplantou sua rival em número e força, ainda que a Estados Unidos continue ocupando alguns poucos bairros e pavilhões de cadeias de João Pessoa, segundo agentes de segurança.

    A presença do PCC

    A relação entre as duas facções locais tem forte influência de um elemento "forasteiro": o PCC. Até 2010, a Okaida era mais próxima do grupo paulista, que fornecia parte da droga vendida nas ruas. Mas um assassinato, que teria sido cometido a mando do PCC sem o aval dos paraibanos, afastou os grupos e criou um antagonismo violento entre eles.
    Nos anos seguintes, o grupo de São Paulo se aliou à Estados Unidos, aumentando o conflito local. A guerra foi promovida dentro e fora dos presídios com episódios de barbárie.
    Segundo pesquisadores, desde o ínico da década passada, o PCC decidiu atuar no atacado e fornecer a droga para grupos menores venderem nas capitais.
    "No início dos anos 2000, o PCC chegou nas fronteiras e conseguiu importar a droga, que ele repassa para aliados menores", diz Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores do livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Ed. Todavia).
    A chegada dos paulistas no Nordeste e a maior oferta de drogas aumentaram rivalidades entre traficantes locais, avalia Paes Manso. "Como é um mercado ilegal, as disputas se dão pela força. E como o PCC também colocou armas na região, essa dinâmica produziu mais violência e assassinatos", diz.
    Na Paraíba, por exemplo, a taxa de homicídios cresceu bastante nesse período. Em 1996, o Estado registrava 19,2 assassinatos por 100 mil habitantes, segundo o Atlas da Violência. Já em 2011, seu pico, o número chegou a 42,5 mortes por 100 mil habitantes.
    No Rio Grande do Norte, que também enfrenta problemas com facções criminosas, o aumento foi mais dramático. Em 1996, o Estado registrava 9,4 assassinatos por 100 mil - em 2016, foram 53,3, alta de 466% em 20 anos.

    Os jovens da Okaida

    Um dos motores do crescimento da Okaida foi sua política de filiar menores de idade - embora a Estados Unidos também utilize adolescentes, seu aliado PCC evita batizá-los, segundo agentes de segurança da Paraíba.
    "Os que se dizem integrantes de facções no nosso Estado são pessoas bastante jovens, inclusive admitindo-se adolescentes entre os faccionados", diz o promotor Manoel Cacimiro Neto, do Gaeco (Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado) do Ministério Público da Paraíba.
    Divergências com as "doutrinas" do PCC, aliás, explicam também a criação de outra facção nordestina, o Sindicato do Crime do Rio Grande do Norte. O grupo potiguar surgiu depois que criminosos questionaram a obrigação do PCC de submeter decisões a chefes em São Paulo.
    Essa presença massiva da juventude nas facções do Nordeste tem impacto negativo no índice de homicídios dessa faixa etária - são eles as maiores vítimas dos conflitos.
    Segundo o Atlas da Violência, que reúne dados até 2016, a taxa de mortes violentas entre jovens paraibanos de 15 a 29 anos chegou a 70,4 pessoas por grupo de 100 mil habitantes. Embora o número seja considerado muito alto, ainda é menor que os de Estados vizinhos, como Ceará (87,6) e Pernambuco (105,3) - a média nacional é 65.
    No Rio Grande do Norte, cuja quadrilha Sindicato do Crime também aposta no aliciamento de jovens e adolescentes, o índice de assassinatos entre eles chega a 125,5 por 100 mil habitantes - alta de 734% em 20 anos.

    Rede de facções

    Segundo Marcelo Gervásio, presidente da Associação dos Agentes Penitenciários da Paraíba, os maiores presídios do Estado têm alas separadas para integrantes da Okaida, Estados Unidos e PCC, mas a primeira ganha em número.
    "Essa divisão ocorre para garantir uma certa segurança do preso", afirma.
    Do lado de fora das prisões, a Okaida se aliou ao Sindicato do Crime em uma rede de facções que se contrapõem à presença do PCC no Norte e no Nordeste - também fazem parte o Comando Vermelho, do Rio, e a Família do Norte, que atua na região amazônica.
    Essa divisão causou três massacres de presos em cadeias da região em 2017 - os dois primeiros em Manaus e Boa Vista. O último ocorreu no presídio de Alcaçuz, na Grande Natal - ao menos 26 homens ligados ao Sindicato do Crime foram mortos por detentos do PCC. O motim seria uma vingança pelo ataque em Manaus, quando dezenas de integrantes da facção paulista foram assassinados por membros da Família do Norte.
    Segundo o promotor Manoel Cacimiro Neto, do Gaeco, essa rede anti-PCC consegue abastecer a região com drogas e armas vindas de países fronteiriços, como Colômbia e Bolívia.
    Já o delegado Braz Morroni, ex-chefe da delegacia de narcóticos da Paraíba, aponta que a Okaida consegue carregamentos oriundos do chamado "polígono da maconha", região de Pernambuco conhecida por produzir grandes quantidades de cannabis.
    Para o deputado estadual paraibano Walber Virgolino (Patriotas), que foi secretário de Administração Penitenciária da Paraíba e do Rio Grande do Norte, um dos principais objetivos das facções locais é impedir que o PCC domine o tráfico de drogas na região. "Hoje, o PCC só não tem o controle da Paraíba por causa da Okaida", diz o parlamentar, hoje na oposição ao governador João Azevedo (PSB).

    A 'nova doutrina'

    Há pouco mais de um ano, houve uma cisão na Okaida. Integrantes ficaram descontentes com o então chefe do grupo, o detento André Quirino da Silva, conhecido como Fão.
    "Alguns membros ficaram muito irritados com a violência praticada por esse líder. Fão mandava matar pessoas da própria facção", diz Braz Morroni, hoje titular da delegacia de roubos e furtos.
    Surgiu uma dissidência chamada Okaida RB (iniciais dos apelidos de presos conhecidos como Ro Psicopata e Betinho, criadores do novo grupo). Rapidamente, a nova facção ganhou milhares de adeptos (6 mil, segundo o Ministério Público), assumindo a maior parte do poder da antiga.
    Embora a Okaida RB ainda seja inimiga declarada do PCC, ela passou a seguir parte de suas "doutrinas", segundo Morroni. A nova estratégia, que inclui ditar um código de conduta nos bairros, tenta diminuir os assassinatos e roubos próximos de pontos de venda de droga - com isso, a facção evita a presença da polícia.
    "O foco são os negócios e não mais a violência extrema. Antigamente, dívidas de tráfico eram punidas com a morte. Hoje, a Okaida negocia outras formas de pagamento ", afirma o delegado.
    Para o promotor Manoel Cacimiro Neto, a Okaida "não possui uma estrutura hierarquizada rígida, a exemplo do PCC". Ou seja, apesar de existirem chefes com maior influência, a facção "pulverizou" o poder em vários territórios, segundo Neto.

    A expansão

    A ascensão da Okaida coincide com uma sequência de quedas dos homicídios na Paraíba. Segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que compila dados das secretarias estaduais da área, o Estado registrou 1.286 assassinatos em 2017 - baixa de 16,7% em relação a 2014.
    Segundo especialistas, boa parte da queda está relacionada ao programa de redução de homicídios do governo estadual, o "Paraíba Unida pela Paz", que conseguiu diminuir a taxa de homicídios para 31,9 mortes a cada 100 mil habitantes em sete anos.
    Por outro lado, a Okaida expandiu seus braços para outros cidades paraibanas. A facção atua em muncípios como Cachoeira dos Índios e Campina Grande, a segunda maior cidade do Estado.
    Reportagem do jornal Correio da Paraíba mostrou que vários bairros da periferia de Campina Grande já estão ocupados pelo grupo criminoso - em um deles, por exemplo, integrantes da facção têm o controle até das chaves de uma escola pública.
    Ao sul, células da Okaida também foram desmontadas pela polícia em cidades de Pernambuco.
    Em março do ano passado, uma operação da Polícia Civil descobriu que integrantes da Okaida estavam organizando roubos e o tráfico de drogas em Camutanga, município na zona da mata pernambucana. Outra célula foi descoberta neste mês em Afogados, bairro do Recife.
    Os presídios pernambucanos também têm presença de integrantes da Okaida, segundo João Carvalho, presidente do sindicato dos agentes penitenciários local. "Nas cadeias de Pernambuco, a força das facções se divide entre PCC, Okaida e Comando Vermelho", diz.

    Os presídios e o que dizem os governos

    Tanto a Paraíba quanto Pernambuco têm superlotação em suas cadeias. Aliada à precariedade estrutural dos espaços, o aumento exponencial da massa carcerária facilita, em tese, o aliciamento de novos "soldados" pelas facções criminosas.
    Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a Paraíba apresenta um déficit de 5.430 vagas no sistema carcerário - no total, o Estado tem 13.189 presos. O governo diz que tem investido na criação de novos presídios.
    Já Pernambuco tem 32.884 detentos para 11.689 vagas - déficit de mais de 21 mil. O governo de Paulo Câmara (PSB) afirma que "criou nos últimos quatro anos 2.374 vagas nos presídios" para diminuir a superlotação.
    Sobre a expansão da Okaida, o governo da Paraíba diz que programas estaduais de redução da violência têm dado certo. "O resultado foi a queda de crimes contra a vida durante sete anos consecutivos no Estado e também nos primeiros três meses de 2019."

    sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

    Milícia no Rio de Janeiro: como é a vida em Rio das Pedras, bairro dos suspeitos da morte de Marielle

    Quando deixou sua cidade no Nordeste, ainda jovem, rumo ao Rio de Janeiro, Zélia (nome fictício) sabia da fama de perigosa que a cidade carregava, mas tinha ouvido falar que o lugar onde se instalaria, Rio das Pedras, perto da Barra da Tijuca, na zona oeste, era mais calmo.
    Sua fama de "favela tranquila" não se deve à ausência de violência, mas à imposição de certa ordem pela força e pelo medo, não do tráfico, mas da milícia, grupo armado violento formado por integrantes e ex-integrantes de forças de segurança do Estado, como policiais, bombeiros e agentes penitenciários.
    Apesar de ser a terceira maior favela da cidade, atrás de Rocinha e Maré, Rio das Pedras não costumava frequentar o noticiário nacional como as outras duas, marcadas por disputas entre facções criminosas e entre criminosos e policiais.
    Nos últimos meses, no entanto, Rio das Pedras vem se tornando mais conhecida. Em janeiro, o Ministério Público e a Polícia Civil do Rio prenderam lideranças de uma milícia que atua ali, no bairro vizinho de Muzema e adjacências.
    Investigações mostraram que Rio das Pedras é a sede do chamado Escritório do Crime, suposto grupo de extermínio formado por policiais reformados ou na ativa que pode ter sido responsável pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, que aconteceu em março de 2018 e até hoje, 11 meses depois, não foi esclarecido.
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    • O que são e como agem as milícias acusadas de matar Marielle FrancoA polícia encontrou imagens que mostram o carro usado pelos assassinos passando por um via que margeia a favela.
      Outro motivo que fez país voltar o olhar para o lugar é por sua aparente conexão com o poder. Segundo o jornal O Globo, Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL) - filho do presidente Jair Bolsonaro - ficou abrigado ali após vir à tona que ele fora citado em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) devido a uma movimentação atípica de valores em sua conta.
      Em 2005, o filho do presidente homenageou o policial suspeito de integrar a milícia, Adriano Magalhães da Nóbrega, entregando a ele a medalha Tiradentes, uma honraria concedida pelo Estado do Rio a pessoas que prestaram bons serviços públicos. Alvo da operação policial deflagrada em janeiro, Nóbrega está foragido.

      Como é morar em Rio das Pedras hoje

      Desde 1951, quando começou a ser ocupada, a favela de Rio das Pedras cresceu muito, e rapidamente, acompanhando o desenvolvimento da cidade na zona oeste. Seu nome se deve ao rio que a atravessa, que nasce na floresta e deságua na Lagoa da Tijuca.
      No início, era ocupada por pescadores, diz Jorge Jáuregui, arquiteto responsável pelo projeto de urbanização Favela-Bairro, implementado (mas não concluído) na década de 1990.
      Sua população, esparsa durante a década de 1960, foi aumentando atraída especialmente pelas oportunidades que surgiam na região da Barra da Tijuca, bairro próximo e que passou por um boom de construção civil nas décadas seguintes. Muita gente veio também de outras favelas, numa época em que o poder público adotava uma política de remoção, segundo dissertação de mestrado em arquitetura pela USP de Izabel Mendes.
      Cresceu até se tornar a terceira maior favela do Rio, segundo estimativa da Prefeitura com base no IBGE de 2010. Tem 63.484 habitantes, boa parte deles de origem nordestina. Moradores contam que até hoje há um ônibus que faz semanalmente viagens de e para o Ceará direto do bairro.
      A presença nordestina é perceptível em qualquer ponto do bairro, nos sotaques das pessoas, no forró das caixas de som. As ruas são agitadas.
      Marta (nome fictício) veio de um Estado do Nordeste depois de se casar com um homem que já morava em Rio das Pedras. Célia (também nome fictício) veio ainda adolescente, deixando para trás uma vida de doméstica pela qual ganhava R$ 150 por mês.
      Elas e outros moradores com quem a BBC News Brasil conversou dizem que sabem que a região é controlada por milicianos, que isso é comentado em conversas, mas não lidam diretamente com eles e não têm sua vida afetada por suas atividades.
      "Às vezes a gente fica sabendo que alguém fez alguma coisa errada - roubou, vendeu droga, algo assim -, e aí essa pessoa some", diz uma delas.
      "Uma vez, era cedo de manhã, vi dois homens numa moto atirarem nos pés de outro homem que estava em pé em frente a um bar. Aqui é assim, eles avisam uma vez, duas vezes, na terceira te pegam", diz outro morador. "Você leva uma vida tranquila, mas não pode fazer coisas que eles acham ruins. Acostumar, a gente não se acostuma, mas vive um dia após o outro."
      A violência lá é presente, mas mais velada do que em outras favelas, dizem.
      "Não tem gente armada na entrada e nas ruas que nem em outros lugares. Se pudesse, me mudaria para um bairro melhor, mas tenho amigos que moram em favelas como a Rocinha e sei que a vida deles é mais difícil. Eles passam noites em claro ouvindo tiroteio, às vezes não sabem se podem sair de casa para o trabalho. Aqui pelo menos não tem isso."

      O que é a milícia e por que Rio das Pedras é considerado seu 'berço'

      É comum ouvir que Rio das Pedras é o berço das milícias do Rio. Ainda que não seja possível afirmar isso categoricamente, é consenso entre pesquisadores que esses grupos têm décadas de atuação no bairro. O modelo de poder paralelo, à margem do estado mas com a participação de membros dele, hoje é forte principalmente na zona oeste da capital e na Baixada Fluminense.
      "Estes grupos podem ter 20, 30 ou até 40 membros. São pessoas que de alguma forma têm acesso privilegiado a armas e bons contatos na polícia, o que lhes confere proteção. Eles ocupam uma área sob a justificativa de que proporcionarão a segurança que o Estado não é capaz de fornecer, deixam um grupo armado no local e partem para outras áreas para invadi-las", diz Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
      As milícias têm como objetivo principal o lucro, obtido a princípio pela cobrança da proteção oferecida nestes locais.
      "Eles chegam dizendo que trarão a paz, mas isso tem um preço, que é a taxa de segurança imposta a moradores e comerciantes. Quem se opõe, é morto. Depois, as milícias percebem que podem criar um negócio mais amplo e ampliam o portfólio de suas atividades", explica o sociólogo José Cláudio de Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
      O pesquisador diz que atualmente as milícias estão envolvidas na oferta de uma variedade de serviços, como venda de água, gás e cestas de alimentos, transporte clandestino, TV a cabo e internet piratas, roubo e refino de petróleo cru para fabricação de combustível, coleta de lixo e também na apropriação de terras públicas e privadas abandonadas ou sem uso, que são loteadas e vendidas ilegalmente.
      No início, esses grupos não eram chamados de milícia, mas de "polícia mineira".
      "Num primeiro momento, surgiram grupos que são protótipos de milícia, associados a ocupações urbanas de terra, liderados por civis. Eles constroem relações com a população e elegem lideranças, sempre matando e fazendo o uso da violência. A partir dos anos 2000, o modelo atual, liderado por pessoas ligadas às forças de segurança, começa a emergir", diz Alves.
      Seguindo linha parecida com a de Alves, o sociólogo Ignacio Cano, que também pesquisou milícias no Rio, diz que o modelo era um pouco diferente do de hoje. "Havia nas polícias mineiras não só forças de segurança mas também líderes comunitários que não eram policiais." Um exemplo de Rio das Pedras era Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho, candidato da associação de moradores eleito vereador em 2004 e assassinado em 2009.
      Quando começou a fazer pesquisa em Rio das Pedras, na década de 1990, Cano diz já havia um grupo que controlava o território.
      O tipo de atividade era diferente naquela época. "Não ia na linha de pagamento de taxas por serviços, como hoje, era mais um controle imobiliário. Controlavam todas as transações - quem podia construir onde etc. Hoje é um modelo mais invasivo, que lucra a partir de qualquer coisa", diz Cano.
      Esses grupos, diz Cano, impunham medo e criavam certa estabilidade na região. Não deixavam que traficantes de drogas se estabelecessem e eram a principal autoridade local.
      "O Nadinho dizia, 'aqui o povo vem do Nordeste, é um povo ordeiro, que não gosta de tráfico'. Eles impunham ordem, expulsavam o tráfico, diziam o que podia ou não fazer, havia um projeto moral - decidiam se podia ouvir certas letras de música ou não, coisas assim. Diretores de escola, quando não conseguiam ônibus para os alunos, iam falar com a milícia e eles providenciavam. Há depoimentos que mostram que, quando crianças estavam aprontando na escola, chamavam a milícia para mandar uma mensagem."

      Problema crescente

      Cano diz que havia também certa condescendência do poder público em relação a esses grupos. "O Cesar Maia (ex-prefeito do Rio) dizia que eram um mal menor."
      Depois que funcionários do jornal O Dia foram torturados por milicianos, essa postura mudou. Entre 2006 e setembro deste ano, 1.709 pessoas foram presas por ligações com milícias, e os milicianos foram obrigados a adotar um perfil mais discreto, diz Cano.
      Alves acha que o fortalecimento da milícia em Rio das Pedras tem a ver com o acelerado crescimento populacional da favela e a demanda por terras.
      "É uma comunidade que se expande muito rápido, tem um mercado imobiliário pujante. A milícia tem acesso ao mapa da região e começa a ver onde pode montar negócios, ocupar o solo urbano, é um grande negócio."
      Segundo o estudo Favelas Sob o Controle das Milícias no Rio de Janeiro, de Alba Zaluar e Isabel Siqueira Conceição, em 2002 e 2003 a associação de moradores fez uma campanha de regularização e transferência de títulos eleitorais dos moradores de Rio das Pedras, já que boa parte deles vinha do Nordeste. A intenção era eleger Nadinho, o que deu certo.
      O estudo sugere que teria sido a partir daí que começou "a grande expansão da milícia". Elas assumiram controle territorial em outros bairros, às vezes tomando-os de traficantes. Também foi a partir de então que entraram de vez para a política - outras favelas dominadas por milícias começaram a eleger representantes para o Legislativo da cidade e do Estado.
      Cano diz que as eleições lá acontecem da mesma maneira que em outros territórios controlados por grupos armados: "faz campanha quem eles (milicianos) querem".

    domingo, 27 de janeiro de 2019

    Brumadinho: Justiça libera acesso a dados sobre sinal de celulares para auxiliar na localização de desaparecidos

    As equipes dedicadas ao resgate das vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho e à procura dos desaparecidos poderão contar com a ajuda dos dados sobre os sinais de celulares de quem estava na região no horário do acidente quando as buscas forem retomadas.
    Na noite de ontem, a AGU (Advocacia Geral da União) obteve na Justiça Federal de Minas Gerais uma liminar que exige que as operadoras de telefonia móvel liberem informações sobre os aparelhos daqueles que estavam na área afetada pela tragédia no Córrego do Feijão sempre que solicitado pelas autoridades envolvidas com a operação de resgate e salvamento.
    Através dos dados é possível saber também qual torre de comunicação recebeu o último sinal emitido por um celular que por ventura esteja agora inativo, diminuindo a área de busca o que facilitaria a localização dos aparelhos.
    "O objetivo é auxiliar as equipes de busca a localizar as cerca de 350 pessoas desaparecidas após o ocorrido", diz a AGU em comunicado.
    Com as informações, as equipes de socorro poderiam saber, por exemplo, quais aparelhos se mantiveram ativos após a tragédia e quais estão inativos desde então.
    A assessoria de imprensa do Corpo de Bombeiros afirmou que, até o momento, o recurso ainda não está sendo utilizado e que os profissionais responsáveis pela estratégia de resgate estão reunidos no quartel da Polícia Militar no Morro do Querosene para definir os próximos passos da operação de resgate.
    Na madrugada deste domingo, técnicos da mineradora Vale informaram que havia "risco iminente de rompimento" da barragem B6 e, por isso, o trabalho dos Bombeiros e da Defesa Civil no local foi interrompido.
    A decisão da Justiça de Minas se estende aos clientes que estavam nas imediações da Mina de Córrego de Feijão entre a meia-noite de quinta-feira, dia 24 de janeiro, e o mesmo horário do dia 25, em um raio de 20 quilômetros.
    Conforme o pedido da AGU, as operadoras Vivo, Tim, Claro, Oi, Nextel, Algar Telecom e Sercomtel devem entregar os dados diretamente aos envolvidos nas operações.
    A agência informa que autorização judicial é necessária porque o sigilo das comunicações é protegido pela Constituição.

    Ajuda externa

    Neste domingo, chega a Minas Gerais uma equipe de 136 soldados do Exército israelense, especializada em operações de resgate em situações extremas, para auxiliar na busca por sobreviventes.
    A informação, antecipada no sábado pelo presidente Jair Bolsonaro, foi confirmada pelo governo de Minas Gerais.
    Na segunda-feira, a equipe fará um reconhecimento da área e iniciará em seguida os trabalhos. Além de especialistas em salvamento, a equipe israelense conta com cães farejadores e 16 toneladas de equipamentos, incluindo radares terrestres.

    segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

    Infestação de escorpiões desespera famílias no interior de SP e Ministério da Saúde cria 'força-tarefa'

    A fotógrafa Caroline Ruffo, de 38 anos, moradora de Americana, cidade a 120 km de São Paulo, precisou mudar do bairro Terramérica para se ver livre da infestação de escorpiões em sua casa - em 20 dias, encontrou pelo menos 10 bichos.
    A técnica em RH Jessika Martins, de 27 anos, que mora no Jardim São Pedro - bem em frente a um tradicional colégio da cidade - encontrou 31 escorpiões em sua casa num período de 15 dias e até o trilho do box do banheiro ela retirou em busca de ninhos do animal.
    A dona de casa Lúcia Marchesin, de 38 anos, já foi picada duas vezes pelo pequeno aracnídeo, precisando receber soro antiescorpiônico nas duas ocasiões.
    Os relatos acima mostram um pequeno retrato do aumento dos casos de acidentes envolvendo escorpiões não apenas no interior de São Paulo, mas em todo o Brasil - o que tem levado as famílias ao desespero para tentar eliminar os animais de dentro de casa.
    Segundo série histórica do Ministério da Saúde feita a pedido da BBC News Brasil, o número de casos passou de 52.509 em 2010 para 124.903 no ano passado - um salto de 138% nos registros. Se considerarmos as mortes, o aumento no período foi de 152%, saindo de 74 em 2010 para 184 em 2017.
    O aumento de casos é tão expressivo que o número de mortos por picadas de escorpião ultrapassou o de picados por cobras - que até então lideravam o ranking de animais peçonhentos que mais matam no Brasil.
    Apesar de o crescimento ser um problema nacional, os Estados de São Paulo e de Minas Gerais são os que exibem a situação mais alarmante: ambos registraram, respectivamente, 26 e 22 mortes por picadas de escorpião no ano passado.
    Ainda em Americana, a dona de casa Daiana Pântano, também moradora do bairro Terramérica, já desembolsou cerca de R$ 5.000 reais para capinar terrenos vizinhos à sua casa que estão abandonados e para comprar produtos para vedar frestas e dedetizar sua casa.
    Em Santa Bárbara d'Oeste, cidade vizinha, uma criança de 10 anos morreu no início deste mês após ser picada duas vezes por um escorpião.
    A primeira picada foi no pé. Ao reagir pela dor, a criança também foi picada na mão. Ela chegou a ser socorrida, mas morreu antes da chegada do soro.
    Na mesma semana, uma criança de 13 anos foi picada dentro de uma escola estadual na cidade e um detento foi picado dentro da cadeia pública. Ambos foram atendidos em hospital e passam bem.

    Força tarefa para educar médicos e agentes de saúde

    O Ministério da Saúde reconhece o problema e afirma que desde 2009 faz campanhas educativas com os profissionais de saúde dos Estados para orientá-los a respeito do pequeno aracnídeo.
    Mas, diante do crescimento acelerado de picadas, juntou forças com o Instituto Butantan - fabricante do soro antiescorpiônico - para elaborar uma série de vídeos educativos e ferramentas educacionais voltadas para médicos e agentes de saúde, com foco na vigilância, prevenção e assistência das vítimas.
    A médica Fan Hui Wen, gestora de projetos do Núcleo Estratégico de Venenos e Antivenenos do Butantan, é uma das responsáveis pelo material que está sendo elaborado e será distribuído aos Estados a partir de 2019.
    De acordo com ela, o objetivo é orientar os profissionais de saúde a não negligenciarem possíveis casos de envenenamento e que requeiram o uso imediato do soro. Também serão oferecidas vídeo-aulas para técnicos e agentes responsáveis pela vigilância em saúde.
    "Até agora, estamos enxugando gelo no combate aos acidentes com escorpião. Os casos estão aumentando e precisamos encontrar uma resposta para a população. Essa parceria vai permitir fornecermos educação e treinamento à distância para todo o País", afirma Wen.

    Pesquisa para entender o comportamento da espécie

    E não é apenas o Ministério da Saúde que está buscando formas de controlar a infestação de escorpiões. O Butantan também firmou uma parceria com a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) para iniciar uma pesquisa inédita que vai mapear a evolução dos casos e buscar entender o comportamento da espécie - no caso, o Tityus serrulatus, o escorpião amarelo, o mais comum na região Sudeste.
    Segundo Wen, no começo dos anos 2000, os casos ficavam restritos à região de Ribeirão Preto. Hoje, já há casos em todo o Estado de São Paulo, e também na região Sul do País.
    "Precisamos entender como o escorpião se comporta, como ele se desloca. Ele não anda quilômetros, ele é levado de um lugar para o outro. Hoje em dia já nem conseguimos dizer mais qual é o seu habitat natural, de tão bem que ele se adaptou às áreas urbanas", diz a médica.
    O professor Francisco Chiaravalotti Neto, do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP, será um dos coordenadores do projeto. Ele explicou que o mapeamento das ocorrências será feito por meio das notificações de caso, sem coleta in loco dos animais.
    Dessa forma, explica o professor, será possível pensar novas estratégias de saúde pública e redefinir critérios de distribuição do soro antiescorpiônico, por exemplo.
    "Hoje, a logística de entrega do soro é baseada nos casos de picadas de cobra. Mas já sabemos que os escorpiões estão mais perigosos que as cobras. Essa pesquisa nos dará um norte e, talvez, a estratégia de entrega do soro mude", afirmou o professor.

    Buscar foco de escorpião como se busca o de dengue

    A médica Fan Wen, do Butantan, espera que os resultados da pesquisa tragam respostas à população e, mais do que isso, novas estratégias de combate às picadas.
    Na opinião dela, é preciso que as vigilâncias sanitárias das cidades alterem sua rotina de fiscalização e incluam o escorpião nas buscas, assim como acontece com a dengue.
    "O agente de saúde vai de casa em casa buscando focos de dengue para evitar casos, certo? Não dá mais para trabalharmos de forma isolada. Os municípios precisam incluir a busca de focos de escorpiões na rotina e fazer com que os agentes procurem o escorpião além do mosquito da dengue", avalia.

    Aquecimento global e aparecimento de baratas

    Mas, afinal, por que o número de acidentes com escorpiões tem crescido tanto na última década? Segundo o Ministério da Saúde, ainda não há uma resposta específica e nem se pode atribuir a um único fator. Mas é fato que o aumento da temperatura global tem influenciado na reprodução da espécie.
    "Os escorpiões gostam de ambientes quentes e úmidos. Há inúmeros estudos sendo feitos analisando o aumento da temperatura com o aparecimento dos escorpiões", afirma Wen.
    Outro fator que ajuda a proliferação dos escorpiões é o crescimento desordenado das cidades, com aumento da quantidade de lixo e entulhos. Nesses locais, há o aparecimento de baratas e onde há baratas, há escorpiões.
    "Cada ser humano produz, em média, 1 kg de lixo por dia. Onde tem lixo, tem barata. E no calor, elas aparecem ainda mais. As baratas são o principal alimento dos escorpiões", explica o biólogo Randy Baldresca, especialista no aracnídeo e consultor em controle de pragas.
    Além disso, a fêmea do escorpião não precisa do macho para se reproduzir - ela entra num processo chamado partenogênese e consegue se reproduzir sozinha, liberando de 20 a 30 filhotes a cada ciclo.
    "A fêmea encontrou tudo o que precisa para seu ciclo biológico: calor, umidade, comida e abrigo", diz a médica Wen.

    Dedetizar não adianta

    Ainda não existe um tipo de veneno específico para o combate aos escorpiões, por isso, as pessoas dedetizam suas casas e os bichos continuam aparecendo. Segundo Baldresca, um dos equívocos é aplicar inseticida em casa achando que vai matar os animais. De acordo com ele, os escorpiões possuem um exoesqueleto, um tipo de carapaça, que os protegem.
    "Quando ele sente o veneno, ele fica irritado com o cheiro e pode até ficar grogue, mas não vai morrer. No máximo, vai se deslocar procurando outro abrigo. Então, ao invés de matar, que era o efeito desejado, você só vai espalhar mais o animal", orienta o biólogo.

    Como cada um pode se proteger?

    Diante de um cenário tão desfavorável, os especialistas recomendam ficar atentos à limpeza de casa e dos terrenos vizinhos. "É preciso que haja uma mudança de comportamento das pessoas. Não adianta nada eu manter a minha casa limpa se a casa do lado está cheia de mato e entulho", diz Wen.
    Ao encontrar um animal em casa, as orientações são: não tente pegar o escorpião, isso pode causar um acidente. Mate-o e se certifique de que ele realmente morreu; não passe inseticida, pois eles não vão eliminar os escorpiões, vão fazer apenas eles se deslocarem temporariamente; não acumule lixo; não deixe louça na pia de um dia para o outro para não atrair baratas; coloque telas nas janelas e nos ralos; vede rachaduras e proteja os vãos sob as portas. Se morar em casa, criar galinhas d'Angola é uma ótima saída, pois elas comem escorpiões.
    Se você for picado, procure imediatamente o hospital mais próximo para avaliar a necessidade de recebimento do soro antiescorpiônico. O veneno do escorpião é neurotóxico e ataca o sistema nervoso central, podendo ser letal. Segundo a médica Wen, a maioria das picadas é sem gravidade, mas, nos casos graves, o socorro imediato é fundamental.
    "Se nada for feito para combater a proliferação dos escorpiões, a tendência é que os acidentes aumentem em 70% nos próximos dois anos", alerta o biólogo Baldresca.

    A fabricação do soro

    O Instituto Butantan, vinculado ao governo de São Paulo, é um dos responsáveis pela fabricação do soro antiescorpiônico para o Ministério da Saúde. O Instituto recebe os animais e os cria num biotério.
    A Prefeitura de Americana, por exemplo, já mandou para o Butantan até outubro deste ano mais de 13 mil escorpiões recolhidos nos dois cemitérios da cidade.
    Ao chegar, os animais passam por uma triagem para avaliar como chegaram, se não estão letárgicos ou machucados. Em seguida, eles passam por uma quarentena, para avaliar sua resistência. São mantidos em caixas que simulam o seu ambiente preferido, com água, baratas e temperatura estável.
    A cada mês, os escorpiões adultos são levados para extração manual do veneno. O veneno extraído é levado para ser diluído e aplicado em cavalos, de forma que o animal não sinta o envenenamento.
    Segundo a médica Wen, é o cavalo que vai produzir anticorpos de defesa contra aquele veneno aplicado. Em seguida, os anticorpos que estão no sangue (no plasma) do cavalo são separados e as hemácias (células vermelhas do sangue) são devolvidas ao animal.
    "Os cavalos são animais de grande porte que respondem bem à imunização. São animais dóceis, de fácil manejo", explica Wen.
    O plasma é a matéria-prima para a produção do soro - o anticorpo está no plasma, que passa por um processo de purificação antes de virar remédio.
    "Um mesmo cavalo trabalha anos e anos. Cada animal é submetido a quatro ciclos de imunização por ano. O processo todo tem várias etapas e pode demorar de seis a oito meses", disse Wen.
    Para se ter uma ideia da quantidade de escorpiões usada na fabricação de soro, Wen disse que enviou 44 mil doses de soro antiescorpiônico no período de um ano ao Ministério da Saúde - e para isso usou cerca de 12 mil escorpiões.
    A indicação do uso do soro depende da reação do paciente após a picada. Em geral, o principal sintoma é uma dor aguda. Mas se houver sudorese, agitação, náuseas, vômito e falta de ar, há a indicação imediata do uso do soro.
    "As toxinas causam alterações cardíacas e é preciso agir com rapidez", afirma Wen.
    As prefeituras de Americana e de Santa Bárbara d'Oeste informaram que o aumento de casos acontece por causa do crescimento acelerado das cidades. Dizem que o controle dos animais é feito por meio de coleta noturna em cemitérios e que a maior incidência de acidentes ocorre nos meses mais quentes do ano, mas que o risco para acidentes graves, principalmente em crianças, permanece o ano todo.
    As autoridades ainda dizem que a população deve manter limpos o quintal e o jardim; evitar acumular entulho e lixo para não atrair baratas e outros insetos (alimentos preferidos dos escorpiões); examinar roupas e calçados antes de vestir; verificar toalhas de banho e as roupas de cama; utilizar luvas de couro quando for trabalhar com materiais de construção e evitar andar sem calçados.

    domingo, 18 de novembro de 2018

    O que é o protesto dos 'coletes amarelos' na França, que reuniu 280 mil pessoas contra alta do diesel

    Mais de 280 mil pessoas foram às ruas na França para protestar contra o aumento do preço dos combustíveis neste sábado. Uma pessoa morreu atropelada e mais de 200 ficaram feridas. O episódio está sendo chamado de protesto dos "coletes amarelos" (gilets jaunes, em francês), já que manifestantes usaram coletes refletivos amarelos, peça obrigatória nos carros franceses.
    O preço do diesel - o combustível mais usado pelos carros franceses - aumentou cerca de 23% nos últimos 12 meses. Assim, chegou a custar uma média de €1.51 por litro (R$ 6,46). É o valor mais alto desde o começo de 2000, segundo a agência de notícias AFP. Nas bombas, o preço varia de £1.32 a $1.71 (R$ 5,64 a R$ 7,31) por litro.
    Para comparação, no Brasil, o preço médio do litro do diesel está em R$ 3,68, segundo dados do início de novembro compilados pela Agência Nacional do Petróleo (ANP). Por aqui, o aumento do preço do diesel também gerou uma forte onda de manifestações, promovida por caminhoneiros em maio deste ano - no Brasil, o diesel é mais usado para transporte de carga.
    Segundo o ministro do Interior da França, mais de 280 mil pessoas participaram do protesto. Em vários pontos do país, os manifestantes bloquearam vias de passagem para automóveis. Em Paris, se aproximaram do Palácio do Eliseu, a residência oficial do presidente francês, e foram contidos pela polícia com gás lacrimogêneo.
    O caso de morte ocorreu quando um motorista de caminhão foi cercado por manifestantes, entrou em pânico, acelerou e acabou atropelando e matando uma mulher de 63 anos. Ele estava levando a filha para o hospital e foi conduzido à polícia em estado de choque. Os episódios de ferimentos, em sua maioria, também ocorreram quando motoristas tentaram forçar a passagem pelo protesto.

    Por que os motoristas franceses estão protestando?

    Os manifestantes acusam o presidente francês Emmanuel Macron de ter abandonado os mais pobres. Até agora, Macron não se pronunciou sobre os protestos - em alguns deles, houve quem pedisse a renúncia do presidente.
    Em um pronunciamento na última quarta-feira, o líder francês assumiu que não "conseguiu reconciliar o povo francês com seus governantes". Ao mesmo tempo, acusou seus opositores de usarem os protestos para barrar seu programa de reforma.
    Macron falou ainda que a alta internacional no preço dos combustíveis é responsável por três quartos do aumento visto na França. De fato, o preço internacional dos combustíveis subiu - embora tenha caído em seguida.
    Mas há um outro fator que levou ao aumento no preço do diesel francês. Este ano, o governo Macron aumentou os impostos sobre combustíveis fósseis, como parte de uma campanha para promover alternativas mais menos poluentes. A este respeito, Macron declarou que os impostos são necessários para financiar investimentos renováveis no setor de energia.
    Além disso, o governo anunciou um novo aumento no preço dos combustíveis a partir de 1º de janeiro de 2018 - alta de 6,5% no diesel e de 2,9% na gasolina. A medida foi vista pelos manifestantes franceses como a gota d'água.

    Qual o tamanho do movimento?

    O protesto dos "coletes amarelos" recebeu enorme apoio. Segundo uma pesquisa de opinião realizada pelo instituto Elabe, 75% dos entrevistados disseram que apoiam os "coletes amarelos". Outros 70% querem que o governo francês reverta os aumentos nos preços dos combustíveis.
    "As expectativas e o descontentamento em relação ao poder de compra são gerais. Não é algo que preocupa apenas a França rural ou as classes mais baixas", afirma Vincent Thibault, do instituto Elabe.
    A repórter da BBC em Paris, Lucy Williamson, relata que o movimento cresceu pelas redes sociais e se transformou em uma crítica ampla às políticas econômicas de Macron.

    Os políticos de oposição estão envolvidos?

    Certamente, os políticos de oposição a Macron tentaram pegar uma carona no movimento. Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita francês, que concorreu contra Macron e foi derrotada no segundo turno, tem encorajado os protestos pelo Twitter.
    "O governo não deveria ter medo do povo francês que vai manifestar sua revolta e faz isso de uma forma pacífica", falou Le Pen.
    Laurent Wauquiez, líder de centro-direita dos republicanos franceses, instou o governo de Macron a voltar atrás no aumento de imposto sobre combustíveis fósseis, como uma forma de reduzir os preços.
    Christophe Castaner, ministro do Interior da França, falou que as ações de sábado são "um protesto político, com os republicanos por trás".
    Já Olivier Faure, líder do Partido Socialista, de esquerda, falou que o movimento "nasceu fora dos partidos políticos". "As pessoas querem que os políticos as escutem e respondam a elas. A sua demanda é por ter poder de compra e uma justiça financeira", falou.

    Há algum espaço para negociação entre governo e manifestantes?

    Na quarta-feira, o governo francês anunciou uma medida para ajudar as famílias mais pobres a pagarem a conta de energia e custos relacionados ao transporte. O primeiro-ministro Edouard Philippe afirmou que 5,6 milhões de famílias vão receber os subsídios. Atualmente, são 3,6 milhões.
    Outra medida a ser implementada são créditos fiscais para aqueles que dependem do carro para trabalhar.

    sexta-feira, 12 de outubro de 2018

    Eleições 2018: Denúncias de agressões se espalham no Brasil da polarização política

    Faltando pouco mais de duas semanas para a votação do segundo turno, o acirramento dos ânimos e as discussões sobre as eleições à Presidência do Brasil extrapolaram as redes sociais. Nos últimos dias, tem crescido o número de relatos sobre episódios de violência e agressões verbais ou físicas ocorridas em diversos Estados.
    Os casos envolvem ataques físicos e xingamentos, na maioria contra mulheres e homossexuais.
    Em meio a muitas denúncias, a BBC News Brasil ouviu envolvidos e investigadores em casos ocorridos nos últimos dez dias - em todos, houve formalização das queixas em boletim de ocorrência.
    Os episódios ainda estão em fase de investigação. Envolvem socos, golpes, xingamentos, brigas de rua e uma morte a facadas. Em todos, há motivação política ou eleitoral, segundo os relatos.
    Surgiram também, nos últimos dias, iniciativas de mapeamento e registro dessas denúncias, como as do site Mapa da Violência e da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
    A reportagem também questionou o Ministério da Segurança Pública sobre providências, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
    A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se reuniu ontem com integrantes do Ministério Público Eleitoral para discutir que atitudes tomar em relação aos ataques. Uma manifestação oficial ainda é aguardada.

    Servidora pública agredida em Pernambuco

    A servidora pública Paula Pinheiro Ramos Pessoa Guerra, de 37 anos, disse ter sido agredida no último domingo em um bar por estar usando adesivos do Ciro Gomes e botons do "Ele Não", em menção ao candidato Jair Bolsonaro. Em fotos publicadas em redes sociais, ela aparece com hematomas no olho e nos braços, além de um corte com pontos no antebraço.
    Em depoimento à polícia, Guerra disse ter sido espancada por uma mulher no bar localizado no bairro de Cajueiro, na zona norte do Recife, por volta das 22h do último domingo – primeiro turno das eleições. A agressora, ainda não identificada, também teria quebrado o celular da vítima.
    Segundo o depoimento da servidora, a agressão foi motivada por uma discussão entre ela e seu amigo com a agressora e dois homens que a acompanhavam.
    Guerra foi encaminhada ao IML para fazer exames de corpo de delito. A polícia investiga o caso para identificar e prender os responsáveis.

    Chutes, socos e garrafadas no Paraná

    Na terça-feira, em Curitiba, testemunhas ouvidas pela Polícia Civil relataram que um servidor público foi agredido a socos, pontapés e garrafadas em frente à Universidade Federal do Paraná por ao menos cinco homens, identificados como membros da torcida organizada Império Alviverde, do clube de futebol Coritiba.
    De acordo com os depoimentos, a vítima usava uma camiseta vermelha e um boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e, durante o ataque, um ou mais agressores teriam gritado "aqui é Bolsonaro". A motivação política é uma entre três hipóteses investigadas, segundo o delegado Luiz Alberto Cartaxo Moura; as demais hipóteses seriam briga comum ou briga entre torcidas organizadas.
    "(Começou quando) houve um princípio de confusão na rua e ele (vítima) foi intervir, dizendo 'aqui não é lugar de briga'. Passou a ser agredido com chutes, socos e garrafadas e sofreu lesões corporais, principalmente uma contusão no olho esquerdo", afirmou o delegado em entrevista coletiva realizada ontem.
    "Identificamos cinco ou seis possíveis autores pelas redes sociais. Vamos interrogá-los, ouvir as testemunhas e tentar identificar a motivação."

    Tentativa de atropelamento na Bahia

    Em Salvador, dias antes do primeiro turno das eleições, um professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) foi preso pela polícia. Ele é suspeito de tentar atropelar um homem que vendia camisetas de temática política - segundo a imprensa local, as camisetas seriam pró-Bolsonaro.
    "A vítima não foi atingida pelo veículo, mas sofreu ferimentos leves e teve os produtos danificados. O professor foi indiciado por crime de lesão corporal", informou a polícia baiana em nota à BBC News Brasil.
    Em nota, a reitoria da UFRB afirma que o professor nega o "atropelamento ou qualquer tentativa de atitude dolosa" e que, sentindo-se ameaçado por se recusar a comprar material de campanha, retirou-se "bruscamente do local, causando danos materiais ao arrastar um varal contendo camisas que estavam sendo vendidas em via pública".
    Até agora, o caso mais dramático foi registrado também em Salvador: o assassinato do mestre de capoeira baiano Romualdo Rosário da Costa, o Moa do Katendê, de 63 anos. Ele foi morto a facadas após uma discussão política algumas horas depois da eleição de domingo.

    Agressão com barras de ferro no Rio de Janeiro

    Na manhã de sábado, a cantora transexual Julyanna Barbosa, de 41 anos, relatou que voltava andando para casa em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, quando foi provocada por três homens.
    "Eles começaram a me xingar e a dizer coisas como: 'Bolsonaro tem que ganhar mesmo, para tirar esses lixos da rua' e 'esses veados são todos doentes, têm Aids'", disse à BBC News Brasil.
    "Um deles puxou uma barra de ferro de uma barraca de camelô e acertou a lateral da minha cabeça."
    Julyanna conta ter caído no chão e sido agredida com chutes por mais três homens, mas conseguido fugir e chegar em casa.
    "Nem sei se a agressão teve a ver com política. Eles falaram o nome de Bolsonaro, mas não posso dizer se eles são eleitores ou não."
    A cantora levou dez pontos na cabeça e tem hematomas espalhados por todo o corpo. Ela registrou o crime na 56ª DP na cidade vizinha de Mesquita e aguardava para fazer o exame de corpo de delito quando falou com a reportagem.
    "Nos pareceu ser uma agressão mais relacionada com homofobia do que com política, mas vai ser investigado", disse à BBC News Brasil o delegado Matheus Romanelli, que atendeu Julyanna.

    Mapear as denúncias e registrar na polícia

    Em meio às ocorrências, surgem algumas iniciativas de mapear as denúncias de violência pelo Brasil. O caso de Julyanna, por exemplo, entrou para as estatísticas da ONG Aliança Nacional LGBTI, que vem compilando relatos de agressões a homossexuais e transexuais relacionados com as eleições. Desde o primeiro turno, eles registraram 15 casos, incluindo ataques verbais e físicos.
    "Eu até acredito que Bolsonaro não seja tudo isso, mas ele abriu uma porta para fascistas, nazistas e extremistas", afirma Toni Reis, presidente-executivo da ONG.
    Em iniciativas semelhantes, os sites Mapa da Violência e Vítimas da Intolerância, criados na última semana, também reúnem dezenas de relatos de agressões físicas e verbais.
    De acordo com um levantamento feito pela Agência Pública e pela Open Knowledge Foundation, cerca de 70 ataques relacionados às eleições aconteceram no país nos últimos 10 dias.
    Nesta semana, o aplicativo de encontros Grindr, voltado a homossexuais, passou a exibir a seus usuários brasileiros, pela primeira vez, um aviso sobre segurança, que normalmente é feito em países onde a homossexualidade é ilegal.
    "Relatos de violência contra membros da comunidade LGBTQ+ foram trazidos ao nosso conhecimento por diversas organizações locais", disse, em nota, Jack Harrison-Quintana, diretor-executivo do programa Grindr for Equality.

    O papel dos candidatos

    Para o professor Marcos Cesar Alvarez, do Núcleo de Estudos de Violência da USP, ainda é cedo para saber se vivemos uma tendência de crescimento na violência de cunho político, embora considere preocupante o fato de "ser uma eleição de muitos conflitos e com ao menos um candidato defendendo claramente a violência e (se posicionando) contra os direitos humanos, o que pode estimular atitudes agressivas por parte de seus correligionários".
    Alvarez, que destaca que o próprio Bolsonaro foi vítima de um atentado a facada no início de setembro e que a violência contra minorias acaba atingindo negativamente não só essas comunidades, mas toda a sociedade.
    "Piora a cultura política e vai contra as próprias instituições (democráticas)."
    Adélio Bispo, autor do ataque contra o candidato do PSL, está preso preventivamente pela Polícia Federal em Campo Grande. O processo contra ele, que confessou o crime em depoimento à PF, foi suspenso temporariamente nesta semana para que seja realizado um exame de sanidade. O delegado responsável pelo caso concluiu que ele agiu sozinho.
    O pesquisador defende que os candidatos ainda em disputa "claramente se manifestem negando a violência, porque até mesmo a omissão pode estimular correligionários a agir violentamente".
    Em entrevista concedida ao portal UOL esta semana, o presidenciável Jair Bolsonaro disse lamentar os ataques registrados recentemente, mas afirmou que "não tem controle sobre milhões e milhões de pessoas" que o apoiam.
    Na noite de quarta-feira, em seu perfil de Twitter, o capitão reformado falou novamente sobre o tema: "Dispensamos voto e qualquer aproximação de quem pratica violência contra eleitores que não votam em mim. A este tipo de gente peço que vote nulo ou na oposição por coerência, e que as autoridades tomem as medidas cabíveis, assim como contra caluniadores que tentam nos prejudicar".
    Em seguida, no entanto, o candidato disse na rede social que "há também um movimento orquestrado forjando agressões para prejudicar nossa campanha nos ligando nazismo, que, assim como o comunismo, repudiamos completamente".

    Agressões verbais e intimidação contra mulheres

    Nos últimos dias, a reportagem ouviu relatos de pelo menos cinco mulheres que foram empurradas ou xingadas nas ruas de Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia.
    Elas atribuem as agressões ao fato de estarem usando camisetas vermelhas, adesivos ou broches da campanha "Ele Não" - em referência ao movimento de mulheres contra Jair Bolsonaro - e dizem ter sido chamadas com frequência de "petista", "vagabunda" e outros nomes impublicáveis.
    A professora universitária Marília Flores Seixas, de 56 anos, registrou na polícia uma agressão que sofreu em seu próprio prédio, em Vitória da Conquista (BA), no dia da votação.
    "Eu estava entrando em casa com uma amiga - uma senhora de 60 e poucos anos - e o neto dela, de três anos de idade, quando um homem que estava saindo da casa do meu vizinho começou a gritar: 'vou embora porque chegaram as vagabundas, as prostitutas do PT'", disse a professora, que relata que foi empurrada e reagiu pedindo respeito.
    "Meu marido viu o ocorrido e desceu, conseguimos entrar em casa correndo. Fiquei muito nervosa."
    Segundo Marília, a sensação na cidade é de "violência banalizada" nas últimas semanas.
    "Acho que os violentos 'saíram do armário'. A agressividade pela rua está perceptível pela cidade. Tenho medo de colocar um adesivo no meu carro, para você ter ideia."

    Agressões contra jornalistas

    O período eleitoral também foi marcado por casos de agressões a jornalistas. Foram 137 em 2018, segundo estimativas da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) - sendo 75 ataques digitais e 62 físicos, e a maioria deles ligados à cobertura eleitoral.
    A Abraji denuncia também "a exposição indevida de comunicadores, quando os agressores compartilham fotos e/ou perfis apontando que o profissional seguiria uma ideologia e, assim, incentivando ofensas em massa" em redes como Facebook e Twitter.
    A entidade cita o caso de grupos e influenciadores como Danilo Gentili - que, pelo Twitter, conclamou seus seguidores a uma ofensiva contra jornalistas após a publicação de reportagem com a ex-mulher de Bolsonaro - e o Movimento Brasil Livre (MBL), que produziu um "dossiê" com o perfil de jornalistas que classificava como sendo de "esquerda" e "extrema esquerda". A BBC News Brasil procurou a assessoria de Gentili e aguarda retorno.
    "Declarações e posicionamentos de qualquer figura pública influenciam uma audiência bastante ampla, que muitas vezes ecoa a mensagem transmitida ou repete a atitude. Em alguns dos casos digitais, por exemplo, fatos falsos sobre jornalistas passaram a ter o alcance amplificado depois de terem sido compartilhados por essas figuras."

    Fui agredido. O que fazer?

    Em São Paulo, a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi) é responsável por investigar pessoas e grupos que praticam crimes motivados por intolerância religiosa, racial, política ou qualquer outra. Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo informou que "não tem nenhuma investigação de cunho político em andamento".
    Denúncias ou pedidos de ajuda em caso de violência também podem ser feitos em um batalhão da Polícia Militar, na delegacia mais próxima, ou pelo telefone 190, destinado ao atendimento da população nas situações de urgências policiais. As denúncias também podem pelo Disque Denúncia - número 181.
    *Colaborou Mariana Schreiber, da BBC News Brasil em Brasília.