quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Justiça nega pedido de Cabral para conceder entrevista

A Justiça federal no Rio de Janeiro negou hoje (30) pedido dos advogados do ex-governador do estado Sergio Cabral para conceder entrevista a dois veículos de comunicação. Um requerimento anterior já havia sido negado pelo juiz Marcelo Bretas, da 7a. Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, mas a defesa do ex-governador recorreu à segunda instância.
Sérgio Cabral está detido e é alvo de 11 ações na Justiça
Sérgio Cabral está detido e é alvo de 11 ações na Justiça
Foto: Agência Brasil
Nesta quarta, o desembargador federal Abel Gomes, da Primeira Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2a. Região (TRF2), negou a liminar pedida em habeas corpus pela defesa de Cabral. O ex-governador cumpre prisão preventiva desde novembro de 2016.  No entendimento do juiz Marcelo Bretas, não há interesse público na concessão da entrevista, especialmente porque as informações referentes ao processo estão disponíveis para a imprensa.
Os advogados de defesa de Cabral alegam que o ex-governador queria apresentar sua versão dos fatos. Além disso, a defesa sustenta que Cabral não estaria recebendo tratamento isonômico, já que o Ministério Público Federal e o próprio juiz Bretas se manifestaram publicamente sobre o caso.
Para Abel Gomes, o instrumento habeas corpus serve para tratar da liberdade de locomoção de um acusado e não para outro tipo de questionamento, como a concessão de entrevistas à imprensa. O relator do processo também rebateu o argumento de violação do tratamento isonômico ao lembrar que a Lei de Execuções Penais (LEP), que regula prisões provisórias, não prevê entrevistas a veículos de comunicação.
O desembargador federal cita "a proteção contra qualquer forma de sensacionalismo" e diz que sua decisão não atinge o direito à ampla defesa do réu, "cujo exercício se dá exclusivamente dentro do processo e não através dos meios de comunicação, de modo que além da ausência do direito líquido e certo não vislumbro ilegalidade ou teratologia aberração na decisão impugnada."

sábado, 26 de agosto de 2017

Mineradoras canadenses souberam de extinção de reserva na Amazônia 5 meses antes do anúncio oficial

Em março, ministro brasileiro anunciou decisão e outras medidas para o setor mineral em Toronto.

Publicada no Diário Oficial da última quinta-feira (24) sem alarde, a extinção da Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), na Amazônia, surpreendeu muita gente e ganhou machetes alarmadas no Brasil e nos principais jornais do mundo.
Não foi o que ocorreu com investidores e empresas de mineração canadenses. Em março, cinco meses antes do anúncio oficial do governo, o ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, anunciou a empresários do país que a área de preservação amazônica seria extinta, e que sua exploração seria leiloada entre empresas privadas.
O fim da Renca foi apresentado pelo governo Temer durante o evento Prospectors and Developers Association of Canada (PDAC), em Toronto, junto a um pacote de medidas de reformulação do setor mineral brasileiro, que inclui a criação de Agência Nacional de Mineração e outras iniciativas para estimular o setor.
Pouco depois do encontro, em abril, o ministério de Minas e Energia publicou no Diário Oficial uma portaria – que passou despercebida pelo público em geral – pavimentando o caminho para o decreto que seria assinado alguns meses depois e dispondo sobre títulos minerários dentro da Renca.

Conexão canadense

Segundo a pasta, esta foi a primeira vez em 15 anos em que um ministro de Minas e Energia brasileiro participava do evento, descrito pelo governo brasileiro como uma oportunidade para "abordar o aprimoramento na legislação brasileira e também demonstrar os planos do governo para incentivar o investimento estrangeiro no setor". De outro lado, movimentos sociais, ambientalistas e centros de pesquisa dizem que não haviam sido informados sobre a extinção da Renca até o anúncio da última quinta-feira.
O Canadá é um importante explorador de recursos minerais no Brasil e vem ampliando este interesse desde o início do ano. Hoje, aproximadamente 30 empresas do país já exploram minérios em território brasileiro - especialmente o ouro, que teria atraído garimpeiros à área da Renca nos últimos anos.
Em junho, dois meses antes da extinção oficial da reserva amazônica, a Câmara de Comércio Brasil-Canadá anunciou uma nova Comissão de Mineração, específica para negócios no Brasil, que reúne representantes destas 30 empresas.
Área da reserva comparada à Dinamarca (Foto: BBC) Área da reserva comparada à Dinamarca (Foto: BBC)
 
À BBC Brasil, o coordenador da comissão canadense defendeu a abertura da área amazônica para pesquisas minerais, disse que a "mineração protege a natureza" e afirmou que "não há uma corrida" para explorar a região da Renca, mas que "acha muito saudável" a disponibilização da região para exploração mineral.
O Ministério de Minas e Energia prometeu responder aos questionamentos enviados pela BBC Brasil durante toda a sexta-feira. No final do dia, entretanto, informou que não daria retorno devido a uma entrevista coletiva de emergência convocada pelo ministro Fernando Coelho Filho.
Na entrevista, o ministro afirmou que a extinção da área de reserva amazônica, com área um pouco maior que a da Dinamarca, não terá impactos ambientais. Segundo Coelho Filho, o início das atividades de exploração na região ainda deve demorar 10 anos.

'Ninguém pode julgar o Canadá'

Coordenador da recém-criada Comissão de Mineração da Câmara de Comércio canadense, o empresário Paulo Misk participou dos seminários realizados em março no Canadá e não vê problemas na divulgação antecipada do fim da reserva.
"A gente tem que fazer um trabalho de divulgação, promoção e atração de investimento de mais médio ou longo prazo", diz.
"Não temos pronto nenhum projeto para ser instalado lá", continua o representante canadense. "Por enquanto estamos no campo das perspectivas, promessas e iniciando o processo. Não é tão rápida a resposta."
Misk afirma que o Canadá é o país que mais investe em pesquisa no mundo e que "os ambientalistas deveriam repensar a nossa posição: a mineração é extremamente benéfica."
Sobre a Renca, ele afirma que a liberação permitirá que "uma grande área seja preservada".
"Se tiver oportunidade de ter uma mineração bem constituída e legalizada (na região da Renca), olha, eu vou ficar muito feliz porque vai ser para o bem do Brasil e para o bem da sociedade brasileira, especialmente no Pará e no Amapá", diz.
Misk também afirma que a ocupação da região por empresas de mineração deve inibir a presença de garimpeiros, cuja atuação irregular na região já resulta em contaminação de rios por mercúrio.
Presidente da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM), o geólogo Luiz Azevedo também esteve em Toronto e concorda.
"Dizer que o governo está abrindo para o desmatamento é ridículo, é coisa de quem não conhece o assunto", diz.
"Eu não me atrevo a falar sobre música. Fico impressionado como os artistas agora se atrevem a falar sobre mineração e sobre unidades de conservação", diz, citando a modelo Gisele Bündchen, que criticou o anúncio em suas redes sociais.
Sobre o anúncio antecipado da extinção da área de preservação na Amazônia, Azevedo diz que o ministro divulgou que "uma área muito grande que seria liberada para pesquisa mineral".
"Foi dito pelo ministro como parte de um pacote de medidas visando mostrar ao investidor que a ideia da Dilma de estatizante tinha acabado."
"O que eles querem são novas áreas para se pesquisar e novas possibilidades. Ninguém pode julgar o Canadá. Eles têm uma mentalidade mais cosmopolita, 70% da população é de imigrantes, então eles pensam nos outros. É um interesse legítimo", avalia.

'Soubemos pela imprensa'

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o geógrafo Luiz Jardim pesquisa a relação entre empresas de mineração canadenses e o governo brasileiro.
Ele explica que o evento de março em Toronto, quando o fim da Renca foi anunciado pelo ministro, era formado essencialmente por empresas menores especializadas em pesquisa mineral e investimentos de risco.
"Há um padrão nessas empresas, chamadas 'juniors'. Elas vêm, fazem as pesquisas e ao longo desse tempo publicam resultados em relatórios na bolsa de valores em Toronto, indicando o que eles encontraram. Esses relatórios fazem elas ganharem valor de mercado. Achando uma jazida significativa, a empresa pede uma licença ambiental e ganha ainda mais valor. Com a licença em mãos, elas anunciam na Bolsa novamente que estão perto do inicio do projeto. Num período de baixa no mercado, como agora, elas costumam vender a operação ou a mina para uma empresa maior interessada e assim fazem seus investidores lucrarem", explica.
Jardim descorda da tese de que grandes mineradoras podem inibir o garimpo ilegal na região.
"A experiência no rio Tapajós, no Pará, mostra o contrário. O garimpeiro está interessado em minas superficiais, a mineradora chega a veios mais profundos. Eles coexistem e a exploração formal pode até incentivar a vinda de mais garimpeiros."
Segundo o engenheiro Bruno Milanez, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e membro do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, que reúne 110 órgãos acadêmicos de pesquisa, sindicatos e movimentos sociais, não houve qualquer comunicado sobre a Renca para pesquisadores da área ou comunidades – diferente do que ocorreu com os empresários.
"Tudo o que acompanhamos foi pela imprensa", diz.
Sobre esta aproximação entre governo e empresários, Milanez afirma que o movimento é "parte de um processo histórico, que vem se aprofundando" no governo Temer.
"Isso é reflexo de uma ocupação maior de pessoas do setor corporativo no governo. Hoje, o primeiro escalão da mineração no governo é formado por pessoas que ocuparam cargos de diretorias em empresas", diz.
"Mas eles estão no governo temporariamente por cargos de confiança, e quando saírem vão voltar a assumir posições em empresas. Eles têm um lado nessa história."

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

As estratégias dos ricos brasileiros para pagar menos impostos

No último dia 9 de agosto, o técnico de futebol Cuca foi multado em R$ 3,6 milhões pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) por ter pago menos impostos sobre seu salário do que deveria durante o tempo em que foi treinador do Santos e do Botafogo.
O atual técnico do Palmeiras recebia por meio de sua empresa e pagava, como pessoa jurídica, uma alíquota de 15% a 25% do que era considerado lucro da companhia. Para a Receita Federal, Cuca deveria ter sido tributado como pessoa física e recolhido 27,5% de imposto - a constituição de uma empresa seria, diz, uma manobra para pagar menos ao Fisco.
Ao comentar o assunto na época, o treinador disse não saber que a prática era ilegal. "Nem sei quem é Carf, pensei que era jogador", declarou em entrevista coletiva, quando informou que recorreria da decisão.
Em um caso similar, a Receita processou o jogador Alexandre Pato, que condenado em fevereiro a pagar R$ 5 milhões - também cabe recurso.
A BBC Brasil entrou em contato com as assessorias do treinador e do jogador para que comentassem o assunto, mas não teve retorno até a publicação desta reportagem. Mas a verdade é que o expediente não é exclusivo do futebol. No Brasil, os mais ricos usam uma série de estratégias para pagar menos impostos sobre renda e patrimônio.
A grande maioria dos casos, entretanto, não é considerada ilegal. São práticas conhecidas como "elisão fiscal", quando se diminui a carga tributária com o uso de regras previstas pela própria legislação.
O chamado planejamento tributário só está acessível a quem tem melhor situação financeira, já que algumas operações não valem a pena para rendas mais baixas ou só são possíveis quando o patrimônio é maior. Nesses casos, os contribuintes costumam contratar consultorias para garantir que todas as operações estarão dentro da lei.

O olho do dono

Constituir uma empresa está entre os mecanismos mais recorrentes do planejamento tributário. As razões são muitas.
Lucros e dividendos recebidos por pessoa física, por exemplo, são totalmente isentos de impostos no Brasil. A justificativa é que esses rendimentos já seriam taxados dentro das companhias, que pagam ao Fisco até 34% de seu lucro.
Na prática, contudo, a cobrança acaba sendo bem menor para diversas empresas, segundo o economista Sérgio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
É o que acontece, por exemplo, com o regime de lucro presumido. Nessa modalidade, o governo assume que o lucro é de até 32% do faturamento da firma e cobra como imposto 24% sobre esse percentual - ou seja, 7,68% do faturamento.
Um número significativo de médias empresas do setor de serviços que têm baixos custos operacionais, entretanto, como consultorias ou escritórios de advocacia, têm margem de lucro bem maior. Se a companhia está no regime de lucro presumido, ela não paga imposto sobre essa diferença.
Além disso, empresas com faturamento anual de até R$ 3,6 milhões - limite considerado generoso por Gobetti - podem se enquadrar no regime do Simples, no qual a tributação vai de 4% a pouco mais de 22%, a depender do porte e do setor do contribuinte.
"Esse modelo só existe no Brasil. Em outros países, o teto para o faturamento de um regime para micro e pequena empresa é no máximo de US$ 100 mil", diz Fernando Gaiger, pesquisador do International Policy Centre for Inclusive Growth (IPC-IG), ligado à ONU.
O número excessivo de modalidades de tributação foi criticado pelo próprio secretário da Receita. Em audiência pública no Senado em maio, Jorge Rachid ressaltou que a "proliferação de sistemáticas diferenciadas" propicia a "migração artificial" e "distorsiva" de grupos de contribuintes "que se beneficiam ao sair da regra geral para regras específicas menos onerosas".

Se meu apartamento falasse

Outra forma que muitas pessoas usam para escapar do imposto de renda é registrar os imóveis no nome da empresa. Isso porque a alíquota de 27,5% que seria cobrada sobre o rendimento dos aluguéis para pessoa física cai para 15% na pessoa jurídica.
Quem tem poder aquisitivo maior ainda e um número de imóveis grande o suficiente para constituir um fundo imobiliário pode pagar zero imposto - já que nesse caso o rendimento do aluguel passa à categoria de lucros e dividendos.

Velozes e furiosos

Outra estratégia comum, segundo Gobetti, é o registro de veículos - carros de luxo, lanchas e helicópteros - como patrimônio da companhia. Nesses casos, todos os gastos com os bens são considerados despesas operacionais da empresa e reduzem a base para tributação sobre lucro.
Isso se soma ao fato de que aeronaves particulares, iates e lanchas são isentos de impostos como o IPVA, pago pelos donos de automóveis, como lembra a professora de direito tributário da Fundação Getulio Vargas (FGV) Tathiane Piscitelli. "Particularidades como essas mostram que há espaço para melhorar a taxação sobre propriedade no Brasil", avalia.

A partilha

Há ainda o que os especialistas chamam de "planejamento sucessório", estratégias para desviar dos impostos cobrados sobre herança.
Pais e filhos podem, por exemplo, se tornar acionistas de uma holding familiar. Ou seja, imóveis e ações são transferidos para empresas que têm os herdeiros como sócios.
Assim, eles ficam isentos do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e do imposto sobre herança, o ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis), que chega a 8% no Brasil - um dos menores valores do mundo. Nos EUA, essa taxação atinge 40% e na França, 60%.
Nesses países, uma estratégia dos milionários é "doar" parte de suas fortunas para instituições e fundações privadas e pagar pouco ou nenhum imposto - não há um limite do valor que pode ser abatido do Imposto de Renda por esse meio.
Essas fundações muitas vezes são criadas pelos próprios doadores e atuam usando esse dinheiro para promover seus interesses.
O jornal americanoThe New York Times publicou um artigo em 2015 argumentando que a doação feita pelo criador do Facebook, Mark Zuckerberg, para uma instituição que ele criou estaria longe de ser caridade, como foi anunciado. O bilionário se defendeu dizendo que não recebe benefícios fiscais com o tipo de instituição que criou - e que poderia ter criado uma fundação tradicional se fosse esse seu interesse.
A publicação ponderou, no entanto, que através da Chan-Zuckerberg Initiative o bilionário poderia fazer doações políticas, lobby para aprovar leis de interesse próprio, e que seus bens pessoais não seriam levados em conta no caso de processos judiciais.
No Brasil, segundo Gobetti, isso existe, mas é menos comum, pois os outros mecanismos existentes acabam satisfazendo as necessidades das famílias.

De volta para o futuro

A reforma tributária que está sendo discutida no Congresso não tratará de praticamente nenhuma dessas questões, diz Gaiger, do IPC-IG. "O grande objeto da reforma é a confusão da tributação de bens e serviços", acrescenta.
Na semana passada, o relator da proposta na Câmara, deputado Carlos Hauly (PSDB-PR), apresentou o esboço da Proposta de Emenda Complementar (PEC) que tratará do tema ao Planalto.
A ideia central é substituir tributos como o ICMS, ISS e PIS/Cofins por um imposto único, à semelhança do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) adotado em países europeus.
"Os ganhos de eficiência para a economia seriam grandes, mas nada disso muda nosso problema de regressividade", pondera o economista. Ele se refere ao desenho do sistema tributário brasileiro, que, ao taxar mais o consumo do que a renda, cobra mais de quem é mais pobre. "Consertar isso passa pela tributação da pessoa física", completa.
Para Gobetti, do Ipea, uma "reforma tributária real" acabaria com todos os regimes especiais e unificaria a alíquota em 22,5% para todos os rendimentos de capital, com uma redução em paralelo da tributação sobre o lucro das empresas, para que não houvesse aumento da carga tributária.
Durante apresentação do texto preliminar da PEC em audiência em comissão especial da Câmara nesta terça-feira, Hauly falou sobre a regressividade do sistema brasileiro e destacou que a carga tributária é maior para as famílias de baixa renda.
Entre as propostas apresentadas, a única voltada especificamente para essa questão foi a de isenção de impostos para alimentos e medicamentos.

sábado, 19 de agosto de 2017

O jogo está sendo jogado: como o PSDB decidirá seu futuro nos próximos meses

O PSDB atravessa uma crise profunda. De um lado, Aécio Neves (PSDB-MG) tenta atrelar o partido ao governo Temer, fugir do ostracismo político e manter o foro privilegiado, escapando de um possível julgamento na 1ª Instância da Justiça. De outro, Geraldo Alckmin busca afastar o PSDB do impopular ocupante do Planalto e conter os movimentos de João Doria, que lhe ameaça as pretensões presidenciais. É neste cenário que o PSDB decidirá, até dezembro, a nova cúpula partidária e o candidato presidencial de 2018.
Quando o Congresso concluiu o impeachment de Dilma Rousseff, em meados de 2016, o PSDB estava diante de sua melhor chance de eleger o próximo presidente da República desde 2002. O PT, adversário histórico, atingia o fundo do poço. Em um ano, o PSDB chegou a uma crise que, no limite, põe em questão a própria sobrevivência do partido.
A reportagem da BBC Brasil conversou com mais de uma dezena de congressistas, dirigentes e assessores tucanos para entender o que poderá acontecer com o terceiro maior partido político do país.
O calendário está recheado de datas-chave para o PSDB nos próximos meses: acaba no fim de setembro o prazo para quem quiser mudar de partido; em 1º de outubro começa a etapa municipal da convenção que mudará o comando da sigla. E, em algum momento de dezembro a março, o partido terá de definir o presidenciável de 2018. Também em dezembro, os congressistas escolherão os líderes na Câmara e no Senado para 2018.
Na última quinta-feira, o PSDB usou o tempo de propaganda partidária para desferir um ataque contundente contra o presidente da República. O governo Temer, do qual o partido faz parte com quatro ministros, foi chamado de "presidencialismo de cooptação", formado por "políticos e partidos que só querem vantagens pessoais e não pensam no país".

Quem são os 'cabeças-pretas'

Parece contraditório, e é: o discurso veiculado na TV representa o que pensam os "cabeças-pretas", um grupo cujo núcleo é formado por cerca de 15 deputados federais (a maioria de jovens, daí o nome) e que defende o rompimento com o governo Temer.
Neste momento, os "cabeças-pretas" estão unidos em torno da tarefa de eleger o senador Tasso Jereissati (CE) como presidente nacional do PSDB pelos próximos 2 anos. A linha política do programa de TV foi definida, em grande parte, por Tasso, que, interinamente, preside a legenda.
"Eu acho que o programa dialoga com a vida real. Enfrenta a realidade. Não busca atalhos. Não fica dourando a pílula. A crítica não é direcionada a esse ou aquele governo, mas é uma constatação de que o modelo está esgotado", defende o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), um dos integrantes do grupo de "cabeças-pretas".
Tasso Jereissati chegou ao comando do partido em maio, quando Aécio Neves (PSDB-MG) foi atingido pela delação dos empresários Joesley e Wesley Batista, donos do frigorífico JBS. Nos últimos dias, Tasso têm feito uma maratona de reuniões com deputados e outros dirigentes do PSDB, tentando consolidar a própria posição.
No grupo ligado a Aécio Neves, o programa de TV da quinta-feira aumentou a sensação de que é necessário acabar com a interinidade de Tasso e retornar o comando do partido para as mãos do senador mineiro o quanto antes. O discurso deste grupo é de que não há mais divisão no PSDB quanto a permanecer ou não no governo: a divergência teria sido superada quando a Câmara engavetou a denúncia contra Temer.
"Acabei de falar sobre isso [a divisão no PSDB] no almoço da FPA", disse à reportagem o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT). Ele se refere ao encontro semanal da Frente Parlamentar da Agropecuária, nome oficial da bancada ruralista, presidida por ele.
"Se a gente focar nas reformas, teremos unidade no PSDB. Você precisa entender quando sai vencedor ou sai derrotado. E é preciso entender que isso [a divisão do partido] se encerrou no dia da votação da denúncia [contra Temer]", diz Leitão.
Para a ala tucana que deseja permanecer no governo, há dois bons motivos para não romper com Michel Temer agora.
O primeiro é o acesso à "máquina": cargos, emendas e apoio do governo federal serão mais importantes do que nunca em 2018, uma eleição a ser disputada sem dinheiro de empresas privadas. Estar "de bem" com a União pode se reverter em benefícios (um posto de saúde, um trecho de rodovia asfaltado) para a localidade onde o deputado se elege . E este tipo de resultado costuma ser determinante para o sucesso nas urnas.
O segundo é a perspectiva de que, mais dia ou menos dia, a população começará a sentir os efeitos da melhoria do ambiente econômico. Afinal, o desemprego parou de aumentar, a inflação está baixa e os juros estão caindo. Para eles, quando o bem-estar aparecer, o PSDB poderá recolher os dividendos eleitorais de ter sido o fiador do atual programa econômico.
Além disso, Aécio Neves, golpeado pela Lava Jato, precisa da proteção que o governo Temer e o baixo-clero do Congresso podem lhe oferecer neste momento, lembram adversários do tucano.
O plano da ala "temerista" do PSDB só tem um problema: falta combinar com os "cabeças-pretas".
Para o deputado federal Pedro Cunha Lima (PSDB-PB), a ideia de que a divisão no PSDB acabou com a votação do começo de agosto "não é real nem politicamente e nem matematicamente", diz. Ele cita o placar no PSDB: foram 22 favoráveis a Temer e 21 contrários.
"O partido está dividido. Eu continuo achando que o melhor é sair do governo Temer", diz Pedro, filho do senador tucano Cássio Cunha Lima.
Volta e meia, "cabeças-pretas" mencionam a possibilidade de deixar o partido caso prevaleça a tese de ficar junto a Temer até o final. "Eu não quero sair, não estou buscando sair. Com o Tasso [Jereissati], acho que o partido conseguirá se reposicionar e voltar a representar a sociedade. Evidente que se o partido se perdesse, aí tinha chance de sair gente do PSDB. A crise existe, e o partido está desgastado. Isso é fato. Se o partido negasse isso, era o caso de sair", diz o deputado Daniel Coelho (PE), um dos parlamentares jovens.

O núcleo bandeirante

Há outro peso-pesado no PSDB que não deseja alienar aTemer suas chances eleitorais: o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Pessoas próximas ao governador dizem que Temer "tira votos", e é uma companhia tóxica em uma campanha majoritária.
Aliados de Alckmin inclusive desdenham da aproximação de Temer com o prefeito de São Paulo, João Doria. O presidente da República fez afagos públicos ao prefeito num evento do setor automotivo em São Paulo, no começo de agosto. Para os interlocutores de Alckmin, Doria não entende nada de política se acha que pode se beneficiar em 2018 da proximidade com Temer.
Há ainda a possibilidade de que Temer (amigo de Doria há anos) estivesse simplesmente fazendo um agrado a um nome importante do PSDB que defende a continuidade do partido no governo. Seria um movimento de autopreservação, já que o sucesso do peemedebista no Congresso depende do apoio dos tucanos.
Os aliados de Alckmin minimizam o fato de Doria pontuar melhor nas pesquisas que o governador, atualmente. "Ano passado, nessa época, o João Doria tinha 1%. Ninguém acreditou nele, e Geraldo acreditou. É muito cedo para fazer pesquisa. As pesquisas não têm nenhum valor hoje", diz o deputado estadual Pedro Tobias (PSDB-SP), presidente estadual do PSDB.
Alckmin possui ainda outra fragilidade que não atinge Doria: o governador foi citado na delação da Odebrecht, acusado de receber dinheiro de caixa dois. Ele nega irregularidades.
Publicamente, Doria diz que jamais iria contra o governador, a quem deve sua indicação para disputar a prefeitura de São Paulo no ano passado. Mas quem conversa com o prefeito diz que ele não tira da cabeça a ideia de concorrer à Presidência, mesmo que tenha de mudar de legenda. Nos últimos dias, Doria tem visitado vários Estados do Nordeste, região onde o PSDB é historicamente fraco.
Se Alckmin for mesmo candidato à Presidência, terá que se afastar do governo do Estado seis meses antes da eleição. O palácio dos Bandeirantes ficará temporariamente com o vice-governador Márcio França (PSB), que tem manifestas pretensões de ser o candidato a governador pelo polo da centro-direita. O próprio Alckmin atuou como fiador dos planos de França, mas seus aliados paulistas não estão convencidos de deixar para outra legenda o controle do Estado.
"Estamos aqui há quase 30 anos. Não vamos abrir mão agora", diz Tobias. Ele cita uma fila de possíveis candidatos tucanos: David Uip (secretário de Saúde do Estado), Luiz Felipe d'Avila (cientista político liberal), Floriano Pesaro (secretário de Desenvolvimento Social do Estado), Bruno Covas (secretário de Meio Ambiente), entre outros.

Como será a disputa

Alckmin conta com pelo menos mais um trunfo na disputa contra Aécio Neves: o secretário-geral do partido, Silvio Torres. Deputado federal por São Paulo, Torres é aliado de Alckmin e preside o grupo que definiu as regras para a convenção nacional tucana, prevista para começar em outubro.
Pelo calendário apresentado por Torres à reportagem da BBC Brasil, o processo começa com os municípios: do dia 1º ao dia 8 de outubro, todos as pessoas filiadas ao PSDB há mais de 30 dias poderão votar para eleger os delegados municipais, que escolherão o comando da sigla nas cidades.
Eles também escolherão os delegados das convenções estaduais, marcadas para 11 de novembro. Em 9 dezembro ocorre a convenção nacional do PSDB, que definirá o comando da sigla pelos próximos dois anos, renováveis por mais dois.
O controle do partido é importante por dois motivos: quem tiver a máquina partidária levará enorme vantagem na disputa da vaga presidencial. E numa eleição sem dinheiro de empresas, como será 2018, caberá aos dirigentes partidários direcionar o dinheiro das campanhas.

A regra do jogo nas prévias

Além da convenção partidária, quase todos os tucanos concordam com a necessidade de realizar prévias para definir o candidato presidencial.
Não há (ainda) uma data de consenso para a consulta no PSDB. Pode ser em dezembro, como quer Geraldo Alckmin, ou em fevereiro ou março, como desejam os mais simpáticos à candidatura de Doria.
Há uma proposta em discussão para o formato das prévias. Foi formulada pelo deputado federal Marcus Pestana (PSDB-MG), próximo a Aécio Neves e um dos tucanos que mais entende de temas como reforma política e sistemas eleitorais.
Pestana propõe limitar a cerca de seis mil pessoas o grupo que terá direito a votar nas prévias. No plano, apenas os membros do Diretório Nacional, deputados estaduais e federais, senadores, governadores, prefeitos, vereadores, membros de diretórios estaduais e os presidentes dos diretórios municipais participariam do pleito.
Nas atuais condições, o grupo de Aécio Neves levaria vantagem neste desenho. Se todos os filiados ao PSDB puderem votar, Alckmin tenderia a largar na frente, já que 21% dos filiados do PSDB estão em São Paulo. São 306 mil tucanos no Estado governado por Alckmin. Em Minas Gerais, são 155 mil.
Ainda não está claro quem o grupo de Aécio defenderá como candidato em 2018.
A justificativa de Pestana é criar um colegiado "sem questionamentos acerca de sua consistência e legitimidade". O deputado pretende ainda que haja ao menos um "grande debate na TV aberta ou em um grande site da internet" antes da votação, em um formato semelhante ao adotado pelos partidos americanos durante as prévias.
Outro aecista revela a preocupação de que as prévias pudessem ser influenciadas por filiações em massa, de pessoas sem ligação com o partido. O tucano lembra que isto chegou a ocorrer em alguma medida no PT, no período em que o partido adotou o chamado PED (Processo de Eleição Direta).

Consenso em gestação?

Além de Tasso Jereissati, outro candidato em potencial à presidência do PSDB é o governador de Goiás, Marconi Perillo. Ele é ligado a Aécio Neves. Mas Perillo ventila nas internas que não toparia se candidatar se tiver de enfrentar uma disputa. Só aceitaria a missão se fosse aclamado, por unanimidade. Cenário pouco provável.
Dessa forma, alguns dirigentes tucanos defendem que se chegue a um consenso em torno de quem dirigirá o partido e de quem será o candidato em 2018.
"O futuro nos unifica, e o presente nos divide. O PSDB é um partido essencial para a reconstrução do centro de gravidade política do Brasil. E nós temos deixado um vácuo. O crescimento de Lula e Bolsonaro é prova disso", diz Marcus Pestana.
"Essa fase de 'controvérsias' está, a meu sentir, sendo superada. Somos pessoas do bem e nos respeitamos uns aos outros. Existe um respeito muito grande entre nós. Acho que caminhamos para essa unidade a partir de agora", diz o vice-presidente nacional do partido, o deputado federal Carlos Sampaio (PSDB-SP).
Apesar dos discursos apaziguadores, as movimentações sugerem que as palavras são vazias e que haverá disputa no fim do ano. "Você está vendo algum 'Lula' aqui para indicar um 'poste' e passar por cima de todo mundo? Isso aqui é o PSDB. É claro que haverá disputa, o que não é necessariamente ruim", resume uma assessora do partido.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Marina poderia ser favorita para 2018, mas 'queimou caravelas com esquerda' ao apoiar impeachment, diz fundador da Rede

Fundador e ex-membro da Rede Sustentabilidade, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares afirma que a líder política do partido, Marina Silva, pode ter perdido a chance de chegar às próximas eleições presidenciais como favorita após ter declarado apoio ao impeachment de Dilma Rousseff no ano passado.
"Quando ela assumiu essa posição, extremamente irresponsável do ponto de vista da democracia, acho que ela queimou as caravelas relativamente ao campo das esquerdas. Não só do PT, das esquerdas", considera ele. "Isso circunscreve o seu potencial eleitoral e político."
Soares elaborou as propostas das candidaturas de Marina na área de segurança pública em 2010 e 2014 e deixou a legenda em outubro do ano passado - um dos signatários de uma carta aberta em que sete intelectuais anunciaram sua desfiliação, com críticas ao partido e a sua líder.
Para Soares, Marina deixou de ser "espontânea e genuína", o que era a sua marca, e passou adotar posições "ambíguas", e jogar o jogo "mais tradicional" da política.
Em entrevista à BBC Brasil, o cientista político considera que o cenário para 2018 está em aberto e depende da possibilidade de Lula se candidatar ou não. O caminho até lá também é imprevisível. "Hoje o Temer já é dispensável para as elites", diz Soares. "Eu diria que sua permanência é realmente incerta."
Especialista em segurança pública, critica a presença do Exército no Rio e diz que o efeito é meramente simbólico, para transmitir uma imagem de segurança à classe média.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - O senhor ajudou a fundar a Rede Sustentabilidade e saiu fazendo críticas ao partido. Como vê hoje as perspectivas para a Marina Silva?
Soares - Fui o primeiro presidente da Rede no Rio. Mas a frustração foi muito grande, porque os vícios de todos os partidos foram simplesmente reproduzidos.
A minha divergência com a Marina teve a ver com seu apoio ao impeachment (da presidente Dilma Rousseff). Ela tinha sempre se manifestado contrária. O (deputado Alessandro) Molon entrou para o partido depois que ela se comprometeu a ser contrária.
E uma semana antes da votação, ela se pronunciou a favor do impeachment, sem nos consultar. E pior ainda, a direção do partido, que era contrária ao impeachment, mudou de posição menos de 24 horas depois, para não deixá-la só. Isso é o retrato de que o partido não dispõe de instâncias autônomas.
BBC Brasil - Qual foi o impacto dessa mudança para a trajetória política dela? O senhor acredita que Marina tenha chances em 2018?
Soares - Ser a favor do impeachment significava entregar o país ao núcleo mais perigoso da política nacional, o PMDB. Quando ela assumiu essa posição, extremamente irresponsável do ponto de vista da democracia, acho que queimou as caravelas relativamente ao campo das esquerdas. Não só do PT, das esquerdas.
Ela hoje teria todas as condições de ser favorita nas eleições de 2018 se tivesse se mantido contra o impeachment. Poderia unificar o campo das esquerdas com um discurso palatável, capaz de suscitar respeito entre eleitores do centro, e a população evangélica também se reconheceria nela. Ela viria com um potencial eleitoral muito grande.
Com sua ruptura com o campo da esquerda, resta a ela buscar unir o centro com fatias mais conservadoras e de centro-esquerda. Mas isso já circunscreve o seu potencial eleitoral e político.
Ela deixou de ser espontânea e genuína. Essa era a sua marca. Passou a estar sempre numa posição ambígua, com poucas definições claras, e a jogar o jogo mais tradicional. Mas sem dúvida é uma candidatura forte potencialmente.
BBC Brasil - O cenário ainda está muito em aberto para 2018 - o que o senhor acha que está se desenhando para a disputa?
Soares - O Lula é um forte candidato, porque para a maioria da população fez o melhor governo que experimentaram. E de fato os resultados foram notáveis, superiores aos governos anteriores em termos de crescimento e de redução de desigualdades. Ele saiu com 85% de aprovação popular. Isso é um patrimônio extraordinário, que está sendo erodido pelas denúncias constantes da mídia.
Você tem um aventureiro, o prefeito de São Paulo, João Doria. Ele não merece confiança cívica. De maneira cínica, ele se apresenta como não-político, mas faz política o tempo todo, e da pior qualidade. É um demagogo que se apresenta como anti-Lula, anti-PT, já que não tem substância. O Alckmin, a alternativa do PSDB tradicional, tem mais substância, mas é muito difícil que o PSDB eleja um presidente diante de tantas denúncias.
E hoje temos a extrema-direita de fato fascista, que propõe golpe militar, o Jair Bolsonaro. Ele nunca foi exposto, cobrado, nunca lhe perguntaram nada sobre o Brasil. Ele é apenas o que denuncia, que fala em nome da ordem, e reuniu uma multidão de admiradores com a corrosão da credibilidade das instituições.
Já Ciro Gomes, acho que tem muita dificuldade de se consolidar porque se comportou de maneira errática em relação a compromissos e vinculações partidárias no passado, gerando incerteza em torno de seu comportamento, ainda que tenha talento e um projeto com alguma substância.
BBC Brasil - O senhor considera o ex-presidente Lula um candidato forte, mas ele é réu cinco vezes e já foi condenado em primeira instância em um sexto caso, o do tríplex do Guarujá.
Soares - Essas denúncias são muito complicadas. As do sítio de Atibaia e do tríplex são ridículas e não sensibilizarão a população. As pessoas sabem como funcionam os poderes no Brasil, e dirão, mesmo que (a série de acusações contra Lula) seja verdade, que outras pessoas estão aí roubando bilhões.
Na época do Adhemar de Barros, um governador de São Paulo que foi muito popular, a população dizia, "ele rouba, mas faz". Já que a categoria dos políticos é basicamente corrupta, com raras exceções, vamos escolher entre os que produzem benefícios. Esse tipo de espírito vai acabar prevalecendo quando as questões estiverem ainda num nível de sítio, pedalinho e apartamento.
BBC Brasil - A percepção sobre corrupção mudou com a Lava Jato ou o senhor acha que mesmo hoje as pessoas ainda comprariam essa ideia do "rouba, mas faz"?
Soares - Se você tiver um segundo turno entre Bolsonaro e Lula, não tenho dúvida que todos que criticam o Lula hoje vão votar nele. Todos que têm alguma ambição democrática. Mesmo que acreditem que ele tem algum envolvimento com corrupção. Talvez tenhamos que votar contra, e não a favor.
Os juristas mais importantes que conheço consideram pífias as acusações contra o Lula. Estou convencido de que a fundamentação é insuficiente para uma condenação.
Não estou dizendo que a Lava Jato não mereça respeito. Mas que houve uma inclinação política na focalização do PT, houve. O PSDB começou a aparecer muito mais recentemente, e de forma muito mais leve que o PT, e os problemas são equivalentes. E são superados pelo PMDB, onde reside o núcleo central e mais tarimbado da corrupção na política brasileira.
Retirar a Dilma para levar o representante do PMDB para o poder em nome da ética é despudoradamente hipócrita. Pois as massas foram às ruas, a classe média, instigada pela Globo, para apoiar essa troca. E diante do quadro atual, não há o mesmo tipo de investimento na mobilização política. As ruas estão vazias, por assim dizer.
BBC Brasil - Depois de ser quase derrubado pelo escândalo da JBS, o presidente Michel Temer conseguiu sobreviver ao julgamento do TSE e ao voto na Câmara que barrou a denúncia de corrupção contra ele. O senhor acha que agora ele consegue se manter até o fim do mandato?
Soares - Ninguém sério pode responder a essa pergunta com convicção. É impossível saber. As variáveis são incontroláveis, como as que advenham das investigações da Lava Jato. Se algumas delações forem aceitas e negociadas, é possível que Temer não consiga se sustentar.
Até porque já há um substituto comprometido a seguir a agenda regressiva para cujo cumprimento Temer foi elevado a presidente. O afastamento da Dilma foi uma manobra para que essa agenda neoliberal extrema fosse implementada, que nunca obteria apoio em uma eleição.
Estamos diante de uma verdadeira intervenção neoliberal, com uma agenda obscurantista e regressiva. Enquanto as atenções públicas se voltam para a permanência ou não do presidente, ele e o seu governo se apressam, na calada da noite, a promover mudanças trágicas para as sociedades indígenas, para a sustentabilidade, o meio ambiente.
Eu acredito que haja condições para que o Temer caia. Quais são as condições imprescindíveis? Uma alternativa comprometida com a implementação das mesmas reformas neoliberais, que é o Rodrigo Maia.
Hoje o Temer já é dispensável para as elites. Se ele cair, o presidente da Câmara pode dar sequência à agenda das reformas. E se as elites já têm um estepe, talvez ele seja mais conveniente. Mesmo que venha a ser denunciado, este será um processo demorado, e ele implementaria de forma talvez mais fluente a agenda neoliberal.
Se isso é possível, o Temer corre risco. Diria que hoje sua permanência é realmente incerta.
BBC Brasil - O Congresso está se movimentando para aprovar uma reforma política que implantaria o chamado distritão, que vem sendo criticado como um sistema que favoreceria a eleição de velhos conhecidos da política. O senhor acha que isso vai adiante?
Soares - Isso é assustador. O distritão elimina as minorias, torna as eleições muito mais caras e com resultados previsíveis, porque os que já estão no poder vão viabilizar sua reeleição, e as celebridades terão privilégios. Não haverá possibilidade de que os partidos ideológicos se destaquem. As propostas vão ficar em segundo plano. Não à toa, esta é uma ideia do Temer, e do Cunha, que está sendo apresentada pelo PMDB e pelas forças conservadoras do Congresso.
BBC Brasil - O ministro do STF Luís Roberto Barroso disse há alguns dias que a crise política está levando a um "cenário de devastação no Brasil", e que é impossível não sentir vergonha. O momento lhe causa vergonha?
Soares - Claro. Quer dizer, eu não sei se vergonha é o termo, porque vergonha significa que você se sente representado pelos que elegeu e culpado pelo que está acontecendo. Eu não sinto assim, porque quando a gente é derrotado, não é necessariamente responsável pelo que sucede após a derrota.
BBC Brasil - Então é vergonha alheia?
Soares - Ah, isso sim. Sem dúvida (risos).
BBC Brasil - Há algo que lhe dê esperança no momento?
Soares - O longo prazo. Se você estuda história, você tem a perspectiva de que as coisas foram muito piores. Já vivemos momentos mais difíceis durante a ditadura. E o que ocorreu no Brasil no século 20 pode nos dar esperança de mudanças profundas.
No curto prazo, não dá para ser otimista. Mas os processos são dinâmicos. E há uma potência que vibra no subsolo do Brasil desde 2013 cujas energias podem se converter em transformações importantes.
BBC Brasil - O senhor costuma falar no deslocamento de placas tectônicas quando busca explicar os efeitos dos protestos de 2013. Esses efeitos ainda estão sendo sentidos?
Soares - A metáfora me ocorreu quando senti nas ruas essa palpitação, essa energia pulsando, inclusive a alegria da participação. Aqueles foram momentos de festa, e eu dizia, o Brasil se revolta, se rebela, vai às ruas porque melhorou bastante. Em geral é assim. Você potencializa os agentes sociais, que elevam suas expectativas e assumem protagonismo.
Foi um momento muito bonito, contraditório. As mensagens eram, basicamente, que há um colapso da representação política. Ninguém acredita mais nas instituições políticas tal como funcionam. Isso é perigoso, mas é também condição positiva de mudança.
O fato de não ter havido nenhuma modificação diretamente derivada de 2013 não significa que aquilo não tenha sido muito importante.
A partir dali, a gente passou a viver intensamente o que vivera anteriormente, mas requalificando as relações. Se já havia adversários, eles se transformaram em inimigos. Se já havia oposições, elas se converteram em confrontos. Se havia uma linguagem da disputa, ela se converteu em código do ódio. As polarizações se enrijeceram e se firmaram.
O que marca tudo isso é a intensificação. E essa intensidade tem um sentido e ainda não se manifestou plenamente. Isso pode ser uma fonte de temor ou esperança. Nós estamos em um momento como esse diante da história, do seu abismo e de suas promessas.
BBC Brasil - Por que as ruas estão vazias? Por que não vemos nada parecido com as mobilizações de 2013 ou de antes do impeachment?
Soares - O cenário está totalmente aberto, e as pessoas estão pensando nas consequências (dessa mobilização). Elas vão para a rua clamar pela queda do Temer para então receber Rodrigo Maia? E para continuar com a agenda das reformas?
A classe média pode desejar isso, mas a maioria da população positivamente não, conforme demonstram pesquisas de opinião. Além disso, há uma suspeição enorme de que as movimentações vão acabar beneficiando o Lula, então os contrários ao Lula não vão se envolver.
BBC Brasil - Como o senhor vê a situação atual de segurança no Rio? Temos visto uma escalada de violência e o governo respondeu com o envio do Exército. O senhor acha que isso ajuda a resolver o problema de alguma maneira?
Soares - Não, claro que não, e a cúpula do Exército sabe disso. Sabe que os soldados não estão preparados para fazer vigilância nas ruas, para abordagens, eventuais enfrentamentos e para respeitar limites indispensáveis às ações internas ao país. Eles têm muito medo de um eventual deslize, de uma ação precipitada ou mesmo de uma autodefesa legítima, porque isso impacta a imagem do Exército.
Mas o fato é que presença do Exército tem efeito meramente simbólico. Transmite uma imagem de segurança para a classe média, que acha que agora está protegida. Não há dados sobre ações anteriores que demonstrem que esse é o caso. Os números não mostram queda de criminalidade. Ao contrário, às vezes até aumentam, sobretudo de homicídios dolosos.
BBC Brasil - É um gesto de desespero convocar o Exército?
Soares - Mas é claro, e isso o governo já disse explicitamente. Deixou claro que não tem recursos, está perdido, não sabe mais o que fazer. Qualquer iniciativa para qualificar o trabalho das polícias envolveria mais recursos, e o Estado está quebrado, não paga os funcionários, mal paga as polícias.
Eles estão inteiramente perdidos e reproduzem o velho padrão da guerra às drogas e intervenção bélica nas favelas, que produzem desastres. São mortes de inocentes por balas perdidas, mortes de suspeitos e mortes de policiais.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

10% dos deputados atuais não seriam eleitos no 'distritão'; PMDB seria beneficiado

A comissão da reforma política aprovou na madrugada desta quinta-feira o sistema do "distritão". Se a regra já estivesse em vigor nas últimas eleições, 45 deputados atuais não teriam sido eleitos. O PMDB e o PSD seriam os maiores beneficiados, com seis deputados a mais cada.
A reforma política se tornou prioridade para os caciques dos principais partidos políticos. E um dos pontos é a adoção do sistema do "distritão" nas eleições de 2018. Mas se este sistema já estivesse em vigor nas eleições de 2014, quase 10% dos atuais integrantes da Câmara dos Deputados seriam diferentes: 45 dos 513 deputados atuais não teriam sido eleitos.
O PMDB e o PSD seriam os principais partidos beneficiados, com 6 deputados a mais cada. Para o PT, o saldo seria de 3 vagas a mais. PP e PSDB continuariam com o mesmo número de cadeiras, e o PR perderia 2 deputados.
O sistema do "distritão" iguala a disputa dos deputados à dos senadores: os mais votados no Estado são eleitos, independente do partido. A vantagem é acabar com o "efeito Tiririca", em que um nome bem votado acaba elegendo outros, de pouca relevância.
Na eleição "proporcional", como acontece hoje, os votos de cada coligação de partidos são somados e divididos por um número, chamado quociente eleitoral. O resultado determina o número de cadeiras que a coligação terá. Assim, um candidato com poucos votos dentro de uma coligação forte pode acabar eleito. Mesmo em detrimento de outro, mais votado, que faça parte de uma coligação menor.
O ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira (eleito pelo PTB-RS), está na lista dos que ficariam de fora se o "distritão" estivesse em vigor em 2014. Outro que não teria os votos necessários é Beto Mansur (PRB-SP), um dos principais articuladores de Michel Temer no Congresso.
Mansur é contra a adoção do "distritão". Para ele, a mudança de sistema agora só interessa a alguns partidos grandes, como o PMDB e o PSDB.
"O 'distritão' transforma a eleição de deputado em uma disputa majoritária. E numa disputa dessas, importa muito estar junto de um candidato a governador forte, que possa pedir votos para você. PMDB e PSDB têm essa perspectiva, de lançar candidatos competitivos aos governos estaduais. Por isso defendem essa mudança", diz Mansur.
Por outro lado, teria conquistado uma vaga de titular a atual secretária de Políticas para Mulheres de Temer, Fátima Pelaes. Ela concorreu pelo PMDB no Amapá e teve 17,5 mil votos, mas acabou como suplente.
O jornalista esportivo Jorge Kajuru também teria se tornado deputado com os 106,2 mil votos que obteve como candidato pelo PRP de Goiás. Ele não foi eleito, nem para suplente.
Também teriam conquistado uma vaga de titular o ex-ministro da Agricultura Reinhold Stephanes (PSD-PR) e o advogado Wadih Damous (PT-RJ), um dos principais defensores do ex-presidente Lula. Ambos foram eleitos suplentes, e são deputados hoje porque os titulares se licenciaram do cargo. Ao todo, há hoje 14 deputados nessa situação.
O presidente da comissão especial da reforma política, deputado Lúcio Vieira Lima (PMDB-BA), acredita que é possível aprovar a reforma política no plenário da Câmara nos próximos 15 dias. E que o "distritão" deve passar, mesmo que como uma regra de transição para as eleições de 2022.
"Os partidos estão conversando. Vão perceber que o 'distritão' é o melhor para eles. Reduz o número de candidatos e, por consequência, o dinheiro gasto. É uma alternativa a ter que aumentar o financiamento público das campanhas", diz Lúcio Vieira Lima. "Ademais, não se pode fazer reforma política pensando nisso, em quem entraria e quem ficaria de fora", diz Lúcio.
O cientista político Cláudio Couto lembra que os partidos e candidatos teriam adotado outras estratégias em 2014, caso o sistema eleitoral fosse outro.
"A projeção [feita pela reportagem] com base nas eleições de 2014 é até útil para entender tendências. Mas, se a regra do jogo fosse outra, os atores teriam agido de forma diferente. E o resultado possivelmente teria sido diferente do projetado", diz ele, que é professor da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.
Couto discorda ainda da hipótese de que o "distritão" diminuirá o custo das campanhas. "A competição ficará mais acirrada entre os candidatos. Os gastos terão de crescer para enfrentar a disputa", diz ele.
O "distritão" é usado em poucos países do mundo. Hoje, só adotam este método o Afeganistão, os Emirados Árabes Unidos, o Kuwait e Vanuatu, além das Ilhas Pitcairn (um território britânico no Pacífico).
O principal ponto negativo do "distritão" é o desperdício de votos, pois votos dados a candidatos não eleitos deixam de influenciar o resultado. Além disso, o sistema beneficia os atuais ocupantes do cargo, dificultando a renovação no Legislativo.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

'Você compra remédio ou comida': as escolhas das famílias que vivem com um salário mínimo em SP

Há certos meses em que Carlos e Odilene deixam de comprar sabonete. Moradores de uma ocupação, eles trocam o conforto da higiene por um pedaço de carne a mais no prato. Reginaldo e Rafaela não têm previsão para trocar o telhado quebrado do barraco em que vivem, na favela de Paraisópolis. Melhor aguentar as goteiras a deixar de alimentar seus três filhos. Renata enfrenta uma maratona diária: percorre quilômetros em busca de feiras e sacolões que vendam alimentos mais baratos para a produção de marmitex. É na diferença de centavos na batata ou no tomate que ela encontra o lucro para sustentar sozinha a família, composta por mais sete crianças, em um cortiço na região da cracolândia.
Essas são as escolhas diárias feitas por famílias que vivem com um salário mínimo, R$ 937, na cidade de São Paulo. Chefes de família contaram à BBC Brasil como se desdobram para esticar por 30 dias os rendimentos - e evitar ter que morar na rua.
Uma pesquisa divulgada em julho deste ano pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que o salário mínimo para sustentar uma família de quatro pessoas deveria ser de R$ 3.810,36. O montante é quatro vezes maior do que o valor atual do mínimo brasileiro.
O levantamento considera os custos das necessidades básicas de uma família, como moradia, alimentação, educação, saúde e lazer. Para o Dieese, R$ 937 seria o valor mínimo para viver com dignidade em novembro de 1999. Logo, as três famílias ouvidas pela reportagem sofrem com uma defasagem de quase 20 anos no orçamento.
Em uma condição financeira como essa, elas admitem que, por diversas vezes, não tiveram comida suficiente para todos na casa.

Moradia

Na favela de Paraisópolis, na zona sul, o barro engole o par de tênis do auxiliar de limpeza Reginaldo dos Santos Santana, de 28 anos, em seu trajeto até o ponto de ônibus. Um forte cheiro de esgoto preenche os becos da área.
Em um barraco de dois andares feito com portas velhas, madeirites e restos de tábuas moram Reginaldo, a mulher, Rafaela, e os três filhos do casal, de 8, 5 e 2 anos. O imóvel é alugado por R$ 250, valor que abocanha mais de um quarto do salário de Reginaldo. Em dia de chuva na segunda maior favela de São Paulo, eles não dormem. O risco é o barraco desabar.
"Quando chove um pouco forte, fica parecendo um chuveiro. Molha logo a cama. Mas não tem jeito. É morar aqui ou na rua", diz Reginaldo.
A falta de estrutura da casa não se limita aos problemas no telhado e nas paredes. Um grito agudo de Raianny, a filha de 5 anos do casal, anuncia que o banho começou no cômodo abaixo. O banheiro do barraco não tem chuveiro. Uma torneira acoplada na ponta de um cano à meia altura faz as vezes de uma ducha.
A água gelada faz tremer o corpo magro da menina. "É só no primeiro minuto, logo ela se acostuma", diz Rafaela, enquanto ensaboa a criança.
Em uma ocupação a poucos quilômetros dali, o pedreiro Carlos Augusto Silva, de 43 anos, conta que ajudou a erguer 12 prédios de 23 andares, há três anos, em Interlagos, na zona sul. Depois de prontas, ele jamais entrou nas torres de alto padrão.
"A gente entra com a mão de obra, mas não vale a pena para a gente. É como diz a música: 'Está vendo aquele prédio? Eu ajudei a fazer, mas hoje não posso passar nem perto'", diz Carlos.
Cansado de viver no limite do orçamento, ele decidiu erguer um barraco com teto de lona, colocar um colchão dentro e morar.
A ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) em um terreno na zona sul de São Paulo abriga 300 famílias. O objetivo de quem vive ali é aliviar o custo do aluguel e mostrar ao poder público que há espaços valiosos e ociosos na cidade. Em sua visão, ali seria um local ideal para a construção de moradias populares.
A família, no entanto, não pode ficar reunida sob o teto de lona. O filho mais velho de Carlos e Odilene sofre de epilepsia e atraso mental, condição que forçou a mulher a largar sua ocupação como empregada doméstica para se dedicar aos cuidados dele.
Por causa da doença, ele precisa de um ambiente mais adequado para viver, razão pela qual a família paga R$ 400 pelo aluguel de uma casa de dois cômodos na região, onde vivem a mãe e os dois filhos. Já Carlos passa a maior parte das noites no barraco da ocupação, algumas na companhia da mulher.
O problema de saúde do filho garante uma pensão mensal no valor de um salário mínimo - a única renda segura com que a família pode contar.
Como complemento, o pedreiro faz bicos em troca de R$ 100 por dia. Mas, em tempos de crise, ele chega a passar semanas em branco.
A cerca de 22 quilômetros dali, no centro de São Paulo, a mão direita de Renata Moura Soares, de 34 anos, segura a mão do filho menor enquanto a esquerda mistura os temperos na panela para fazer uma macarronada. Sozinha, ela sustenta seus sete filhos - o mais velho de 20 anos, o mais novo de 1 - vendendo marmitex na região da cracolândia.
"(Meus clientes) são os usuários e quem trabalha lá dentro. Eu trabalho com vagabundo, com todo tipo de gente. Eu não escolho cliente. Eu não quero saber quem é. Não quero saber o que eles estão fazendo lá dentro. Eu quero saber que eu tenho que vender a minha comida e receber", conta.
Hoje, a família vive em um cortiço na região central da capital. A casa antiga, com fiação aparente, foi dividida em vários cômodos, dois deles ocupados pelos Soares. O banheiro, no entanto, é compartilhado com mais três famílias. Renata não reclama das condições do imóvel: é melhor do que dormir com as crianças na rua, como já aconteceu.
Ela conhece a dona do imóvel e consegue alguma flexibilidade na cobrança do aluguel - que normalmente custaria R$ 400 mensais. O preço é acertado a depender do desempenho de venda de suas quentinhas - em um dia bom, ela chega a vender até 50 marmitex por R$ 15 cada.
Mãe solteira, ela sempre teme não dar conta de chegar ao fim do mês abrigada.
"Quem é mãe não merece pagar aluguel a vida inteira", diz.

Alimentação

Quem vive com o orçamento contado tem uma preocupação urgente: garantir comida no prato por 30 dias. Para isso, as famílias desenvolvem estratégias.
Reginaldo faz uma maratona semanal pelos supermercados da região de Paraisópolis, aproveitando as diferentes promoções de cada estabelecimento. Se a tarefa é bem sucedida, ele consegue manter os potes de arroz e feijão abastecidos. Se não, vai faltar.
"Aí, eu peço (dinheiro) emprestado para uma vizinha. Se acaba de novo, eu pego com outra pessoa no mês seguinte para pagar a anterior e assim vai", conta.
Mas a fome teima em aparecer.
Rafaela, a mulher de Reginaldo, vai à feira todos os sábados para "fazer a xepa", como é conhecida a prática de recolher e reaproveitar os alimentos descartados pelos feirantes.
Ela espera as barracas serem desmontadas para selecionar, em meio a restos de caixotes e pilhas de frutas, verduras e legumes parcialmente estragados, o que servirá no almoço de sua família. "Dá vergonha, é muito ruim. Mas tem que fazer", diz a dona de casa.
O casal conta que fica abalado em datas comemorativas, como o Dia da Criança e Natal, quando seus filhos pedem presentes. Mas a noção de prioridade é vital na gestão financeira da família. "Em dia de festa, a gente compra ovo, salsicha e dá um pedacinho para cada um. Às vezes, eles comem até puro. Não ligam."
Se o feijão está escasso, Rafaela aumenta a quantidade de pão que a família come.
Odilene, na ocupação, enfrenta racionamento semelhante. "A gente só compra o essencial: arroz e feijão. Mistura só de vez em quando", conta, referindo-se a carnes, ovos ou legumes.
A economista e supervisora de preços do Dieese Patrícia Lino Costa diz que a dificuldade que as famílias sentem no estômago se confirma nos números: São Paulo tem a segunda cesta básica mais cara do Brasil entre as capitais, perdendo apenas para Porto Alegre.
"Com metade de um salário mínimo, hoje essas famílias compram uma cesta básica. Com a metade restante, tem que dar conta de todas as outras despesas", diz Costa.
O pedreiro Carlos define sua vida em uma ocupação na zona sul como um jogo de escolhas.
"Você compra remédio ou comida. Às vezes, você deixa de cortar o cabelo para comer, deixa de comprar um sabonete para comer. Você deixa de tirar barba. Você sempre precisa cortar uma coisa para fazer a outra", conta ele.
A precariedade da ocupação é compensada pela certeza de que não passarão fome. Graças às doações recebidas, eles garantem três refeições diárias. "Aqui não acontece de ficar sem comida, mas em casa acontece. E não é raro", diz Carlos.
Renata faz um esforço ainda maior para enxugar gastos com alimentos - já que a produção de marmitas depende disso. O bairro de Campos Elíseos, onde ela vive com os sete filhos, tem um alto custo de vida.
"Você tem que pesquisar, ir mais longe mesmo. Já chegou a faltar leite e açúcar em casa. Semana passada, eu passei aperto porque não tinha dinheiro para comprar leite e fralda para o meu filho. Hoje, fui com R$ 200 fazer compras perto de casa e não consegui trazer quase nada", contou.
Descontando o dinheiro que usa para reabastecer seu estoque de mercadorias e embalagens para produzir marmitas, Renata conta que sobra menos de um salário mínimo.
"Com esse dinheiro, ninguém consegue ter nada. A renda que você tem é o que você vai comendo. Não consigo comprar roupa, material escolar, remédios e ainda cortaram o Bolsa Família que eu recebia. Essa semana, meu bebê estava sem um sapatinho para usar e eu tive que tirar do dinheiro das mercadorias para comprar", diz.

Futuro

Os pais de família que vivem com um salário mínimo costumam ter alguns elementos em comum: a baixa escolaridade, a infância marcada por privações e pela necessidade de trabalhar. Um enredo que tentam, com diferentes níveis de sucesso, evitar repetir com seus filhos.
Desde que se mudou de Ilhéus, na Bahia, para São Paulo, há dois anos e meio, a família de Paraisópolis nunca teve uma renda mensal superior a um salário mínimo. Rafaela, que estudou até a 5ª série e já trabalhou como auxiliar de limpeza, diz que sonha que o marido consiga um emprego bom e que o casal compre uma casa.
Ela ainda espera que os filhos estudem e obtenham sucesso profissional. Aos 8 anos, no entanto, o mais velho ainda não começou a 1ª série.
Reginaldo gosta de sonhar no trajeto de cerca de uma hora e meia de ônibus até o trabalho. É no tempo no transporte coletivo que ele se imagina em outra vida: "É um pouco difícil de realizar. Pelo que eu ganho não tem como... Mas meu sonho é ter uma casa própria e um carrinho na garagem para eu dar para a minha família", conta.
Para ele, o ideal seria ganhar ao menos dois salários mínimos "para me levantar um pouco". Mas ao ser questionado sobre suas expectativas disso acontecer, Reginaldo fica em silêncio.
A família chegou a receber Bolsa Família, mas não conseguiu renovar o benefício porque a certidão de nascimento do filho acabou danificada e os pais não conseguiram fazer o cadastro.
O casal que vive na ocupação também parou os estudos no ensino fundamental, mas tem a esperança de que seu filho de 18 anos trace uma história diferente. "Ele ganhou uma bolsa de estudos muito boa e está tendo uma formação mais digna", disse.
Os olhos de Carlos se enchem de lágrimas ao lembrar de um pedido feito pelo caçula. "Nunca pude dar um videogame para o meu filho. Até hoje ele fala disso. Meu filho, seu pai ainda vai conseguir lhe dar o melhor videogame do mundo. Isso fica na minha cabeça, até choro", afirmou.
Para a economista do Dieese Patrícia Costa, a política atual perpetua a pobreza porque as famílias não conseguem ter gastos além de alimentação e moradia.
"Essa realidade impede a mudança de classe porque as crianças precisam ir trabalhar. Da forma que estamos hoje, a tendência é piorar a situação dessas famílias. O que deve haver é uma política de valorização do salário mínimo, investimento em saúde e, principalmente, em educação básica e profissionalizante", diz.
A comerciante que vive na cracolândia conta que se incomoda por seus filhos crescerem em um ambiente de degradação e violência. Embora acorde às 6h para dar conta de preparar e vender almoço e jantar nas ruas da cracolândia, ela não conseguiu evitar que os filhos mais velhos tivessem que deixar a escola para ajudá-la no trabalho. A história repete sua própria juventude:
"Ver que meu filho não pode dar continuidade na escola, da mesma forma que eu, é triste. Eu estudei até a terceira série e hoje convivo com essa falta", afirma, antes de completar: "Futuramente, a gente não sabe o que pode acontecer. Medo qualquer mãe tem. Dá medo de amanhã ou depois ele querer partir para o lado errado porque a preocupação dele ao ver a minha dificuldade para conseguir alguma coisa é grande".

sábado, 5 de agosto de 2017

Como o Canadá se tornou uma superpotência em educação

Em debates sobre os melhores sistemas educacionais do mundo, os nomes mais citados costumam ser de países nórdicos, como a Noruega e a Finlândia, ou de potências como Cingapura e Coreia do Sul.
Embora seja muito menos lembrado, o Canadá subiu ao topo dos rankings internacionais.
Na mais recente rodada de exames do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, entidade que reúne países desenvolvidos), o Canadá ficou entre os dez melhores países em matemática, ciências e interpretação de texto.
As provas são o maior estudo internacional de desempenho escolar e mostram que os jovens do Canadá estão entre os mais bem educados do mundo.
Eles estão muito à frente de vizinhos como os Estados Unidos e de países europeus com quem têm laços culturais, como o Reino Unido e a França.
O Canadá também tem a maior proporção de adultos em idade produtiva com educação superior - 55%, em comparação com uma média de 35% de países da OCDE.

Alunos imigrantes

O sucesso do Canadá em testes escolares é incomum ao ser comparado com tendências internacionais.
Os países com melhor desempenho costumam ser pequenos, com sociedades homogêneas e coesas e com cada pedaço do sistema educacional integrado a uma estratégia nacional - como em Cingapura, que tem sido usado como exemplo de progresso sistemático.
O Canadá nem sequer tem um sistema educacional nacional, pois a organização é baseada em províncias autônomas. E é difícil imaginar um contraste maior entre uma cidade-Estado como Cingapura e um país de dimensões continentais como o Canadá.
Em uma tentativa de entender o sucesso do Canadá na educação, a OCDE descreveu o papel do governo federal no setor como "limitado e às vezes inexistente".
Também é bem conhecido o fato de que o Canadá tem um alto número de imigrantes em suas escolas. Mais de um terço dos jovens no Canadá têm ambos os pais oriundos de outro país.
Os filhos das famílias de imigrantes recém-chegados se integram em um ritmo rápido o suficiente para ter o mesmo desempenho de seus colegas de classe.
Quando o último ranking da OCDE é analisado em detalhe, os resultados regionais do Canadá são ainda mais impressionantes.
Se as províncias se inscrevessem no teste como países separados, três delas (Alberta, Quebec e British Columbia) estariam entre os cinco primeiros lugares em ciências, junto com Cingapura e Japão e à frente de lugares como Finlândia e Hong Kong.
Afinal, como o Canadá superou tantos outros países na área de educação?
Andreas Schleicher, o diretor de educação da OCDE, diz a característica que une os diversos sistemas educacionais do país é a igualdade.
Apesar de diversas diferenças nas políticas educacionais, um traço em comum entre todas as regiões do país é o comprometimento em oferecer igualdade de oportunidades na escola.
Schleicher diz que existe um forte senso de equilíbrio e igualdade de acesso - o que pode ser observado na alta performance acadêmica de filhos de imigrantes.
Até três anos depois de chegar ao país, os alunos imigrantes alcançam notas tão altas quanto as de seus colegas. Isso torna o Canadá um dos poucos países em que crianças imigrantes atingem um patamar similar aos das não-imigrantes.
Outra característica distinta é que os professores são muito bem pagos em comparação com os padrões internacionais - e o ingresso na profissão é altamente seletivo.

Oportunidades iguais

David Booth, professor do Instituto para Estudos em Educação da Universidade de Toronto, destaca um forte investimento de base em alfabetização.
Existiram esforços sistemáticos para melhorar a alfabetização, com a contratação de educadores bem treinados, investimento em recursos como bibliotecas nas escolas e avaliações para identificar escolas ou alunos que possam estar tendo dificuldades.
John Jerrim, do Instituto UCL de Educação de Londres, diz que o ótimo desempenho do Canadá nos rankings internacionais reflete a homogeneidade socioeconômica do país.
O país não é uma nação de extremos. Pelo contrário, seus resultados mostram uma média alta, com pouca diferença entre os estudantes mais e menos favorecidos.
No mais recente Pisa, o exame da OCDE, a variação de notas causada por diferenças socioeconômicas entre os estudantes canadenses foi de 9%, em comparação com 20% na França e 17% em Cingapura, por exemplo.
Os resultados mais igualitários explicam porque o Canadá está indo tão bem em exames internacionais. O país não tem nem uma fatia residual de estudantes com desempenho ruim, o que normalmente é algo relacionado à pobreza.
É um sistema consistente. Além da pouca diferença entre estudantes ricos e pobres, também há uma variação muito pequena entre diferentes escolas, em comparação com a média de países desenvolvidos.
Segundo o professor Jerrim, o alto número de imigrantes não é visto com um potencial entrave ao sucesso nos exames - o fato é provavelmente um dos ingredientes dos bons resultados.
Os imigrantes que vivem no Canadá, muitos de países como a China, a Índia e o Paquistão, têm educação relativamente alta, e a ambição de ver seus filhos se tornarem profissionais bem sucedidos.
O especialista afirma que essas famílias têm "fome de sucesso", e que suas altas expectativas provavelmente influenciam o desempenho escolar de seus filhos.
O professor Booth, da Universidade de Toronto, também cita esse fato. "Muitas famílias recém-chegadas ao Canadá querem que seus filhos tenham sucesso, e os alunos têm motivação para aprender", diz.
Este ano tem sido excepcional para a educação no Canadá. As universidades estão aproveitando o "efeito Donald Trump", com um número recorde de inscrições de estudantes que enxergam o Canadá como uma alternativa aos Estados Unidos após a eleição do atual presidente.
A vencedora do Prêmio Global de Professores também é canadense - Maggie MacDonnel está usando a condecoração para fazer campanha pelo direitos dos estudantes indígenas.
No ano em que celebra seu aniversário de 150 anos, o Canadá reivindica o status de uma superpotência em educação.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

"De igual modo, em virtude dos descobrimentos, movimentaram-se povos para outros continentes (sobretudo europeus e escravos africanos)."
É dessa forma - "como se os negros tivessem optado por emigrar em vez de terem sido levados à força" - que o colonialismo ainda é ensinado em Portugal.
Quem critica é a portuguesa Marta Araújo, investigadora principal do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
De setembro de 2008 a fevereiro de 2012, ela coordenou uma minuciosa pesquisa ao fim da qual concluiu que os livros didáticos do país "escondem o racismo no colonialismo português e naturalizam a escravatura".
Além disso, segundo Araújo, "persiste até hoje a visão romântica de que cumprimos uma missão civilizatória, ou seja, de que fomos bons colonizadores, mais benevolentes do que outros povos europeus".
"A escravatura não ocupa mais de duas ou três páginas nesses livros, sendo tratada de forma vaga e superficial. Também propagam ideias tortuosas. Por exemplo, quando falam sobre as consequências da escravatura, o único país a ganhar maior destaque é o Brasil e mesmo assim para falar sobre a miscigenação", explica.
"Por trás disso, está o propósito de destacar a suposta multirracialidade da nossa maior colônia que, neste sentido, seria um exemplo do sucesso das políticas de miscigenação. Na prática, porém, sabemos que isso não ocorreu da forma como é tratada", questiona.
Araújo diz que "nada mudou" desde 2012 e argumenta que a falta de compreensão sobre o assunto traz prejuízos.
"Essa narrativa gera uma série de consequências, desde a menor coleta de dados sobre a discriminação étnico-racial até a própria não admissão de que temos um problema de racismo", afirma.
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    'Vítimas passivas?'

    Para realizar a pesquisa, Araújo contou com a ajuda de outros pesquisadores. O foco principal foi a análise dos cinco livros didáticos de História mais vendidos no país para alunos do chamado 3º Ciclo do Ensino Básico (12 a 14 anos), que compreende do 7º ao 9º ano.
    Além disso, a equipe também examinou políticas públicas, entrevistou historiadores e educadores, assistiu a aulas e conduziu workshops com estudantes.
    Em um deles, as pesquisadoras presenciaram uma cena que chamou a atenção, lembra Araújo.
    Na ocasião, os alunos ficaram surpresos ao saber de revoltas das próprias populações escravizadas. E também sobre o verdadeiro significado dos quilombos ─ destino dos escravos que fugiam, normalmente locais escondidos e fortificados no meio das matas.
    "Em outros países, há uma abertura muito maior para discutir como essas populações lutavam contra a opressão. Mas, no caso português, os alunos nem sequer poderiam imaginar que eles se libertavam sozinhos e continuavam a acreditar que todos eram vítimas passivas da situação. É uma ideia muito resignada", diz.
    Araújo destaca que nos livros analisados "não há nenhuma alusão à Revolução do Haiti (conflito sangrento que culminou na abolição da escravidão e na independência do país, que passou a ser a primeira república governada por pessoas de ascendência africana)".
    Já os quilombos são representados, acrescenta a pesquisadora, como "locais onde os negros dançavam em um dia de festa".
    "Como resultado, essas versões acabam sendo consensualizadas e não levantam as polêmicas necessárias para problematizarmos o ensino da História da África."

    'Visão romântica'

    Araújo diz que, diferentemente de outros países, os livros didáticos portugueses continuam a apregoar uma visão "romântica" sobre o colonialismo português.
    "Perdura a narrativa de que nosso colonialismo foi um colonialismo amigável, do qual resultaram sociedades multiculturais e multirraciais - e o Brasil seria um exemplo", diz.
    Ironicamente, contudo, outras potências colonizadoras daquele tempo não são retratadas de igual forma, observa ela.
    "Quando falamos da descoberta das Américas, os espanhóis são descritos como extremamente violentos sempre em contraste com a suposta benevolência do colonialismo português. Já os impérios francês, britânico e belga são tachados de racistas", assinala.
    "Por outro lado, nunca se fala da questão racial em relação ao colonialismo português. Há despolitização crescente. Os livros didáticos holandeses, por exemplo, atribuem a escravatura aos portugueses", acrescenta.
    Segundo ela, essa ideia da "benevolência do colonizador português" acabou encontrando eco no luso-tropicalismo, tese desenvolvida pelo cientista social brasileiro Gilberto Freire sobre a relação de Portugal com os trópicos.
    Em linhas gerais, Freire defendia que a capacidade do português de se relacionar com os trópicos ─ não por interesse político ou econômico, mas por suposta empatia inata ─ resultaria de sua própria origem ética híbrida, da sua bicontinentalidade e do longo contato com mouros e judeus na Península Ibérica.
    Apesar de rejeitado pelo Estado Novo de Getúlio Vargas (1930-1945), por causa da importância que conferia à miscigenação e à interpenetração de culturas, o luso-tropicalismo ganhou força como peça de propaganda durante a ditadura do português António de Oliveira Salazar (1932-1968). Uma versão simplificada e nacionalista da tese acabou guiando a política externa do regime.
    "Ocorre que a questão racial nunca foi debatida em Portugal", ressalta Araújo.

    'Sem resposta'

    A pesquisadora alega que enviou os resultados da pesquisa ao Ministério da Educação português, mas nunca obteve resposta.
    "Nossa percepção é que os responsáveis acreditam que tudo está bem assim e que medidas paliativas, como festivais culturais sazonais, podem substituir a problematização de um assunto tão importante", critica.
    Nesse sentido, Araújo elogia a iniciativa brasileira de 2003 que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio.
    "Precisamos combater o racismo, mas isso não será possível se não mudarmos a forma como ensinamos nossa História", conclui.
    Procurado pela BBC Brasil, o Ministério da Educação português não havia respondido até a publicação desta reportagem.