quinta-feira, 27 de julho de 2017

Mulher desaparecida é encontrada nos EUA graças a 'cheiro engarrafado'

Uma mulher com demência que havia desaparecido na Flórida foi encontrada pela polícia americana em questão de minutos, graças ao armazenamento de seu cheiro corporal.
O recipiente com o cheiro foi usado pelo cão farejador da polícia para buscar pistas da mulher, que estava ausente de sua casa havia duas horas.
O episódio, ocorrido na noite da última segunda-feira, foi comemorado pela polícia americana em uma postagem no Facebook, no qual sugere que mais pessoas engarrafem seus odores corporais caso estejam sob o risco de se perderem.
A mulher, cuja identidade não foi revelada, havia usado um kit profissional de preservação de odores para emergências, capaz de guardar o cheiro corporal de uma pessoa por até sete anos.
O dela havia sido preservado desde janeiro de 2015, de acordo com uma foto do recipiente divulgada pela polícia.

Como funciona

Preservar um odor pessoal com o kit profissional requer passar um pequeno tecido acolchoado nas axilas e guardá-lo em uma jarra esterilizada, de forma que o cheiro seja passível de uso por cães farejadores em caso de desaparecimento.
Fabricantes do kit (que custa em torno de US$ 20, ou R$ 63, em lojas virtuais) afirmam que eles são mais eficientes do que peças de roupa, por não serem contaminados pelos odores de outras pessoas e do ambiente.
Cães têm um olfato mais potente que humanos e são treinados por forças de segurança para identificar drogas, pessoas e, em alguns casos, cadáveres.
Algumas corporações policiais ao redor do mundo - como as de China e Alemanha, por exemplo - guardam amostras de cheiro de suspeitos e de cenas de crimes para ajudar nas investigações.
Mas eles não são infalíveis: em 2006, um levantamento feito em New South Wales, na Austrália, mostrou que apenas um quarto das pessoas pegas por cães farejadores estavam, de fato, carregando drogas.
No caso da última segunda-feira na Flórida, porém, o cão policial Ally foi bem-sucedido em sua missão - e por isso foi recompensado com um sorvete.

domingo, 23 de julho de 2017

'200 judeus foram assassinados pelos convidados da minha tia': jornalista revela passado nazista de sua família

O jornalista suíço Sacha Batthyany ainda lembra bem o choque que teve ao ficar sabendo da ligação da sua família com o nazismo.
A descoberta fez com que ele questionasse a própria identidade, roubou-lhe o sono por dez anos e, por fim, rendeu um livro e a esperança de fazer as pazes com seu passado.
Descendente de uma família aristocrática da Hungria, Sacha viveu a infância na Suíça, retornando muitas vezes ao leste da Europa para passar férias com parentes.
"Nossa família tem origem nobre, mas na Suíça ninguém sabia quem eu era. Cresci cercado por obras de arte, móveis antigos e objetos decorados com as iniciais e o brasão da família", conta.
"Não falávamos em dinheiro, mas sim de status. E é isso que foi perdido depois da Segunda Guerra Mundial: castelos, terras, posição social. Não que eu me importasse com isso, mas compreendia que a família pensava no passado como se tivesse sido um tempo melhor", disse à BBC Brasil.
Quando trabalhava como repórter no principal jornal de Zurique, Sacha teve um encontro inesperado com uma versão não tão idealizada do passado da família.
"Um dia em 2007 uma colega mais velha, que me desprezava e nunca falava comigo, jogou sobre a mesa uma página de jornal e disse: ´Mas que tipo de família você tem, hein?`. A primeira reação foi imaginar que minha nobreza havia sido descoberta. Esperava ler um texto elogioso sobre alguma ação heroica ou benfeitoria de um antepassado. Mas não foi nada disso. Tomei um choque. Fiquei sabendo pela primeira vez - e justamente pela imprensa - que estávamos associados ao nazismo."
"A nossa família é enorme. Tenho centenas de primos e tias, de modo que certamente não conheço todos. Há parentes espalhados pelo mundo, até mesmo no Uruguai. Mas, justamente, dentre tantos familiares, essa pessoa na foto eu conhecia muito bem. Para meu espanto, era a tia Margit."
A matéria denunciava a tia-avó de Sacha como cúmplice em um massacre que ceifou a vida de mais de 180 judeus próximo do fim da Segunda Guerra Mundial.
O texto do respeitado jornal alemão Frankfurter Allgemeine era assinado pelo jornalista britânico David Litchfield e também havia sido publicado em inglês pelo The Independent, de Londres.
Litchfield chamava a tia de "anfitriã do inferno", pois Margit teria dado uma festa em que a diversão após o jantar fora executar brutalmente judeus.
A tia-avó de Sacha era a condessa Margit Batthyány-Thyssen, filha e herdeira do multimilionário industrial alemão Heinrich Thyssen. Ela se casara com o irmão do avô paterno de Sacha, Ivan Batthyany, um aristocrata em decadência.
Famosa por seu apetite sexual, Margit teve diversos amantes, mas o casal nunca se divorciou, porque a tolerância do marido à infidelidade era sempre recompensada com carros, cavalos e barcos.
Na infância, os pais de Sacha tinham o hábito de encontrar tia Margit duas ou três vezes ao ano. "Sempre íamos almoçar nos restaurantes finos de Zurique. Ela também tinha um apartamento em Monte Carlo e nós a visitávamos no verão. Eu me lembro de que precisava me comportar bem quando ela estava por perto".
Foi Margit quem ajudou os avós de Sacha a se mudar para a Suíça no pós-guerra e pagou pelos estudos do pai dele.
Sacha se recorda que ela detestava crianças, mantinha uma postura reservada e cultivava a mania de gesticular colocando a língua pra fora, "assim como fazem os lagartos", enquanto fumava cigarros e contava histórias. Ela poderia parecer fria e ríspida, mas seria mesmo uma assassina antissemita?

Massacre

Há ao menos duas versões contraditórias para o massacre que ocorreu na noite de 24 para 25 de março de 1945, quase no fim da Segunda Guerra Mundial.
O jornalista britânico David Litchfield afirma que a condessa Margit havia dado uma festa para oficiais nazistas no castelo da família, em Rechnitz, vilarejo localizado na fronteira entre a Áustria e a Hungria.
A então jovem Margit teria se excedido na companhia de seus amantes, Franz Podezin e Joachim Oldenburg, ambos oficiais do exército nazista e, com satisfação perversa, presenciado juntamente com outros convidados os assassinatos cometidos por diversão.
"A festa teve início às 21h e durou até o amanhecer, com muita bebedeira e danças. Mas o entretenimento tradicional das festas não foi suficiente e, por volta da meia noite, cerca de 200 judeus quase definhando, considerados inúteis para o trabalho, foram trazidos de caminhão até Kreutzstadel, um celeiro próximo do castelo. Podezin então conduziu Margit e outros 15 ou mais convidados de honra a um almoxarifado, deu armas e munição e convidou-os a 'matar alguns judeus", descreveu Litchfield, que também é autor e publicou o livro The Thyssen Art Macabre.
"Foi uma coisa horrorosa", disse o jornalista britânico à BBC Brasil.
Os judeus teriam sido obrigados a cavar a própria cova e se despir para que seus corpos se decompusessem mais rapidamente. Cerca de 20 prisioneiros teriam sobrevivido à noite de 25 de março, para ajudar a enterrar as vítimas. Uma vez cumprida a tarefa, eles também foram assassinados, no dia seguinte.
A investigação de Sacha, no entanto, levou a uma versão diferente dos fatos.
O assassinato dos judeus teria se originado em uma ligação recebida por Franz Podezin durante a festa. Cerca de 200 prisioneiros estavam com febre tifoide, aguardando em vagões na estação ferroviária. Haveria uma ordem para executá-los.
Podezin teria então reunido seus oficiais de confiança e seguido até o local para cometer o massacre e depois retornado à festa. Margit teria permanecido no castelo. "Não foi motivado por diversão, como disseram por aí", afirmou Sacha à BBC Brasil.

Motivação

Inicialmente, o jornalista suíço não conseguia crer no que estava lendo a respeito da tia e precisou pesquisar por si mesmo para entender a relação da família com o nazismo.
"Comecei a escrever muito inocentemente, imaginando que seria uma matéria normal e que levaria algo como dois meses para resolver. Mas foi ficando cada vez maior e maior."
O escritor reconhece, porém, que mesmo que a motivação do massacre não tenha sido apenas diversão, como afirma Litchfield, há um inegável vínculo dos convidados da festa com o crime. "Sim, eu entrevistei pessoas que me disseram que eles depois voltaram e dançaram o resto da noite com o rosto manchado de sangue", afirma.
Sacha publicou um artigo sobre o assunto em 2010, mas continuou obcecado pelo tema até finalmente concluir um livro, em 2016.
Publicado na Alemanha sob o título Und Was Hat Das Mit Mir zu Tun (E o que eu tenho a ver com isso?) e em inglês A Crime in the Family (Um Crime na Família), o livro foi lançado no início do ano e é resultado da busca do autor pelas suas origens e narra o episódio do massacre de Rechnitz sob a perspectiva de quem conheceu pessoalmente a condessa Margit Batthyány-Thyssen, além de esmiuçar outros episódios de antissemitismo que ocorreram entre seus parentes.
"A minha família não gostou nem um pouco que eu tenha escrito esse livro", diz.
Embora Sacha e Litchfield discordem sobre a motivação inicial, na perspectiva de ambos não há controvérsia quanto à conivência de Margit com os perpetradores do crime. A condessa e seu marido nunca foram incomodados por processos relacionados ao massacre e viveram uma vida de conforto na Suíça após a guerra.
"Mas ela sabia. Ela era uma simpatizante dos nazistas com certeza. Ela teve vários casos com oficiais e os ajudou a escapar", afirma Sacha.
Margit auxiliou Podezin e Oldenburg a fugir para a África do Sul e a Argentina, oferecendo passagens e dinheiro. "Ela foi chantageada por Podezin, mas teria o apoiado de qualquer maneira", diz.
As investigações nunca conseguiram determinar com clareza a extensão da violência, porque a totalidade dos corpos nunca foi encontrada.
Diversas testemunhas morreram em situações suspeitas em meio às inúmeras tentativas de se estabelecer e punir os culpados ao longo dos últimos 70 anos.
Alguns envolvidos como Podezin e Oldenburg conseguiram escapar, alguns cumpriram sentenças breves, outros nunca foram implicados.

Família de toupeiras

"Minha avó costumava dizer que somos como uma família de toupeiras, levando nossas vidinhas dentro da terra" conta Sacha.
"Eu precisava sair disso para compreender o passado, algo que virou uma obsessão". "Por sete anos eu pesquisei e refleti até conseguir entender o que isso tinha a ver comigo. Foi necessário consultar um psicanalista para fazer sentido de tudo. Levei muito tempo pensando, até que finalmente sentei e escrevi a minha história em cinco meses", diz.
Sacha conclui que havia motivos pelos quais ninguém falava com a tia Margit sobre o massacre: opressão, preguiça, dinheiro e indiferença.
Ele também reconhece que essa é uma história com muitas versões, mas avalia que fez o trabalho "mais honesto que pode".
Durante a redescoberta de seu passado, ele aprendeu também como a guerra afetou seus avós e viajou à procura de respostas desde a Hungria até a Sibéria e a Argentina.
"Demorei um tempo até achar o tom. Tentei ser o mais preciso e o mais íntimo possível. A minha família não estava muito contente, mas acho que tinha que contar a verdade sem ser forçoso, sem embaralhar as declarações. Escrevia na madrugada, numa mesinha no porão. Acordava às 4h e trabalhava".
Atualmente, com o livro já publicado e os fantasmas exorcizados, o jornalista vive em Washington com os três filhos pequenos e a mulher. De lá trabalha como correspondente para a revista do diário alemão Süddeutsche Zeitung.
"Enquanto escrevia não cheguei a pensar no impacto que isso teria sobre os meus filhos, mas agora espero que essa experiência ajude-os a olhar para o mundo de forma mais aberta, para que não se tornem toupeiras."

quinta-feira, 20 de julho de 2017

De sedentarismo a ensino médio incompleto: nove fatores sociais que aumentam risco de demência, segundo estudo

Um em cada três casos de demência poderia ser evitado se mais pessoas cuidassem da saúde do cérebro ao longo da vida, segundo um estudo internacional publicado no periódico científico Lancet.
A pesquisa, apresentada na Conferência da Associação Internacional de Alzheimer, que termina nesta quarta em Londres, lista nove importantes fatores de risco para a condição, incluindo perda de audição, isolamento social, fumo e sedentarismo.
Estima-se que 47 milhões de pessoas sofram da doença no mundo; a expectativa é de que os casos cheguem a 131 milhões em 2050.
"Embora a demência seja diagnosticada mais tarde na vida, as mudanças no cérebro geralmente começam a se desenvolver anos antes", disse o autor principal do estudo, Gill Livingston, da University College London.
"Agir agora irá melhorar bastante a vida de pessoas com demência e de seus familiares e, ao se fazer isso, irá transformar o futuro da sociedade", acrescentou.
O estudo, que combina o trabalho de 24 especialistas internacionais, diz que o estilo de vida tem um papel importante sobre o risco de demência.
Esses são entendidos como fatores de risco evitáveis e representam 35% do total. Os outros 65% dos riscos de demência vêm de fatores que não podem ser controlados pelo indivíduo.
Fonte: Comissão do Lancet em prevenção, intervenção e cuidados de demência

O estudo examina os benefícios de se construir uma "reserva cognitiva", ou seja, fortalecer a rede neural no cérebro para que ela continue a funcionar bem na terceira idade.
O aprendizado contínuo, por exemplo, estimula o desenvolvimento dessas redes, e é por isso que especialistas identificaram a desistência de completar o ensino médio como um dos maiores fatores de risco.
Outro fator de risco é a perda de audição na meia idade. Os pesquisadores dizem que isto impede indivíduos de fazer parte de um ambiente cognitivamente rico, levando ao isolamento social e à depressão.
Uma das principais mensagens do documento é que o que faz bem para o coração também faz para o cérebro. Não fumar, fazer exercício, manter o peso saudável, cuidar da pressão arterial e do diabetes podem reduzir o risco de demência da mesma forma como reduz o de doenças cardiovasculares e câncer.
Os pesquisadores não tinham dados suficientes para incluir fatores de alimentação ou consumo de álcool nos cálculos, mas eles acreditam que ambos também sejam importantes.
"Embora não seja inevitável, a demência pode se tornar a principal causa de morte do século 21. Precisamos estar conscientes dos riscos e começar a fazer mudanças positivas no estilo de vida", comentou Doug Brown, diretor de pesquisa na Sociedade de Alzheimer.

domingo, 16 de julho de 2017

'Nunca haverá um novo PT', diz especialista americana

O lugar do Partido dos Trabalhadores na política brasileira não será ocupado após os escândalos de corrupção envolvendo o partido. Nem o próprio PT pode retomá-lo, nem esse espaço se apresenta viável a outras siglas nesse momento. É o que diz Wendy Hunter, professora da Universidade do Texas e especialista em política da América Latina.
"Os elementos que formaram o PT - a organização durante a Ditadura, a relação única com suas raízes, o líder carismático, a oposição ao neoliberalismo durante os anos 1990 - dificilmente se reunirão em um só partido novamente", afirma à BBC Brasil.
"Pode haver partidos surgindo com líderes populares, mas o PT precisou de três décadas para criar a organização que criou."
De olho nos acontecimentos recentes no país, Hunter falou à BBC Brasil por e-mail, durante as férias, no Quênia.
Autora do livro The Transformation of the Workers' Party in Brazil, 1989-2009 (A Transformação do Partido dos Trabalhadores no Brasil, em tradução livre), ela diz que uma reforma completa do PT neste momento só poderia ocorrer com o partido fora do poder.
Em sua opinião, caso Lula vença o pleito de 2018, isso não ocorreria, portanto.
Hunter analisa que a falta de uma agenda econômica que ofereça respostas factíveis à crise econômica e da adoção de temas que possam galvanizar apoio entre eleitores descrentes são dois fatores que aprofundam as dificuldades eleitorais do partido e da esquerda em todo o continente.
"O discurso da redistribuição de riqueza não pode se concretizar realmente em meio à crise econômica", afirma.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - Qual a Sra acha que será o impacto da condenação de Lula para o PT - mesmo que ela não necessariamente signifique prisão para o ex-presidente?
Wendy Hunter - Não tenho dúvidas de que vai prejudicar o PT eleitoralmente, num momento em que o partido já está sofrendo com o sentimento de antipetismo. Dilma (Rousseff) venceu a eleição em 2014 por uma margem pequena, e isso aconteceu quando a economia estava melhor e quando as acusações envolvendo os políticos do PT ainda não estavam tão avançadas.
Agora, qualquer pessoa que votava no PT tem razões para estar contra o partido.
BBC Brasil - Mesmo com a continuação do tumulto político no Brasil, tanto os movimentos de esquerda quanto os de direita têm tido dificuldades de convocar pessoas para as ruas, como vinham fazendo nos últimos anos. O PT, por exemplo, ainda não conseguiu organizar um protesto expressivo após a condenação de Lula. O que isso diz sobre o estado do discurso político no país?
Wendy Hunter - Não é só um sinal de como está o humor político do país em geral, mas também uma prova de que os militantes do PT não vão conseguir salvar o dia dessa vez. A base do PT não é o que costumava ser, nem o apoio periférico ao partido.
O PT conseguiu tantos cargos majoritários (presidente, governadores, prefeitos em cidades com mais de 200 mil habitantes) não só por causa de sua base, mas porque o partido conseguiu conquistar eleitores e apoiadores esporádicos. Estes também estão diminuindo rapidamente.
BBC Brasil - Pode haver um novo Partido dos Trabalhadores no Brasil? Quem seria o candidato mais provável para ocupar este lugar?
Wendy Hunter - Nunca haverá um "novo PT". Não há nenhum partido agora que consiga ocupar este lugar, com a mesma capilaridade de rede que o PT conseguiu construir no país. Pode haver partidos surgindo com líderes populares, mas o PT precisou de três décadas para criar a organização que criou. Nenhum outro partido tem este nível de organização e nenhum outro pode construi-la em pouco tempo.
Os elementos que formaram o PT - a organização durante a Ditadura, a relação única com suas raízes, o líder carismático, a oposição ao neoliberalismo durante os anos 1990 - dificilmente se reunirão em um só partido novamente.
BBC Brasil - É possível que o PT passe por uma reforma ou mesmo mude de nome para "recomeçar" depois destes escândalos?
Wendy Hunter - Uma reforma completa será difícil, mas só pode acontecer se o PT estiver fora do poder. Se um grupo de petistas se ramificar e começar um novo partido, isso mostraria que o PT se normalizou completamente, já que essa é a história de tantos outros partidos brasileiros - que não deixaram suas raízes de uma maneira orgânica, mas só se separaram de outros grupos de elite. Pense em todos os outros partidos que seguiram o mesmo caminho: PFL (atual DEM), PSDB, etc.
BBC Brasil - Qual, na sua opinião, será o futuro da esquerda no Brasil?
Wendy Hunter - Entre outras coisas, não é um bom momento para a esquerda porque o discurso da redistribuição de riqueza não pode se concretizar realmente em meio à crise econômica. Por exemplo, o aumento do salário mínimo que aconteceu durante a administração do PT não pode mais ocorrer. E as pessoas esperam mais (do governo), já que nos últimos anos elas tiveram melhoras. A famosa classe C não vai ficar contente com sua posição atual.
Estudos psicológicos mostram que as pessoas se acomodam rapidamente a seus ganhos, movem sua referência para uma posição mais alta e esperam mais. A esquerda não vai conseguir entregar isso. Nem a direita, mas isso é outra história - a direita pode tentar entregar isso ou prometer isso em campanhas focando em assuntos como segurança pessoal, por exemplo.
Uma das principais "questões unânimes" que o PT usou bem foi a da transparência e governo honesto. Muitos eleitores de classe média votaram no partido por isso. Agora é bem mais difícil acreditar nisso. O ambientalismo pode ser outra dessas ideias, mas não deve atrair muitos eleitores que estão tendo dificuldade de colocar comida na mesa.
A segurança pessoal, outro assunto forte, não é um tema com o qual a esquerda se sinta muito confortável por causa do relacionamento historicamente tenso que tem com o Exército e a polícia, e, é claro, pelo fato de que foi a principal vítima da repressão do regime militar.
BBC Brasil - O PT deve abrir mão do papel de protagonista que têm desde a redemocratização e investir numa coalizão?
Wendy Hunter - De certo modo, ele já deixou esse papel, mesmo que tenha mantido o lugar de líder da coalizão por muito tempo. O partido fez tantas concessões para chegar ao poder e ficar no poder.
O PT ser um "parceiro júnior" em uma aliança pode ser mais uma concessão que ele tenha que fazer. Isso provavelmente tornaria o partido irreconhecível. Então a decisão de fazer isso depende do objetivo deles.
BBC Brasil - O que a Sra acha que a condenação de Lula significará para os partidos de esquerda na América Latina - considerando que sua subida ao poder foi importante para a "nova onda de esquerda" no continente e que estes governos passam por problemas agora?
Wendy Hunter - Não é um bom momento para a esquerda (moderada ou radical), mas eu não daria importância demais ao PT como uma causa para isso. Posições estruturais não estão a favor da esquerda - com a crise econômica e o fim da explosão das commodities - e a experiência de governar por tanto tempo tem sido desgastante - porque cansou os partidos de esquerda e fez com que eles tivessem que fazer concessões desfavoráveis.
E também é importante lembrar que existe algo chamado alternância de poder pelo que todas as democracias passam! Talvez estejamos apenas vendo esse ciclo acontecer na região.
Num momento em que os simpatizantes da esquerda estão lamentando a queda do PT e de outros partidos, é importante ter em mente que permanecer no poder tem um custo. E que não queremos um sistema em que um partido possa ficar no poder sem contestação por muito tempo.
BBC Brasil - Que caminho a Sra acha que Lula deveria ter seguido após deixar a presidência?
Wendy Hunter - Retirar-se (da vida política) e se transformar em um "estadista" (membro do governo aposentado que aconselha líderes novos).
Historicamente, na América Latina, esses esforços para se manter vivo politicamente e tentar uma volta aos holofotes nunca dão bons resultados. Por exemplo, lembremos de Getúlio Vargas!
BBC Brasil - Nesse momento, Lula não parece ter sucessores em sua carreira política. Seria culpa dele não ter incentivado o surgimento - e crescimento - de novos nomes?
Wendy Hunter - Eu não diria que é culpa dele porque ele liderou um partido institucionalizado com muito espaço para outros em outras posições. Lula não é um populista exatamente como outros líderes de esquerda - Hugo Chávez, Evo Morales - que deliberadamente se opõem ao controle de outras instituições e tentam impedir que outros contestem seu poder.
No entanto, talvez concorrer quatro vezes à Presidência e escolher Dilma para as duas seguintes possa de fato ter inibido o crescimento de outros nomes.
Não ter candidatos viáveis não é um cenário tão incomum assim: lembre-se do Partido Democrata nos Estados Unidos. O melhor que ele produziu nas últimas eleições foi Hillary Clinton e Bernie Sanders, dois indivíduos de mais de 70 anos que tentaram falar de mudança. Não está claro ainda quem será o candidato daqui a quatro anos.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Lula vai conseguir se candidatar em 2018? Entenda os cenários possíveis

Agora que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado a mais de 9 anos de prisão pelo juiz Sergio Moro por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do "tríplex do Guarujá", aumenta o risco de que sua intenção de se candidatar a presidente em 2018 seja barrada na Justiça Eleitoral.
Isso vai depender do ritmo de seguimento do caso na Justiça e se a condenação será mantida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), para onde Lula deve recorrer contra a decisão de Moro.
A Lei da Ficha Limpa prevê que pessoas condenadas em segunda instância não podem se candidatar - no entanto, se o TRF-4 manter a decisão de Moro, o petista poderá tentar suspender os efeitos da condenação com um recurso provisório em tribunais superiores, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) ou STF (Superior Tribunal Federal).
Entenda abaixo quais os cenários possíveis para Lula em 2018.

Cenário 1: Lula não é julgado antes da eleição

Se o julgamento do TRF-4 demorar e não for concluído antes da eleição de 2018, a mera condenação em primeira instância não é suficiente para impedir Lula de disputar o pleito.
Porém, dois juristas ouvidos pela BBC Brasil - o advogado Gustavo Badaró, professor de direito processual penal da USP (Universidade de São Paulo), e o advogado especialista em direito eleitoral Daniel Falcão, professor da USP e do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) - consideram que há tempo suficiente para o tribunal regional concluir o julgamento do caso antes da eleição do próximo ano.
Antes de apelar ao TRF-4 para tentar rever a condenação em primeira instância, a defesa do petista poderá apresentar "embargos de declaração" ao próprio Moro, questionando sua decisão. Com isso, Falcão calcula que um recurso de Lula à segunda instância chegaria ao tribunal regional no final de agosto. "Então TRF-4 vai ter mais de um ano (antes da eleição) para julgar isso. Tempo com certeza tem", disse.
Segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo realizado em fevereiro, o TRF-4 tem levado em média um ano e dez meses para julgar processos da Lava Jato - se esse ritmo for mantido, Lula não seria julgado até a eleição de 2018 e poderia concorrer. Ainda de acordo com o jornal, a ação que levou menos tempo para ser julgada após a sentença de Moro levou dez meses.
"Por toda repercussão do caso, eu imagino que o TRF-4 não vai simplesmente lavar as mãos e deixar para julgar depois da eleição. Até porque, para o próprio Lula seria ruim, do ponto de vista político, ir para a campanha com essa sobra de corrupto e lavador de dinheiro", acredita Badaró.
Na hipótese de Lula concorrer e ganhar a eleição, o julgamento no TRF-4 ficaria suspenso até o final do mandato presidencial, pois a Constituição proíbe o Presidente da República de ser processado por atos "estranhos ao exercício de suas funções".

Cenário 2: Lula é absolvido

Se Lula for absolvido pelo TRF-4, fica livre para disputar a eleição de 2018, a não ser que venha a ser condenado em segunda instância em outro processo.
O petista é réu em mais quatro ações, alvo de uma denúncia da Procuradoria, que ainda está sendo avaliada por Moro, e investigado pela Polícia Federal em mais outros dois inquéritos.
Na ação que acaba de ser condenado, Lula é acusado de receber um apartamento no Guarujá (SP) em troca da promoção de interesses da empreiteira OAS junto à Petrobras, o que ele nega.
Sua defesa acusa Moro de condenar Lula sem provas, por perseguição política.
A decisão do TRF-4 sobre Lula é imprevisível. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, a turma que julga recursos de ações da Lava Jato é conhecida pela rigidez e ampliou a condenação de quase metade dos sentenciados por Moro.
No final de junho, porém, o tribunal regional derrubou uma decisão de Moro que condenava o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto a 15 anos e 4 meses de prisão, por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Nesse caso, os desembargadores do TRF-4 entenderam que as provas contra Vaccari são "insuficientes" e se basearam "apenas em delações premiadas".
Cristiano Zanin Martins, advogado de Lula, acusou Moro de se basear apenas no depoimento do empresário Leo Pinheiro, ex-presidente da construtora OAS.
"O juiz baseou sua sentença no depoimento de um corréu. Uma pessoa que vai a juízo interessada em destravar o seu processo de delação e sem o compromisso de dizer a verdade. Não havia sequer um acordo de delação. A sentença é ilegítima. Afronta a Constituição, os tratados internacionais e acreditamos que deva ser revertida em algum momento", disse, em coletiva a jornalistas.
Moro cita também em sua decisão contra Lula o depoimento do delator Delcídio do Amaral, ex-senador do PT, apontando que "os indicados aos cargos na Petrobras tinham uma obrigação de arrecadar propina para os partidos políticos, o que era do conhecimento, embora não em detalhes, do então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva".
Já o procurador da República do Distrito Federal Ivan Cláudio Marx pediu nesta semana o arquivamento de outra investigação contra Lula, por suposta obstrução de justiça, sob o argumento de que Delcídio pode ter citado Lula em seu depoimento apenas como forma de "aumentar seu poder de barganha" ao negociar um acordo de delação premiada.

Cenário 3: condenação no TRF-4 antes da confirmação da candidatura de Lula

Os partidos têm até 15 de agosto de 2018 para registrar seus candidatos. Depois dessa data, a Justiça Eleitoral faz uma análise sobre se os indicados podem concorrer ou não.
No caso dos que concorrem à Presidência da República, a análise é feita diretamente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e demora, em geral, de 20 a 30 dias.
Se a segunda instância confirmar a condenação de Lula antes da conclusão dessa análise, o TSE levaria em conta essa decisão e tornaria Lula inelegível, explicou à BBC Brasil uma fonte de dentro do tribunal.
Mas a defesa de Lula poderia tentar uma decisão provisória no STF e STJ suspendendo os efeitos de uma condenação em segunda instância até a conclusão do julgamento nesses tribunais superiores. Se conseguir essa liminar, a decisão também seria levada em conta pelo TSE, que poderia então liberar a candidatura de Lula.

Cenário 4: condenação no TRF-4 após confirmação da candidatura de Lula

Se uma eventual condenação em segunda instância ocorrer quando a candidatura de Lula já tiver sido autorizada pelo TSE, ainda assim ele ficaria inelegível, apurou a BBC Brasil.
No entanto, nesse cenário, a inelegibilidade só poderia ser confirmada pela Justiça Eleitoral após a eleição. Nesse caso, se Lula sair vitorioso, o questionamento sobre a legalidade da sua candidatura só poderia ser feito após a sua diplomação como presidente, o que ocorreria no final de dezembro de 2018.
Dessa forma, ele assumiria o cargo até o TSE concluir sue julgamento sobre a inelegibilidade.

Cenário 5: Lula é condenado pelo TRF-4 antes da eleição, mas recorre

Se Lula for condenado no TRF-4, poderá recorrer da decisão aos tribunais superiores em Brasília (STF e STJ).
No entanto, esses julgamentos levariam tempo e não seriam concluídos antes da eleição de 2018, afirmam os juristas ouvidos pela BBC Brasil.
Dessa forma, a defesa do petista teria que tentar um liminar (decisão provisória) suspendendo os efeitos de uma eventual condenação na segunda instância.
Para Badaró, as chances de êxito em um pedido desse tipo seriam baixas. Como lembra o professor, o atual entendimento do STF é que a "presunção da inocência" acaba após a condenação em segunda instância, o que significa que o condenado tem que começar a cumprir imediatamente a pena, ainda que caibam recursos a outras instâncias.
Antes, a mera apresentação do recurso ao STF ou ao STJ tinha efeito "suspensivo", cancelando os efeitos da condenação em segunda instância até que o recurso fosse julgado. Hoje, isso não é mais automático e é preciso conseguir uma liminar de um dos tribunais superiores, seja de um dos ministros ou do colegiado.
"Não seria impossível (tentar a candidatura após eventual condenação pelo TRF), mas seria muito pouco provável conseguir. Depois da mudança do entendimento do Supremo Tribunal Federal (sobre a presunção da inocência), essas liminares têm sido muito raras", nota o advogado Gustavo Badaró.
"Precisaria que o ministro, antecipando já em alguma medida o mérito do recurso, já concluísse de cara haver uma ilegalidade muito forte, evidente, na decisão do TRF-4, para que ele desse o efeito suspensivo da liminar", acrescentou.
Avaliação semelhante tem o advogado Daniel Falcão. Segundo ele, se houver condenação no TRF-4, "é muito pequena" a chance de reverter essa decisão.
"Acho muito pequena porque não é da tradição do STJ e do STF reverter essas condenações. Trabalhos estatísticos mostram isso, que a chance de um recurso especial ao STJ ou extraordinário ao STF reverter uma condenação é muito baixa. E, ao mesmo tempo, nem sei se daria tempo de chegar ao STJ ou STF o recurso antes da eleição."

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Relator vota pela aceitação de denúncia contra Temer; entenda peso da decisão

O deputado federal Sérgio Zveiter (PMDB-RJ), relator do processo sobre Michel Temer na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, se posicionou nesta segunda-feira a favor do prosseguimento da ação contra o presidente.
Zveiter avaliou que o pedido da Procuradoria Geral da República para que Temer seja julgado no STF (Supremo Tribunal Federal) por corrupção é válido - decisão que amplia a pressão sobre o presidente, mas ainda pode ser revertida.
Em seu relatório, Zveiter afirma que a delação da JBS apresentou "indícios suficientes" que justificam que a ação avance.
"Não é fantasiosa a acusação; é o que temos e deve ser apurada", afirmou.
Segundo Zveiter, o encontro entre Temer e o empresário Joesley Batista, em março, trouxe à tona "sólidos indícios" de que o presidente tenha cometido delitos. A gravação do encontro foi entregue pelo dono da JBS à Procuradoria como parte de seu acordo de delação premiada.
O deputado afirmou, porém, que sua decisão não implica a condenação do presidente, mas sim o prosseguimento da ação para que a verdade seja conhecida e que ele possa se defender.
Concluída a leitura do relatório, deputados da CCJ debaterão seu conteúdo a partir da quarta-feira.
Cada um dos 66 membros da comissão poderá falar por até 15 minutos. Mas o governo tenta acelerar a análise, para que a Câmara vote antes do recesso parlamentar, que vai de 18 a 31 de julho.
O Palácio do Planalto avalia que a demora para concluir a votação desgasta ainda mais Temer e reduz suas chances de êxito.
Por enquanto, segundo um levantamento do jornal O Globo, 21 deputados da CCJ disseram que votarão pela aceitação da ação contra Temer, e dez afirmaram que se manifestarão contra. Outros 35 deputados se disseram indecisos ou não responderam.
O resultado da votação na CCJ será definido por maioria simples.

Partido dividido

O relatório de Zveiter representa uma importante derrota para o governo - vários deputados avaliam que o texto influenciará a decisão final da Casa.
O parecer dificulta ainda a tarefa de Temer ao demonstrar que nem mesmo seu partido, o PMDB, está unido em torno de sua permanência.
Muitos parlamentares peemedebistas têm sinalizado que podem abandonar Temer à medida que surjam novas denúncias contra o alto escalão do governo.
O baixo índice de aprovação do presidente - 7%, segundo a última pesquisa do Datafolha - também estimula as deserções.
Nas últimas semanas, um dos mais influentes congressistas da legenda do presidente, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), passou a defender abertamente a saída de Temer.
A postura fez com que o PMDB o retirasse da liderança do partido no Senado, mas pode encorajar outros congressistas da sigla a seguir o mesmo caminho.

Trocas na comissão

O relatório contrário a Temer também deve reforçar a movimentação entre partidos da base para substituir membros da comissão que possam votar contra o presidente.
Embora a votação na CCJ não seja definitiva, muitos deputados acreditam que seu resultado será referendado pelo plenário.
Por isso, o governo tem redobrado os esforços na comissão.
Em entrevista à BBC Brasil em junho, o vice-líder do PMDB na Câmara Darcísio Perondi disse que o Planalto usaria "todas as armas" para vencer a votação, o que incluía substituir membros na CCJ.
As substituições foram criticadas nesta segunda por alguns deputados removidos da comissão por seus partidos.
Perondi afirmou que o governo também poderia demitir indicados políticos de deputados rebeldes e direcionar recursos para Estados cujas bancadas apoiassem o presidente.
A própria escolha de Zveiter como relator foi um mau sinal para o governo.
Auxiliares do presidente tentavam emplacar algum deputado mais próximo do governo - caso do deputado ruralista Alceu Moreira (PMDB-RJ) -, mas o presidente da CCJ, Rodrigo Pacheco (PMDB-MG), optou por um nome mais neutro.

Próximos passos

Após o debate na CCJ, os deputados votarão o relatório. Se o governo obtiver a maioria dos votos, será elaborado um novo parecer que represente a posição vitoriosa.
Este documento será então levado ao plenário da Câmara.
Para que a denúncia contra o presidente avance, são necessários os votos de 342 deputados (dois terços da Casa).
Temer barra a iniciativa se a soma de abstenções e votos a seu favor alcançar 172.
Se a Câmara votar pela aceitação da denúncia e o STF resolver julgar Temer, ele será afastado por até seis meses, prazo para a conclusão do julgamento.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (PMDB-RJ), assumiria nesse período e teria de convocar eleições indiretas caso o STF condene o presidente.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

O que são os coletivos chavistas, 'defensores da revolução' que invadiram a Assembleia venezuelana

O grafite no muro ilustra a ameaça. Trata-se da silhueta de um homem apontando um fuzil. Logo abaixo, a legenda: "Os coletivos vão tomar Caracas em defesa da revolução!".
Esse tipo de grafite é comum em paredes e edifícios de vários bairros de Caracas. E também nos muros brancos que cercam o Parlamento venezuelano, invadido na quarta-feira por um grupo de civis simpatizantes do presidente Nicolás Maduro.
Os líderes da oposição os chamam de "paramilitares". A procuradora-geral da República, Luisa Ortega, os define como "grupos armados civis fora da lei". Nas ruas, são conhecidos simplesmente como "coletivos". E frequentemente estão encapuzados.
Segundo o governo, muitos coletivos são grupos sociais que trabalham em projetos dentro de organizações criadas pelo ex-presidente Hugo Chávez nas comunidades.
Vários são pacíficos. E desempenham papel político associado a uma longa tradição de esquerda, o que os vincula a Chávez e à revolução bolivariana, agora liderada pelo presidente Nicolás Maduro.
Outros, no entanto, controlam com armas algumas áreas há anos, segundo denúncias de moradores e organizações não governamentais.
No atual clima de confronto e conflito político entre governo e oposição, que se reflete nas ruas, os coletivos assumem papel de protagonistas.
No dia 28 de junho, por exemplo, manifestantes protestavam em frente a um hospital de Caracas, quando, de repente, ouviu-se um grito: "Coletivos!". Um grupo de homens encapuzados surgiu de moto causando pânico com sua presença.
Em fotos e vídeos postados nas redes sociais e publicados pela imprensa local nas últimas semanas, civis foram registrados com armas de fogo.
Embora seja difícil generalizar e muitos coletivos tenham se recusado a falar com a imprensa, a BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) conversou com líderes de vários grupos para descobrir o que pensam e como se articulam com as forças de segurança do Estado.

Cultivo de sementes e segurança

Acompanhado por um grupo da Fundação Domingo Rebolledo, a reportagem da BBC subiu numa manhã de maio uma das ruas mais íngremes de La Vega, bairro no oeste de Caracas.
Eles mostraram o trabalho realizado na paróquia da Base de Missões Sinaí. As missões são os programas sociais criados por Chávez nas comunidades. E podem ser respaldadas na nova Constituição, que será redigida pela Assembleia Constituinte, a ser eleita em 30 de julho.
No local, há hortas urbanas. Projetos de cultivo de sementes e fertilizantes incentivam a produção local para reduzir a dependência de grandes produtores e redes de varejo.
A comunidade busca praticar a autogestão e seus líderes se declaram abertamente chavistas e simpatizantes da revolução.
A Fundação Domingo Rebolledo se define, com orgulho, como coletivo. É formada por 64 pessoas, incluindo 40 com motos, que também têm outras missões.
"Somos a garantia de segurança das pessoas, da pátria", diz Juan, nome fictício de um dos líderes, que prefere manter o anonimato por medo de represálias.
"Somos organizações criadas como medida de segurança para defender o modelo de governo, o povo e os quadros políticos", explica.
Nos últimos meses, esse trabalho tem sido reforçado diante dos protestos que tomaram as ruas contra o governo.

'Alerta'

Naquele sábado de maio, a oposição tinha convocado uma nova manifestação. Juan estava atento. E recebeu uma mensagem no celular de um "patriota colaborador".
"ALERTA. Recebi informação que os terroristas esquálidos estão planejando tomar a Redoma de la India", dizia o texto, que faz referência à praça principal do bairro de La Vega. "Terroristas esquálidos" é a forma pejorativa que eles usam para se referir aos adversários.
A mensagem continua. "Pelo sim, pelo não, temos que estar atentos e prontos para agir diante dos primeiro indícios; me parece que todos estamos decididos a sair e combater a contrarrevolução".
Nesse momento, Juan, que foi policial e faz parte do ODDI (Órgão da Defesa Integral do governo) é acionado. Ele responde ao ODDI de Caracas, dirigido pelo general Antonio Benavides Torres, ex-chefe da Guarda Nacional.
Alguns membros do órgão são acusados ​​de matar manifestantes da oposição. A Procuradoria acusou Benavides recentemente por violações de direitos humanos.
As operações do ODDI, iniciadas após o alerta do "patriota colaborador", são articuladas com a ZODI (Zona Operacional da Defesa Integral) e a REDI (Região de Defesa Integral), ambas com estrutura militar a cargo do Ministério da Defesa.
Assim, é acionada o que o governo socialista chama de união civil-militar, estabelecida em lei desde 2014 e à qual têm recorrido nos últimos meses por acreditar que a oposição está promovendo um golpe de Estado e uma intervenção estrangeira.
Em abril, em plena onda de protestos, Maduro disse que ampliaria para meio milhão o número de integrantes da chamada Milícia Nacional Bolivariana, corpo de civis com treinamento militar. E afirmou que garantiria um fuzil para cada um.
As autoridades do governo citam os artigos 322 e 326 da Constituição, que falam sobre a responsabilidade do Estado e do povo venezuelano em defender o país.
Mas como isso se reflete na atuação do coletivo Domingo Rebolledo?

Roupas pretas e rostos cobertos

Juan garante que a própria polícia e a Guarda Nacional chamam o grupo para intimidar, assustar, dissolver as manifestações e tirar as barricadas da rua.
Por isso, se vestem de preto e cobrem o rosto.
A reportagem da BBC os acompanhou de moto em uma ronda na paróquia vizinha de El Paraiso, um dos principais centros de revolta contra o governo.
"Não vamos chegar reprimindo, atropelando nem agredindo, vamos apenas dispersar, para que não danifiquem a propriedade da nação", afirma Juan, assegurando que seu grupo é pacífico e o máximo que faz é deter manifestantes e entregá-los às autoridades.
Juan alega que não está armado, mas diz que poderia pegar uma arma emprestada com o tio.
"Não podemos apontar armas, porque a oposição está fortemente armada. Você imagina o que pode acontecer (...) Há armas, mas não as usamos. Nós queremos manter a paz", afirma Juan, que é funcionário público.
Um companheiro dele, formado em luta armada dos anos 70 e 80, vai além:
"Para este governo cair tem que haver uma guerra. Se houver, estamos prontos", diz, temeroso de que outro governo acabe com as "conquistas sociais" do chavismo.
Juan reconhece, no entanto, que há coletivos que não operam como o seu. E que contam com a impunidade.
"Os coletivos não são punidos. Podem agir e o governo os respeita porque são pessoas que vêm da polícia ou são policiais ativos. Têm contatos na polícia. Eles prendem, matam. E não pagam por isso. Nós não funcionamos assim", compara.
As imagens de quarta-feira da sede do Parlamento venezuelano, por exemplo, mostram que a Guarda Nacional não impediu a entrada dos manifestantes. Também não os dispersou para permitir a libertação dos deputados, que ficaram sete horas presos no prédio.

'Pacífica, mas armada'

Chávez, que atribuía a suposta violência à burguesia venezuelana, sempre disse que a revolução era "pacífica, mas armada".
Essa declaração é lembrada por Lisandro López, conhecido como Mao, líder histórico da luta armada na Venezuela nos anos 70 e 80 e um dos pioneiros do Tupamaro, movimento revolucionário venezuelano que recebeu esse nome em homenagem ao grupo de guerrilha originado no Uruguai.
Mao também diz que promoveu a criação de coletivos na primeira metade da década passada.
"Era uma maneira de apoiar o governo nos bairros", diz Mao, que hoje tem 58 anos e dirige uma escola pública.
"Eles nascem como uma necessidade política", agrega, recordando-se dos anos imediatamente posteriores ao golpe fracassado contra Chávez em 2002.
Como seu apelido sugere, Lisandro López é maoísta e stalinista e vê o conflito atual na Venezuela como uma luta de classes, visão compartilhada por outros coletivos.
"Se eles (oposição) tomarem o poder, vamos ser eliminados. Sim, estamos armados e vamos enfrentá-los", admite.
Mas, segundo ele, não se encontram nessa fase no momento. A reportagem pergunta o que seria necessário para tal: "A ordem do presidente. Nosso único chefe é Maduro. Quem determina a ação é Maduro", responde Mao.

"Pegando leve"

Mao se dedica agora à formação política e ideológica.
Quem estava plenamente ativo na defesa da revolução era seu amigo Alberto "Chino" Carías, líder do Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA) do Peru na Venezuela. Carías conversou com a BBC em um escritório do prédio administrativo da Assembleia Nacional em 18 de maio, poucos dias antes de sua morte por causas naturais.
"Estamos lutando até as 9:00", contou Carías, que não considerava o MRTA como um coletivo, apesar de compartilhar os mesmos objetivos.
"O governo tem pegado leve com essses terroristas. Chávez já teria esmagado esse movimento", afirmou sobre os atos de violência que vincula à oposição.

23 de Enero

Tanto o Tupamaro, de Mao, como o MRTA, de Carías, nasceram no bairro 23 de Enero, reduto tradicional da esquerda, que defendeu Chávez no golpe de 2002, mas que, em 2015, deu vitória à oposição nas eleições legislativas.
Foi ali que se formou também o coletivo revolucionário Montaraz. A BBC fez uma visita a eles em um sábado de junho, para conversar com William Pacheco, um de seus líderes.
Ali, há uma horta onde os estudantes realizam seus projetos comunitários. O muro que cerca o local tem uma foto grande de Che Guevara e um cartaz das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
"O coletivo é um grupo de pessoas com objetivo político de apoiar o governo revolucionário", diz Pacheco, agregando que seu grupo é pacífico e se dedica a educação, cultura e esporte. Mas faz uma ressalva:
"Há outros que fazem escolta militar. Isso não significa que, no caso de uma situação em que queiram derrubar o governo, nós não vamos participar", explica.
Questionado como agiriam nesse caso e se usariam armas, ele responde: "Todos os cenários são possíveis. Se houver uma invasão ou um conflito com grupos paramilitares ou setores da direita, teremos que defender a revolução com armas". Ele se diz convencido de que há uma "guerra não convencional para derrubar a revolução".
A BBC levanta a hipótese de uma mudança de governo na Venezuela, em um processo eleitoral democrático.
"Teríamos que assumir essa derrota. Mas teríamos que ver qual seria a atitude em relação aos coletivos sociais. O império vai gerar outras situações de pressão: perseguirá líderes, aumentará o assassinato de dirigentes, e isso pode fazer com que a gente tenha que se defender por outros meios", diz, resgatando o discurso anti-imperialista reproduzido pelo governo.

terça-feira, 4 de julho de 2017

Como uma amizade ajudou a criar um Ministério Público sem paralelo no mundo

O Brasil acabava de sair da ditadura militar quando dois velhos amigos se reencontraram em Brasília. O político maranhense José Sarney e o advogado mineiro Sepúlveda Pertence se conheciam desde que haviam participado do movimento estudantil, nos anos 1950.
Três décadas depois, em 1985, a ascensão de Sarney à Presidência e a posse de Pertence como procurador-geral da República abriram o caminho para uma série de ações que reformularam o Ministério Público no Brasil.
Consolidadas na Constituição de 1988, as mudanças a tornaram uma instituição sem paralelo no mundo - segundo especialistas, nenhum outro Ministério Público conta com tanta independência, liberdade de ação e com atribuições tão amplas.
A transformação criou ainda as condições para que, outros 30 anos depois, o órgão se tornasse um dos principais antagonistas do governo Michel Temer.

Morte de Tancredo

Vice na chapa presidencial eleita pelo Congresso para suceder os militares, Sarney assumiu o Planalto porque Tancredo Neves, o presidente eleito, adoeceu gravemente na véspera da posse e morreu pouco tempo depois.
Pertence, que fora convidado por Tancredo para chefiar a Procuradoria Geral da República (PGR), foi empossado pelo amigo maranhense.
O advogado diz à BBC Brasil que conheceu Sarney quando era vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), no fim dos anos 1950, e o político acabara de assumir o posto de deputado federal, após se destacar no movimento estudantil.
Ambos costumavam se reunir na casa de um amigo mútuo, José Aparecido, e pertenciam ao grupo Bossa Nova da União Democrática Nacional (UDN), partido que se opunha a Getúlio Vargas.
"Vem daí nossa amizade, que se manteve apesar das divergências a partir de 1964", diz Pertence.
Enquanto Sarney galgou postos na política após migrar para a Arena, partido que sustentava a ditadura, Pertence atuou no Ministério Público até ser afastado pelo Ato Institucional n° 5, quando voltou a exercer a advocacia.

Mudanças radicais

Finda a ditadura, Pertence retornou à Procuradoria - agora como seu chefe máximo - com um plano ambicioso: "desenhar um novo perfil do Ministério Público, com vistas sobretudo à Constituição de 1988".
Na época, a instituição enfrentava sérios problemas financeiros e não tinha qualquer protagonismo entre os órgãos públicos.
"Não tínhamos nem sede e ocupávamos salas emprestadas de outras instituições", lembra o ex-subprocurador geral da República Celso Roberto da Cunha Lima, que entrou no Ministério Público em 1983.
"Faltava até material básico de escritório: lápis, papel, máquina de escrever."
Lima conta que, além das dificuldades financeiras, os procuradores tinham margem bastante estreita de atuação, responsáveis basicamente pelo papel de acusação em inquéritos criminais e pela defesa da União em processos na Justiça.
Ele diz que o órgão começou a se transformar radicalmente com a aprovação da Lei de Ação Civil Pública, em 1985.
A lei passou a permitir que o Ministério Público atuasse na defesa do meio ambiente, do patrimônio histórico e dos direitos do consumidor. O órgão, que até então agia como um braço do governo, ganhou ferramentas para processar o próprio governo.
"A lei nos deu meios de alcançar objetivos de amplitude muito grande", diz o ex-procurador.
Para Pertence, a Lei de Ação Civil Pública "foi um grande salto para o Ministério Público, e particularmente para o Ministério Público Federal, até então dominado por uma visão em que a defesa da Fazenda [tesouro público] predominava claramente sobre outras funções".
Depois da lei - e em parte graças a ela, segundo o ex-procurador-geral -, ganhou força a tese de que a defesa da União deveria deixar de ser uma atribuição do Ministério Público, ideia que resultaria na criação da Advocacia Geral da União, em 1993.
"Eu me esforcei em preparar um Ministério Público para assumir funções que me pareciam mais relevantes e indelegáveis", diz Pertence.
Ele afirma que Sarney lhe deu "força e liberdade" para conduzir as mudanças. "É evidente que essa relação de amizade e afetividade me ajudou muito durante os anos que vivi na Procuradoria Geral."
Pertence diz ainda que a proximidade não o impediu de assumir posições contrárias ao governo. "Por três ou quatro vezes, avisei o presidente do que iria fazer, deixando-o livre para se fosse o caso de me exonerar."
Procurado, Sarney não quis conceder entrevista sobre a amizade com Pertence e as mudanças no Ministério Público.

Pressão pelo veto

Mas houve resistências às mudanças no Ministério Público.
Promotor de Justiça e professor de direito da Univates, em Lajeado (RS), Pedro Rui da Fontoura Porto diz que parte da comunidade jurídica defendia que o órgão continuasse atrelado ao governo.
Segundo Porto, que pesquisou a história do Ministério Público, o grupo tinha o apoio de professores influentes da Faculdade de Direito da USP, entre os quais Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco.
Segundo o promotor, o grupo defendia que ONGs, e não o Ministério Público, se ocupassem das novas atribuições citadas na Lei de Ação Civil Pública.
"Realmente havia muita pressão pelo veto à lei", lembra Pertence.
Mas ele afirma que, valendo-se da amizade com Sarney e de uma articulação com membros do Ministério Público, conseguiu convencer o presidente a sancionar o texto quase na íntegra.
Sarney só vetou o trecho que permitia ao Ministério Público atuar em defesa de "direitos difusos". Pertence conta que tentou convencer Sarney a manter inclusive essa parte, mas que o presidente a considerava imprecisa.
"Eu falei: 'Mas vem cá, esse conceito [direitos difusos] está em formação, não se sabem que outras questões sociais poderão surgir'. Ele disse: 'Mas você conhece o promotor de Barra do Corda?' Eu disse: 'Não conheço, não tenho nada contra ele'. Ele: 'Eu também não, mas imagina que amanhã ele entenda que o casamento do João com a Maria fere algum interesse difuso. Então essa não vou sancionar'."
Cinco anos depois, com a aprovação do Código de Defesa do Consumidor, a defesa de direitos difusos finalmente entrou no rol de atribuições do Ministério Público (entre os principais articuladores do código estava o então promotor Herman Benjamin, relator do julgamento da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer no Tribunal Superior Eleitoral).

Demanda reprimida

Mesmo com o veto ao trecho sobre "direitos difusos", o promotor Pedro Porto afirma que a Lei de Ação Civil Pública revolucionou a atuação do Ministério Público.
"Havia uma demanda reprimida em relação a questões ambientais, mais até do que direito do consumidor, e houve um deslocamento muito grande para essas áreas", afirma. Ele diz que o Ministério Público passou a se especializar nesses temas e incorporou vários outros, como a defesa da infância e juventude.
Porto afirma ainda que a aprovação da lei "pavimentou o caminho" para a consolidação do novo Ministério Público pela Constituição de 1988.
A Carta conferiu ao órgão independência em relação aos demais poderes, garantiu sua autonomia administrativa e equiparou seus integrantes aos membros do Judiciário.

'Pulo do gato'

Já outros pesquisadores relativizam o papel que a Lei de Ação Civil Pública teve na remodelação do Ministério Público. Para o cientista político Fábio Kerche, autor de Virtude e Limites: Autonomia e Atribuições do Ministério Público no Brasil, a Constituição de 1988 foi o principal "pulo do gato" para o órgão.
Ele diz que, sem a independência conferida pela Carta, o órgão continuaria subordinado ao governo, ainda que tivesse ganhado atribuições com a nova lei.
Kerche afirma que, após a Constituição, o Ministério Público se tornou uma instituição sem paralelos no mundo. Ele diz que o modelo que mais se aproxima do brasileiro é o italiano, mas lá juiz e promotor pertencem à mesma carreira.
Na maioria dos países, diz o pesquisador, o Ministério Público é vinculado ao Poder Executivo.
"A combinação entre discricionariedade (liberdade de agir), independência e a quantidade de instrumentos de poder à disposição do órgão o tornam um caso único. Quando há uma instituição com esse grau de independência no seio da democracia, é difícil não haver tensões", diz Kerche.

'Criei um monstro'

No ano seguinte à promulgação da Constituição, Pertence deixou a Procuradoria Geral da República para assumir uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF).
Ele conta que, em sua última audiência como procurador-geral com Sarney, fez menção a uma frase atribuída ao general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), idealizador do Serviço Nacional de Informações (SNI). Referindo-se ao SNI, que se tornara um dos principais órgãos de repressão da ditadura, Golbery teria dito que criou um monstro.
Ao tratar do Ministério Público na reunião com o presidente, Pertence lembrou o general. "Eu disse: 'Você me deixou solto. Eu não sou Golbery, mas criei um monstro'."
Quase trinta anos depois, o Ministério Público encabeça a Operação Lava Jato, a maior ofensiva anticorrupção da história do Brasil, e apresentou, pela primeira vez, uma denúncia contra o presidente da República.
Pertence não quis comentar a denúncia. Em 2007, ele deixou o STF e voltou a advogar. Seu escritório chegou a defender o grupo JBS, pivô do escândalo envolvendo Temer, mas deixou a função após executivos do grupo decidirem colaborar com os procuradores.
Em 2016, ao comentar a Lava Jato em entrevista ao site Consultor Jurídico, ele disse torcer para que "os excessos deste momento sejam contidos no futuro a partir de uma autocrítica do próprio Ministério Público".
Ele afirma, porém, que sua gestão e amizade com Sarney foram bastante benéficas para o órgão.
Pertence diz que, com as mudanças promovidas em sua gestão, o Ministério Público se tornou não só mais poderoso, mas também mais atento aos brasileiros mais vulneráveis.
Ele conta que as transformações incomodaram "os mais conservadores procuradores da época, que de repente viram seus corredores tomados por minorias, mulheres, negros, homossexuais, índios, a que não estavam acostumados".
"Mas foi fascinante, foi lindo", afirma.

sábado, 1 de julho de 2017

A vida secreta no Estado Islâmico revelada por fotos em cartão de memória

Em fevereiro deste ano, em meio ao avanço das forças iraquianas para retomar o controle da cidade de Mosul das mãos do grupo que se autodenomina Estado Islâmico, o correspondente da BBC no Iraque, Quentin Sommerville, teve acesso a várias imagens armazenadas em um cartão de memória.
As fotografias eram de combatentes do Estado Islâmico (EI) que morreram em confronto com o Exército iraquiano. Assim, teve início uma busca pelas identidades e histórias por trás das imagens.
Confira o relato do repórter:
Fevereiro está prestes a chegar ao fim e os soldados do Exército do Iraque vivem a batalha de suas vidas: a reconquista de Mosul, a segunda maior cidade do país, que desde meados de 2014 está nas mãos do grupo extremista autodenominado Estado Islâmico.
Nos últimos três meses, eles conquistaram um enorme avanço sobre o sul da cidade. Estamos perto do vilarejo de Al-Buseif.
Mais adiante, se continuarmos andando, encontraremos o aeroporto e as primeiras casas do oeste de Mosul.
Mas antes, nas margens do rio Tigre, encontramos os corpos de três combatentes do grupo extremista.
Um deles chama minha atenção: está enterrado sob uma montanha de escombros do que antes foi um bunker e parece mais um menino do que um homem.
Isso confirma o que temos visto nos últimos meses: quanto mais as forças iraquianas se aproximam de Mosul, mais corpos são encontrados.
Os soldados iraquianos primeiro limpam a área para descartar a presença de combatentes próximos. Depois começam a examinar um dos corpos.
Em um dos bolsos encontram uma pequena quantidade de dinheiro sírio que não vale muito. Mas do outro lado encontram algo muito valioso: um cartão de memória de um telefone.
As fotos armazenadas ali nos permitiram conhecer fragmentos da vida dos combatentes do Estado Islâmico que encontramos mortos à beira do Tigre.
Quem era esse jovem combatente e que segredos da organização extremista teria guardado nesse cartão?

Radicalização

Ao examinar as fotos, o que mais chama a atenção é a evolução desse jovem: de fotos luminosas com membros de sua família até outras mais escuras em que podemos vê-lo acompanhado de outros combatentes.
De abraçar uma menina até segurar um rifle Kalashnikov.
Um oficial iraquiano me dirá mais adiante que os jovens das fotos pertencem ao grupo de apoio armado Nínive, uma espécie de comando que opera como suporte das atividades militares principais.
Há outra foto em que o jovem aparece como se estivesse dormindo.
Mas há uma que desperta minha curiosidade em particular: é uma foto do mesmo homem um pouco mais velho e com o cabelo mais longo. Ele olha diretamente para a câmera, mas o que chama atenção são suas mãos, cobertas por um par de luvas.
Debaixo da roupa ele veste um colete-bomba. E as luvas escondem o dispositivo com o qual ele pode ativar o explosivo.
Ele está disfarçado de maneira que o possível alvo não possa reconhecer a ameaça e sorri agasalhado com uma jaqueta bege.
Há muitas outras fotos - junto de seus colegas combatentes e outros soldados mais antigos - que evidenciam o nível da guerra que estão lutando.
Mas há muito mais informações que só soubemos quando estávamos a ponto de abandonar a pequena fazenda na qual havíamos nos refugiado naqueles dias.

Estratégias de guerra

Há dois tipos de momentos na cobertura da batalha por Mosul: os de hipervigilância durante os combates e as poucas horas de descanso.
Apesar de ter passado quase duas semanas no mesmo lugar, não me dou conta de algo fundamental por causa do cansaço: ao revisar com atenção algumas das fotos do jovem combatente, percebo que esse quarto foi o lugar em que ele esteve durante algum tempo.
Essa fazenda abandonada também foi seu quartel. E o cenário de muitas dessas fotos.
Então começo a buscar entre os escombros alguma coisa abandonada, algo que permita que eu me aproxime de sua identidade.
No rastreamento por documentos do Estado Islâmico com datas de dezembro de 2016 há ordens precisas sobre a estratégia para rechaçar um iminente ataque do Exército do Iraque.
Depois de um tempo, em meio à ansiedade de irmos para Irbil e entre um monte de lixo coberto de poeira, encontro um caderno com um nome em inglês escrito a mão: "Abu Ali Al Moslaue".
Era esse o jovem das fotos do cartão de memória?
A caligrafia é cuidadosa e, pelo que leio, o registro de notas é meticuloso.
Noto que Abu estava aprendendo a disparar morteiros.
Dá para ver que ele é um bom aluno. Nas notas, é possível ver também algumas coordenadas escritas sobre possíveis alvos que ele conseguiu achar via Google Maps.
E dá para ver como, com a ajuda de um compasso, ele calculou a possível trajetória curva do projétil disparado a partir do morteiro.

O comandante

Outro caderno que revela mais informações: em princípio só podemos ler alguns poemas mal escritos, mas, na medida em que avanço pelas páginas, percebo que este é o caderno de anotações do comandante de outro pelotão de combatentes que estava instalado aqui.
Seu nome é Abu Hashem e, de acordo com suas anotações, ele comandava oito homens e dois veículos que compunham uma unidade da brigada móvel de defesa aérea do EI.
Em suas notas, descobre-se um chefe que exerce sua liderança com rigor. Ele tenta dividir os membros de sua unidade em pequenos grupos de três, o que os obriga a estar juntos na maior parte do tempo.
Logo percebo sua dureza. Em uma ordem escrita, ele manda um grupo seguir uma patrulha e sentencia: "Aqueles que desobedecerem serão castigados. Talvez Alá os recompense com alguma benevolência".
Temos que deixar o refúgio. Tomo os cadernos e os levo comigo.
Devo sair não apenas de Mosul, mas do Iraque. Mas primeiro saio à rua, deparo-me com os corpos desses combatentes duas semanas depois, irreconhecíveis pelas dentadas dos animais e bicadas dos pássaros.
Levo essa imagem na cabeça.

A testemunha

Volto a Mosul dois meses depois, em meados de abril, e começo a perguntar sobre o jovem da foto a seus companheiros.
O Exército iraquiano conseguiu avançar sobre o oeste da cidade e agora o combate parece mais a seu favor. Os dias refugiados na precariedade daquela fazenda abandonada parecem ser de outro século.
Quando me encontro com um deles, um dos comandantes da brigada das forças especiais do Iraque me conduz até um setor de seu novo refúgio, localizado em um bairro residencial perto da linha de frente do combate.
Ali está um militante do Estado Islâmico coberto de sangue, com evidências de ter apanhado fortemente.
Mas não sei quem pode tê-lo deixado assim: se foram os soldados iraquianos ou moradores de Mosul como vingança.
Os soldados levam o homem ferido e então entra outro jovem, com a aparência de um soldado fora de serviço, a quem vamos chamar de Ibrahim.
Ibrahim lutou pelo EI por dois anos. Mas agora é um agente duplo que também dá informação às forças de segurança iraquianas.
"Esse não sabe de nada", disse o comandante antes de me deixar falar com ele.
Peguei as fotos que havia guardado na minha última viagem e lhe mostrei para que me ajudasse a identificá-lo.
Era difícil. Primeiro porque a maioria dos combatentes se conhecem por nomes de guerra.
Em segundo lugar, um fator fundamental a ser levado em consideração: os combatentes das fotos eram muito jovens.
"Quando o Estado Islâmico chegou, eles eram garotos. Nós não os reconhecemos como homens", disse Ibrahim.

Livros de oração

As pistas sobre sua identidade eram vagas. Fui até a fábrica de morteiros que as coordenadas indicavam nos cadernos.
Mas os trabalhadores, que agora produzem tanques, não quiseram dar detalhes, com medo de represálias do EI.
Mesmo que houvessem saído de Mosul, me disseram, não teriam ido muito longe.
Então a última pista estava nos livros de oração que havia encontrado na mesma fazenda e levado comigo.
Todos esses livros tinham o selo de uma mesquita localizada no leste de Mosul. Além disso, estavam assinados por um imã que havia escrito dedicatórias aos jovens combatentes.
Quando cheguei, fui recebido pelo mulá Fares. Ele me explicou que o imã que assinou os livros de oração havia se juntado ao Estado Islâmico. Ele o estava substituindo.
Então lhe mostrei as fotos e finalmente consegui o reconhecimento de cada um dos jovens.
Ele me confirmou que eles pertenciam ao Nínive e que eram frequentadores assíduos da mesquita desde pequenos.
Então ficou olhando para uma das imagens.
"O poder está com a pessoa que tem uma arma, mesmo se for pequena e jovem. Como os jovens que assassinaram homens grandes e fortes dos nossos bairros. Como um imã que estava aqui antes, que foi baleado por meninos", disse Fares.
Está claro que o Estado Islâmico tinha bastante apoio em Mosul, mas esse apoio acabou quando o grupo começou a recrutar e armar adolescentes. Pegando os mais jovens e os sacrificando por sua causa.
Em Mosul, o EI está perto de ser derrotado.
Os corpos desses jovens na beira do rio já não estão mais lá - foram devorados por animais. Não há nem sequer rastros. Mas seu legado de destruição e incerteza permanece: estende-se para além de Mosul e da corrente que movimenta o rio Tigre.