sexta-feira, 6 de julho de 2012

Apesar da realização das primeiras eleições livres do país neste fim de semana, a Líbia vive um clima de incerteza quanto ao futuro de sua recém-nascida democracia e corre o risco de mergulhar em um caos generalizado, na opinião de analistas consultados pela BBC Brasil.
Os líbios vão às urnas neste sábado para eleger um Parlamento de 200 deputados que terá como principal tarefa elaborar a Constituição do país.
Mas, para analistas ouvidos pela BBC Brasil, as eleições dificilmente ajudarão a melhorar, a curto ou médio prazo, a situação política e social no país, ainda marcado por divisões e episódios de violência.
"O governo interino tem falhado até o momento em reconstruir as instituições estatais, e cada vez mais o país parece caminhar para um cenário de terra sem ou com pouca lei. Os líbios se mostram pouco otimistas vendo o pouco avanço em projetos para melhorar a vida da população", enfatizou o egípcio Gamal Ahmed, especializado em assuntos da Líbia do Centro de Estudos Al-Ahram do Cairo.
"O tribalismo e suas inúmeras milícias, que não se submetem ao poder do governo central, e a falta de segurança para as eleições são os principais fatores que contribuem para a incerteza dos líbios quanto ao futuro", disse o analista independente líbio Mohamad al-Qashawi.
A Líbia realiza sua primeira eleição livre depois de 42 anos de regime de Muamar Kadhafi, morto na guerra civil que eclodiu em fevereiro de 2011, no bojo dos movimentos civis por reformas da chamada Primavera Árabe.

Milícias tribais

Para o analista Mohamad al-Qashawi, de todos os fatores, o tribalismo é o mais perigoso para o futuro da Líbia. Segundo ele, muitos líderes tribais acusam os políticos do governo interino do Conselho Nacional de Transição (CNT) de seguir uma agenda própria e não atender aos interesses regionais.
"O país está sendo afetado por uma cadeia de conflitos regionais tribais, em que as facções estão usando artilharia pesada uns contra os outros e não medem esforços para alcançar seus ganhos".
Jabal al-Zintan, área montanhosa no oeste do país e próxima à capital Trípoli, é a região mais afetada por distúrbios tribais. E apesar da proximidade com o governo central, segundo al-Qashawi, está longe do controle do governo, com milícias vindas de Al-Zintan tomando controle de arredores da capital.
Como exemplo dos distúrbios, ele cita as constantes batalhas entre milícias de Al-Zintan e ex-revolucionários da cidade de Misrata, que fica ao leste de Trípoli.
Outros grupos, segundo ele, completam o cenário tribal do país: os nativos Amazigh (ou bérberes, não árabes), os Tuaregs (que vivem nas regiões desérticas e eram mais alinhados com Kadafi), os Tebou (outro grupo nativo), além das tribos do leste, da região de Bengazi.
"Muitos grupos já foram parte do mesmo Exército rebelde e tinham uma causa comum: a de derrubar Kadhafi. Agora, são milícias tribais que procuram defender os interesses de suas regiões", completou o líbio.
Al-Qashawi explicou que o controle a mão de ferro exercido por décadas pelo regime de Kadhafi garantia a lei e a ordem no país. Com o colapso do antigo regime e a debilidade do governo interino o país ficou sem uma instituição alternativa que zelasse pelo respeito de toda a população às leis.
"A cultural da lei não teve a oportunidade de se enraizar, a sociedade civil era fraca, quase inexistente. E liberdade foi confundida, na visão de alguns, com anarquia".
Com o colapso do Exército líbio, milícias afiliadas a tribos tomaram conta das ruas. Muitas têm um caráter mais islamista e são lideradas por gangues de jovens sem afiliação com uma autoridade ou liderança.
"Isso favoreceu o florescimento também do chauvinismo tribal, do fanatismo religioso e da militância anarquista combinados, o que pode fugir ao controle", completou Al-Qashawi.

Islamistas e incertezas

O egípcio Gamal Ahmed, do Centro de Estudos Al-Ahram do Cairo, citou as falhas do governo de Trípoli em dar melhores condições de vida para a população, e de cumprir promessas, como outro fator que contribui para o caos no país.
Foto: Reuters
Policial participa da campanha da Líbia, onde grupos armados e tribalismo são ameaças
"Muitos jovens, desempregados, vêm acusando o governo de manipular a imagem do país para a comunidade internacional como uma democracia. Há uma crescente insatisfação com as autoridades em Trípoli".
Segundo Ahmed, o governo central tenta convencer seus aliados ocidentais de que as divisões raciais e tribais na Líbia são normais e funcionam como parte do mecanismo que governa o Estado. Mas, segundo o analista, as tensões políticas e sociais vêm tomando conta do país.
"Os islamistas, ajudados pelas falhas do governo em melhorar a qualidade de vida dos líbios, aparecem como favoritos para as eleições parlamentares, como correu na Tunísia e Egito".
"A democracia que o CNT prometeu aos líbios parece distante de se realizar. Com o aumento do tribalismo, o governo pouco pode fazer por projetos sociais, econômicos e de infraestrutura".
Segundo ele, as instituições e agências estatais são frágeis e ineficazes e a população apela para "soluções mais radicais e tribais" quando políticos de partidos recém criados oferecem quase nada de concreto em seus discursos.

Autonomia

Para agravar a situação, de acordo com Ahmed, o governo central enfrenta o movimento por mais autonomia na região Leste, conhecida como Cerenaica, cuja capital é Bengazi, berço do movimento revolucionário que derrubou Kadhafi.
Alguns políticos do governo veem ambições separatistas no movimento, outros defendem a ideia, e dizem que a concessão de mais autonomia em algumas regiões pode ajudar a garantem a unidade territorial da Líbia e a liderança central em Trípoli.
"No Leste estão as maiores reservas de petróleo do país, o que aumentou a importância do assunto. O governo teme perder a região, já recheada de rivalidades tribais, para um autoridade central em Bengazi", explicou Ahmed.
O movimento por autonomia divide as populações no Leste, região também marcada por episódios de violência nos últimos meses, alguns mais recentes envolvendo a destruição de material de campanha eleitoral.
Líderes pró-autonomia já pediram aos eleitores no Leste que boicotem as eleições, alegando que a região deveria receber mais cadeiras, além das 60 (do total de 200) que detém no Parlamento.

Medidas

Segundo Mohamad Al-Qashawi, ainda há algumas medidas que poderiam ser adotadas para evitar a deterioração e a fragmentação do país.
Ele disse que o CNT poderia lançar uma campanha para desmantelar as milícias, recrutando os jovens para um novo Exército nacional e recompensando militantes que entregassem as armas com dinheiro.
"Mas para isso, o governo precisa urgentemente reconstruir o Exército líbio e reviver a autoridade estatal, que não existe e só encoraja mais milícias e baderneiros", disse.
"Outros países árabes, como o Egito, poderiam contribuir em treinar soldados e oficiais líbios para o novo Exército".
Outra medida, segundo Ahmed, seria colocar em prática um sólido e urgente plano de desenvolvimento, em especial para as áreas mais marginalizadas do país, centros de contrabando de armas e de "foras-da-lei".
"E para atrair investimentos estrangeiros que gerariam empregos e aplacariam as mazelas sociais que só diminuem a importância do governo central, deve haver segurança no país. E segurança passa por um Exército e força policial capazes".
Al-Qashawi também acredita que segurança e desenvolvimento deveriam ser as prioridades do governo em Trípoli.
"Sem isso, os líbios se entregarão como sempre ao tribalismo e à autoridade das milícias. Se não houver ações, a Líbia pode se fragmentar e virar uma espécie de nova Somália. Só mais rica, com seu petróleo".

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