sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

No Egito em conflito, a 'guerra' também é midiática

Quase toda a imprensa egípcia se alinhou com o discurso do governo e dos militares
A música tem um tom pesado, com um toque de terror e suspense. As cores são fortes e as imagens mostram carros em chamas, fumaça e forças de segurança em ação. Em um dos canais da TV egípcia, está no ar a cobertura Egito luta contra o terrorismo.
No estúdio, os apresentadores têm o semblante fechado e convidados erguem o dedo e a voz para serem ouvidos, beirando a histeria. A tela se divide em várias – ora mostrando ruas cheias de manifestantes ora exibindo-as vazias após ação da polícia.
A tensão das ruas contaminou a televisão egípcia, já conhecida pelo baixo apego a teorias de imparcialidade. E a narrativa é uma só: a favor do governo. Veículos que eram favoráveis à Irmandade Muçulmana foram fechados logo após a deposição do ex-presidente Mohammed Morsi, em julho do ano passado – inclusive o canal local da rede Al Jazeera, chamado de Mubasher ("direto", em árabe), que se mantém no ar realizando transmissões a partir de sua sede, no Catar.
A televisão foi tomada por discursos e vídeos patrióticos, exaltando o Exército e o chefe das Forças Armadas, Abdel Fattah al-Sisi, que foi transformado em herói no país com ampla ajuda das emissoras de TV, única fonte de informação para milhões de egípcios.
O discurso homogêneo ficou escancarado nos dias que antecederam o referendo à Constituição, realizado nesta semana e cuja aprovação deverá ser por uma grande maioria, sem nenhuma surpresa.
A forte campanha pelo "sim" que havia tomado as ruas migrou para as telas, com apresentadores atuando como militantes e opiniões discordantes sendo criticadas no ar. Um canal privado dizia que o voto afirmativo significaria o fim da Irmandade, grupo de Morsi. Em outra emissora, telespectadores eram convidados a explicarem os motivos pelos quais aprovariam a nova Carta.
Uma mãe teria denunciado o próprio filho à polícia por ele pertencer a um grupo crítico ao Exército e à Constituição, após ter assistido a um programa na TV que descreveu este movimento como "traidor", informou um jornal online local.
"A imprensa deliberadamente não conseguiu cumprir seu papel", disse o Instituto do Cairo para Estudos de Direitos Humanos, que monitorou a imprensa local durante o referendo. Para o grupo, a mídia egípcia teve uma "cobertura propagandística", ausente de "todas as normas e princípios profissionais".
Pôster de Sisi durante demonstração no Cairo: a imprensa local apoia general
"A mídia tornou-se uma campanha de mobilização de uma nota só, com o único tom dissonante oferecido pela Al Jazeera Mubasher Egito. No entanto, (ela) também não foi capaz de fornecer uma cobertura profissional imparcial do processo", disse o relatório.

Do amor ao ódio à Al Jazeera

Discordar da linha oficial é quase proibido no Egito nestes dias. O diretor de um canal estatal foi afastado neste mês após a emissora exibir, por oito minutos, um documentário favorável a Morsi, cuja Irmandade foi considerada uma "organização terrorista" pelas autoridades, termo rapidamente adotado por grande parte da imprensa.
Além de toda a liderança do grupo ter sido presa, opositores que fizeram campanha pelo "não" no referendo desta semana também foram detidos, mesmo destino de renomados ativistas egípcios críticos ao governo.
Mas é a Al Jazeera que tem sido o principal alvo das autoridades. A rede, que causou a ira coletiva de egípcios ao chamar a ação do Exército de "golpe", é vista como simpatizante à Irmandade. Ironicamente, a mesma Al Jazeera era idolatrada por manifestantes há três anos, por sua cobertura das revoltas no mundo árabe.
A emissora teve seus escritórios no Egito fechados e cinco de seus jornalistas continuam presos - dois deles há cinco meses. Os outros três, ligados ao canal em inglês da emissora, foram detidos enquanto trabalhavam em um hotel no Cairo e podem enfrentar acusações de envolvimento com organização terrorista e ameaça à segurança nacional. No ano passado, outra equipe havia sido presa e deportada enquanto trabalhava na capital egípcia.
Críticos dizem que o canal local da rede exagera em sua cobertura, inflando a participação de manifestantes em atos contra o governo ou em seu discurso a favor da Irmandade.
Cartaz do presidente deposto Morsi, cujo partido foi considerado 'terrorista'
"A Al Jazeera Mubasher realmente tem sido a voz da Irmandade Muçulmana. Tudo é tendencioso, daí reação à cobertura. Isso não significa que seja uma boa ideia colocar jornalistas na cadeia", disse a professora Naila Hamdy, do Departamento de Jornalismo e Comunicações da Universidade Americana no Cairo.
Durante a cobertura do referendo, cinegrafista que trabalhava para a agência de notícias Associated Press, foi detido enquanto retransmitia imagens de uma sessão de votação no Cairo. O mesmo vídeo estava sendo televisionado, ao vivo, pela Al Jazeera egípcia, o que levou autoridades à conclusão de que ele era empregado da emissora do Catar, informou a AP.

Câmera vista como ameaça

Não são apenas jornalistas da Al Jazeera que se tornaram alvo no Egito. Correspondentes e fotógrafos estrangeiros relatam detenções ou questionamentos de autoridades quase diários enquanto trabalham no país.
A situação piorou após a ação das forças de segurança que matou centenas de partidários de Morsi, em agosto do ano passado, quando a imprensa internacional passou a ser acusada por autoridades de ser simpática à Irmandade – tese que foi amplamente acolhida por egípcios, que se tornaram apáticos à atuação de repórteres estrangeiros.
Poucos casos revelam a atual relação das autoridades com a imprensa do que um revelado pela revista The Economist, e que virou motivo de chacota na internet: uma equipe de relações públicas de Washington foi contratada pelo governo para melhorar a imagem do Egito e enviou uma equipe para fazer gravações no país. O grupo, no entanto, foi detido horas depois de iniciar seus trabalhos no Cairo.
Um fotógrafo estrangeiro de um jornal local foi ao Twitter desabafar após ter seu material revistado sucessivas vezes ao trabalhar na emblemática praça Tahrir, no centro do Cairo: "Algo está errado quando uma câmera em uma praça da cidade é tida como tão perigosa quanto uma arma".

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